Uma das maiores pensadoras do século 20, Hannah Arendt (1906-1975) dedicou a vida a razão pela qual comportamentos bestiais tomavam conta de uma sociedade. Os estudos da filósofa alemã relacionam-se à matança generalizada de judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas seu raciocínio é fundamentado sobre tamanha sensatez que pode-se aplicá-lo em quase todas as circunstâncias macabras de conflitos bélicos e o consequente genocídio de populações vulneráveis no trancurso dos últimos cem anos, lógica que o ótimo “Homens Comuns: Assassinos do Holocausto” revela na undécima hora. A banalidade do mal, conceito eternizado pela filósofa em “Eichmann em Jerusalém”, publicado dois anos depois do veredito que condenou Adolf Eichmann (1906-1962), um dos homens fortes do outro Adolf, o Hitler, à forca em 1961, espraiou-se pelos seis continentes, dando nome e explicação — mas nunca servindo de justificativa, frise-se uma vez mais — para muito do que de mais torpe se viu no mundo.
Em seu trabalho, Arendt discorre exatamente sobre o que movia Eichmann, braço direito do Führer, e alcançou uma conclusão tão luminosa quanto estarrecedora. O médico tinha-se por nada mais que um funcionário modelo do nazismo, apenas cumprindo ordens no intuito de dar a seu ofício a excelência que o caracterizava — e, claro, para permanecer ele mesmo vivo. Adolf Eichmann era um sujeito como outro qualquer, com aspirações e necessidades de um sujeito como qualquer outro, cuja principal distinção se encontrava no aspecto peculiar de seu trabalho e em quem o chefiava — o que degenera em considerações perigosas, sobretudo em mãos mal-intencionadas. Já houve quem defendesse sua inocência, passadas seis décadas, do alto de seis milhões de cadáveres, alegando precisamente essa necessidade de se conservar a ordem, e a própria vida. Manfred Oldenburg e Oliver Halmburger, os diretores de “Homens Comuns”, singram com destemor essas águas turvas e cinzentas, voltando à expressão de Arendt com o propósito de clarear um episódio também ramificado à Segunda Guerra, outra das hediondezas da dominação alemã na Europa de há oitenta anos, bem menos estudada e que, por conseguinte, não recebe o devido tratamento da História.
No verão de 1942, homens se juntam para uma foto. São policiais incorporados a um grupamento da Schutzstaffel (SS), a organização hitlerista que se ocupou dos detalhes mais pragmáticos referentes à execução de judeus, ciganos, comunistas, deficientes físicos, homossexuais e qualquer outro homem ou mulher que destoasse do ideal de perfeição ariana, mas até pouco tempo eram profissionais liberais de orientação social-democrata, padeiros, artesãos, carpinteiros, burocratas, todos seduzidos pela falsa concepção de dever cívico vendida pela irretocável propaganda de Joseph Goebbels (1897-1945), e aterrorizados pelo fantasma do julgamento social. O roteiro de Oldenburg intercala reconstituições a cenas reais (e que só agora vieram à tona) do fuzilamento de judeus no que parecem trincheiras, mas que podem muito ser valas abertas nos arredores de Treblinka, noroeste da Polônia, um dos quarenta mil campos de concentração erguidos por uma das divisões da SS. Um senhor de camisa azul e gravata se apruma para ser entrevistado pelos diretores: é o historiador Christopher Browning, responsável por “Ordinary Men: Reserve Police, Battalion 101” (“homens comuns: polícia de reserva, batalhão 101”), recheado da farta documentação acerca da crueldade germânica — no Leste Europeu sobretudo, mas não só —, que deveria ter permanecido nas sombras se dependesse da vontade da cúpula do regime, justamente para que não houvessem novos Eichmann. Browning repisa a imagem daqueles novos soldados da SS como voluntários, que se puseram à disposição da Wehrmacht, as forças armadas da Alemanha nazista, por orgulho, vaidade, patriotismo, sem muita noção do que fariam daquele momento em diante. Quando ficavam sabendo que seriam obrigados a exterminar gente já alquebrada pelos constantes maus tratos; reduzidas a um monte de ossos que espetavam a pele fina, resultado de meses de uma dieta à base de água suja e uma nesga de pão preto; sobreviventes do tifo, da cólera e da tuberculose; quando viam companheiros disparando contra mulheres que aninhavam ao seio seus bebês, para que o projétil estraçalhasse aqueles dois corpos diáfanos e assim se poupasse munição, padeciam de acessos de diarreia que nunca cessavam, crises de enxaqueca, severas perturbações mentais. Não foram poucos os que atentaram contra a própria vida, e o autor não lhes exime, acertadamente, de seu instinto assassino.
O judiciário da Alemanha ainda se detém sobre as atrocidades de mais de 170 mil homens, incluindo ex-membros da SS, da Gestapo, a então polícia secreta, e de outras corporações que vigeram durante o monstruoso Terceiro Reich. Menos de quinhentos foram condenados por sua atuação na carnificina multiétnica perpetrada por Hitler, e a maior parte morreu no sossego de uma velhice tranquila. No extremo oposto, Benjamin Ferencz (1920-2023), o advogado húngaro-romeno radicado nos Estados Unidos que, como Hannah Arendt, devotou a extensa vida a punir os nazistas, chegou aos 103 anos um tanto mortificado por não ter conseguido fazê-los todos pagar por suas transgressões aos direitos humanos, à dignidade dos homens, às liberdades individuais, à vida. O último promotor dos julgamentos de Nuremberg inspirou a criação do Tribunal Internacional Penal (TPI), voltado a sentenciar criminosos de guerra e genocidas.
Filme: Homens Comuns: Assassinos do Holocausto
Direção: Manfred Oldenburg e Oliver Halmburger
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 9/10
Fonte: Revista Bula