‘A dança dos orixás’: manifestação artística brasileira une religiosidade e cultura

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‘A dança brasileira é uma cultura completa: vestuário, fala, dança e canto. Não é folclore’, diz a artista Isa Soares

A construção de uma consciência não acontece em apenas um mês. Isa Soares, mulher negra e mãe solo, sabia disso quando chegou à Argentina no fim dos anos 1970. A Argentina é uma nação que se identifica como predominantemente branca, apesar de ter um passado afro visível em sua cultura — basta perguntar de onde vem o tango.

O apagamento cultural foi tão bem-sucedido que ainda hoje é tímida a representatividade de pessoas negras na mídia, nos teatros e até no futebol. Basta aparecer alguém com cabelos um pouco mais encaracolados para que as pessoas fiquem surpresas e até curiosas com algo que consideram muito distante.

Mas foi por meio da Dança dos Orixás – uma fusão da dança tradicional dos terreiros com a moderna, hoje mais popular na Argentina pelas mãos e pés de Isa Soares – que essa cosmovisão ancestral pôde ser conhecida no país.

Como toda boa história, essa começa com um caso de amor. Uma baiana, nascida no litoral de Maragogipe, mudou-se para São Paulo, onde conheceu um argentino militante exilado pela ditadura, com quem se casou.

Com a abertura democrática no país, decidiram se mudar para a Argentina. Era primavera, mas, em vez de flores, Isa encontrou espinhos. Nesse trajeto de acompanhar o marido, ficou para trás trabalho, universidade, família e amigos. Em solo estrangeiro, Isa e o marido também se tornaram estrangeiros um para o outro. E tudo desandou.

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Professora, mas analfabeta nesse novo idioma, ela perdeu seus direitos ao se separar do marido. Depois, teve um outro relacionamento, que lhe deu o seu primeiro e único filho. Depois, se viu também no papel de mãe solteira.

Um detalhe de bastidores: foram meses até encontrar Isa, que, neste momento, está fazendo uma pausa sem prazo para retomar as aulas, a fim de realizar sonhos que havia deixado de lado pela arte. Poucos sabem onde ela está. “Passei 40 anos sem férias, porque fazia cursos no verão e no inverno. Criei meu filho ausente, sem me dar conta disso”, justifica.

Foi em Buenos Aires, numa região mais vulnerável do bairro La Boca, que ela passou boa parte de sua vida.

“Quando cheguei, não via pessoas negras. Não porque não existissem, mas porque todos trabalhavam à noite, em bares, cantando e dançando”, lembra.

Assim como Isa, outros imigrantes que chegaram à Argentina na época começaram a trabalhar com suas próprias culturas, fazendo delas uma forma de vida e trazendo mais elementos da cultura afro para o país.

Como sempre teve um corpo muito bem preparado e atlético, Isa decidiu estudar teatro ao chegar na Argentina, onde passou a treinar os corpos dos atores. Depois, passou a se dedicar à dança, um início que precisou de muita resiliência.

“Aluguei uma sala na avenida Corrientes (uma das principais da cidade) e comecei a divulgar, ligando incansavelmente para o jornal Clarín, que tinha uma agenda gratuita. A cada dia, falava com alguém novo, fazia panfletos e distribuía para todos. Trabalhei muito ali”, conta.

Não demorou para que a sala estivesse lotada e até aulas em campos de futebol ela começou a dar, criando uma geração de professores de dança afro, incluindo professores argentinos.

A Dança dos Orixás

“A dança brasileira é o teatro dos negros, é uma cultura completa: vestuário, fala, dança e canto. Não é folclore”, diz Isa.

Para explicar melhor, essa dança tem suas origens nos povos africanos iorubás, acompanhadas de cantos rituais, e mistura plasticidade, dramaticidade e religiosidade, elementos presentes nos rituais do Candomblé, uma religião de matriz africana com mais de 400 divindades, conhecidas como orixás.

Essas danças pertencem ao espaço ritual religioso, sendo manifestações praticadas nos terreiros, conhecidos como “terrenos sagrados”. Mas, ao serem mescladas com a dança moderna, chegam a outros espaços, por meio da simbologia dos orixás e dos elementos da natureza que cada orixá representa.

Ao trazer essa dança para a Argentina, Isa foi além, criando uma metodologia própria. “Minha paixão pela dança, minha forma de entender o corpo. Minha dança não é igual a de Salvador. Fiz uma abstração e criei uma metodologia minha”, explica.

A Semente Plantada em Buenos Aires

Para ela, a Dança dos Orixás é uma forma única de se conectar com a ancestralidade, em que os orixás revivem momentos importantes e se conectam à energia original dos elementos da natureza.

Sua metodologia ajudou as pessoas a entenderem suas próprias raízes. “Qualquer pessoa pode ter um Orixá, mesmo que o cabelo não seja igual ao meu, que o nariz seja diferente, ou que não fale português ou portunhol”.

Algumas pessoas se perguntavam: “mas, por que eu gosto tanto disso?” E Isa respondia, olhando nos rostos: “veja sua testa, seu nariz normal, mas observe sua boca. Tem algo ali. O corpo está dizendo uma coisa e a mente outra. Esse cabelo que você tem. O corpo fala muito mais do que imaginamos”. A explicação era assim, de forma prática, sem teorizar.

Por que a Dança dos Orixás?

O que a maestra nunca imaginou foi que seu trabalho iria se expandir tanto. Ainda mais porque é uma dança muitas vezes associada a preconceitos, como uma magia negra, algo exótico e distante da realidade de muitos.

