Tuberculose: a bedaquilina acorrentada pelas patentes

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Medicamento é crucial para o avanço do combate à doença. Johnson & Johnson aceita facilitar sua distribuição em algumas nações pobres, mas usa artifício para prolongar patente nas demais. Brasil está entre os afetados

Por Ana Vračar para o People’s Health Movement | Tradução: Guilherme Arruda

A bedaquilina, um medicamento contra a tuberculose, está no centro de um cabo de guerra entre os interesses de uma grande farmacêutica e os movimentos e entidades que lutam pelo princípio da Saúde para todos. Francisco Viegas, assessor de Política e Inovação em Saúde da Campanha de Acesso a Medicamentos dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), esclareceu ao Outra Saúde as razões pelas quais o Brasil não pode ficar alheio a esse embate. Com o fármaco, o tratamento da doença pode passar a durar apenas 6 meses, de forma exclusivamente oral. Hoje, em geral, ele também envolve injeções e requer 18 meses. Em termos de adesão, isso traz  uma melhora significativa, opina. Além disso, vigoram no país patentes secundárias ligadas à bedaquilina que durarão até 2027 – travando o ritmo dos esforços pela erradicação da doença. “Isso cria um obstáculo à produção local, que é uma agenda forte do ministério da Saúde hoje, explica Viegas. Ele lembra que a MSF já questionou publicamente, em carta enviada também à empresa dona da patente, os termos de um novo acordo que, sem suspender os direitos patentários, promete garantir o acesso de países pobres à droga. A reportagem que se segue, produzida para a People’s Health Dispatch por Ana Vračar, expõe o “evergreening” praticado pela J&J com a bedaquilina. O subterfúgio é empregado para estender a duração de seu lucro indiscriminado com a exclusão do acesso livre a milhares de pessoas que precisam de tratamento, em especial no Sul Global. Boa leitura!

Recentemente, a gigante farmacêutica Johnson & Johnson (J&J) aceitou firmar um acordo com a iniciativa Stop TB Partnership [1] que facilitará o acesso à versão genérica da bedaquilina em alguns países pobres. A introdução do uso da bedaquilina simplifica bastante o tratamento da tuberculose, ampliando a qualidade de vida dos pacientes que podem fazer uso do remédio. Por outro lado, o custo da droga segue sendo proibitivo para muitos pacientes, o que os força a recorrer a tratamentos mais antigos com fortes efeitos colaterais, incluindo a perda auditiva.

Nos termos do acordo, 44 países deverão receber a bedaquilina genérica por meio da Global Drug Facility (GDF, em tradução livre para o português, Dispositivo Global de Medicamentos) da Stop TB Partnership. Ainda assim, um grande número de países com pacientes tratados com bedaquilina – como os do Leste Europeu e da Ásia Central, onde as taxas de tuberculose são extremamente altas – estão de fora dele.

Lauren Paremoer, do Movimento pela Saúde dos Povos (MSP), alerta que o acordo deve ser visto com um olhar crítico. “Ainda que a concessão da Johnson & Johnson faça a diferença para muitas pessoas que convivem com a tuberculose, essa medida voluntária não amplia o acesso ao tratamento em países como a África do Sul, que não compra medicamentos pelo GDF e onde a patente da bedaquilina continua em vigor”, ela contou ao People´s Health Dispatch.

“A tuberculose multirresistente é uma emergência de saúde, as empresas não deveriam usar seus direitos de propriedade intelectual para impedir os pacientes de acessarem o tratamento”, acrescentou Paremoer.

A patente principal que a Johnson & Johnson possuía na maioria dos países, como na Índia, expirou no último dia 18. Não obstante, a companhia mantém a droga sob seu controle por meio de patentes secundárias ligadas à prática do evergreening. Ao obter essas patentes, as empresas farmacêuticas prolongam seu direito de exclusividade na produção de fármacos alegando “melhorias” que muitas vezes têm baixo impacto na eficácia da droga.

A Médicos sem Fronteiras (MSF) alertou que a J&J continua de posse de patentes secundárias em 34 dos 49 países com alta incidência de tuberculose. “A manutenção da patente secundária em países que estão de fora do acordo atrasaria o acesso à bedaquilina mais barata em pelo menos 4 anos, resultando em custos de tratamentos mais altos que não só limitariam o acesso à droga de pessoas que precisam urgentemente dela, mas também significariam menos recursos para outros gastos cruciais com a tuberculose”, disse a MSF em um pronunciamento publicado pouco depois do acordo com a J&J ser anunciado.

A Janssen, braço da Johnson e Johnson, tentou estender a patente da bedaquilina em vários países. Porém, no início do ano, o Escritório de Patentes da Índia (IPO, em inglês) rejeitou o pedido. A decisão do IPO foi recebida com entusiasmo por ativistas em toda a Índia, que a viram como uma oportunidade de melhorar a qualidade de vida de milhares de pessoas que convivem com a tuberculose. Sendo um polo internacional de produção de medicamentos genéricos, os medicamentos mais baratos produzidos no país poderiam alcançar todo o mundo.

Não obstante a rejeição da Índia ao privilégio antes concedido à J&J,, os laboratórios de genéricos não poderão vender seu produto aos países onde as patentes secundárias ainda estejam em vigor. Por isso, os ativistas duvidam da sinceridade das intenções da empresa com o acordo, já que a esta segue determinada em fazer valer suas patentes. Esse é outro aspecto crucial a se manter em mente ao discutir o novo acordo da bedaquilina, de acordo com Lauren Paremoer.

A decisão de aceitar o acordo via GDF não absolve a J&J das consequências negativas de suas ações em outras partes do mundo ou do mal causado por suas práticas empresariais. Por exemplo: a Health Justice Iniatitive, da África do Sul, está atualmente processando o governo do país para ter acesso aos termos das compras de vacinas da covid-19, o que envolve a J&J. Segundo Paremoer, sem esse tipo de pressão é difícil imaginar as empresas tomando qualquer decisão positiva nesse sentido.

“A principal lição da pandemia da covid-19 é que essas medidas voluntárias costumam chegar atrasadas e ter pouco efeito – e o resultado é a perda de muitas vidas”, concluiu Paramoer.


[1] A Stop TB Partnership é uma entidade parceira da ONU que congrega um grande número de ONGs, órgãos governamentais, agências de pesquisa e movimentos de boa parte dos países do mundo que atuam no sentido de construir acordos internacionais para ampliar o acesso a medicamentos de combate à tuberculose. (N. T.)

Fonte: Outra saúde

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