Mas, no fundo, sabia que sua missão seria de transformação, começando pela mente das pessoas. “Fui 98% explícita em minha abordagem: na fala, na correção do corpo, etc. Transmiti muita paixão pelo meu trabalho. A técnica pode ser ensinada, mas a paixão não”, conta Isa.

Por isso, durante suas aulas, não se aprendia apenas os passos de dança, mas também a história por trás deles. “Sempre que ensino um movimento, paro para contar a história daquele passo.”

O Projeto Iró Bàradé em Rosário

A popularização da Dança dos Orixás na Argentina é notável. Hoje, é possível encontrar aulas gratuitas em diversos centros culturais municipais. Além de coordenadora da área de Culturas Afro-Americanas no Centro Cultural Ricardo Rojas, na Universidade de Buenos Aires, Isa levou essa cosmovisão para outras cidades, como Rosário, localizada na província de Santa Fé.

E foi esse conhecimento de uma cosmovisão distinta que encantou a bailarina, comunicadora e professora e coordenadora do departamento de Comunicação, Cultura e Território da Universidade de Rosário (UNR), especializada em traduções culturais de danças afro americanas, Maria Laura Covarlan, ou Lali, como ela gosta de ser chamada.

Faço uma pausa para contar um pouco da história da Lali. Quando tinha 23 anos, já havia decidido que não seria bailarina. Mas, em uma viagem para o norte da Argentina, se reconectou com suas raízes por meio do folclore.

Foi nesse momento que percebeu que o seu caminho deveria continuar por meio da dança. Nesse mesmo período, ao passar por Buenos Aires, conheceu Isa Soares por intermédio de um grupo de Murga. Ela não estava à procura dos Orixás, mas de algo que a distanciasse da dança clássica que praticava até então. Foi com Isa que encontrou um modo muito particular de dançar, algo que mudou sua visão.

Tempos depois, a partir de Buenos Aires, Isa começou a se deslocar por diferentes contextos da Argentina. Em 2003, ela passou a viajar mensalmente para Rosário para ministrar seminários, onde propôs a Lali a criação de um espaço para acolher todas as pessoas que tinham o desejo de dançar.

Assim nasceu o projeto Irò Bàradé, que há 20 anos vem semeando a Dança dos Orixás em Rosário. “Com isso, em 2004 comecei a transmiti-la, ainda muito novata, mas já com duas viagens à Bahia no currículo. A proposta do grupo começou com Isa e se fortaleceu com a colaboração de outra brasileira, Tânia Bispo”, conta Lali.

Para ela, essa dança envolve toda a essência afro, com seus tambores, e traz consigo uma sensação libertadora, quase catártica. Além disso, ocupa o espaço do entretenimento.

Lali comenta que a dança carrega consigo uma memória de ancestralidade e resistência, com possíveis traduções culturais. Uma dessas traduções está ligada à história da ditadura na Argentina, uma ferida ainda recente e dolorosa.

Por isso, nas marchas de 24 de março (dia em que se comemora o “Ditadura, nunca mais”), o Grupo Iró Bàradé tem um papel significativo, levando a Dança dos Orixás para um espaço de memória e luta.

A argentina Betina Pellegrini, que foi uma das alunas do Grupo Iró Bàradé, hoje compartilha e difunde essa dança. Professora de educação física e de expressão corporal, a bailarina de dança afro americana tem aproximadamente 18 anos de prática na dança dos Orixás, sendo 13 deles dedicados ao ensino contínuo. “Quando conheci essas danças, foi uma descoberta que mudou minha vida”, afirma.

Ela conta que, por meio dessa modalidade artística, foi possível entender que a construção de um país vai além da imigração italiana e europeia. Também comenta a importância de vivenciar e de conhecer as fontes dessa cultura em primeira mão.

“Por mais que eu tenha me formado com referências afro-brasileiras, o ensino autêntico exige um conhecimento profundo da cultura original, e não apenas de sua versão traduzida”, explica.

“Esse é um compromisso e uma responsabilidade que carrego com muito respeito”, avalia.

Por isso, ela foi algumas vezes a Salvador, na Bahia, para entender como essa dança se desenvolve dentro dos espaços religiosos e todo o contexto que a envolve.

Expansão Internacional

A Dança dos Orixás tem promovido o deslocamento de bailarinos, praticantes e professores em formação a Salvador. São pessoas que, assim como Betina e Lali, buscam se conectar com a fonte da dança dentro do contexto afro-brasileiro, sem medições ou traduções.

Uma das pessoas que desempenha um papel importante nesse processo de acolher esses bailarinos é a professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Beatriz Gonzales. Ela possui uma pesquisa premiada sobre a técnica da dança afro-brasileira de Mercedes Baptista, que, na década de 1960, assim como outros mestres, começou a mesclar a dança tradicional dos terreiros com a dança adaptada ao contexto urbano.

Em Salvador, os alunos buscam conhecer a base religiosa que dá contexto à dança. Para Beatriz, a religiosidade e a dança não são compartimentos separados. O que existe, segundo ela, é a prática e a não-prática.

“A evocação das energias da natureza é algo que todos podem experimentar. Quando alguém se conecta e se identifica com essa energia, está se conectando com a própria energia da vida”, frisa.

Segundo ela, muitos estudantes, especialmente do Chile e da Argentina, vêm para o Brasil, durante o carnaval, para participar de aulas em Salvador. Beatriz também viaja com frequência para ensinar em outros países e observa que há uma grande demanda por essa dança, o que confirma que todo o esforço dos pioneiros que começaram a disseminar essa cultura realmente valeu a pena.

Fonte: BdF Minas Gerais / Reprodução – Leandro Barbosa

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