Por Paulo Fleury Teixeira
Neste ano de 2023 completaram-se 10 anos em que eu venho atendendo pacientes com dores crônicas, autismo, ansiedade, insônia, fibromialgia, epilepsias, depressão, dependência química, doença de Alzheimer e de Parkinson, entre outros distúrbios, sintomas e doenças, principalmente neuropsiquiátricos e inflamatórios crônicos, para o tratamento com os princípios ativos da planta Cannabis ou maconha. Os canabinoides, dos quais o Canabidiol (CBD) e o THC são os mais conhecidos. Todo profissional de saúde, todo médico, deve dar grande atenção às ameaças daquilo que prescreve e ter uma boa consciência do balanço entre riscos e benefícios potenciais de tratamentos alternativos. Isto deve valer mais para mim, pois minha especialidade é a Medicina Preventiva e Social e, mais ainda, por se tratar de um campo novo dentro da prática médica, como é este dos tratamentos com produtos de Cannabis.
Desde de 2013, portanto, eu faço revisões periódicas dos riscos do uso medicinal de produtos de Cannabis ou maconha. E todas as revisões que eu fiz até hoje convergem para a conclusão de que, em termos de riscos à saúde, há uma segurança muito alta no uso medicinal da planta, sobretudo se temos em conta que grande parte dos problemas de saúde tratáveis com canabinoides têm tratamentos pouco efetivos e muito tóxicos com os remédios que são prescritos atualmente.
Correspondentemente, eu não vejo base científica para se sustentar qualquer contraindicação absoluta e nem mesmo maiores restrições ao uso medicinal dos produtos de maconha. Mas, sob a alegação de graves danos potenciais à saúde, hoje, no Brasil, a maconha ainda é criminalizada e as condições de prescrição, acesso e uso de produtos de Cannabis são confusas e inseguras. Ainda sofrem muitas restrições institucionais que são infundadas, excessivas, desnecessárias, tecnicamente incorretas e prejudiciais ao acesso dos pacientes ao tratamento, à sua saúde, portanto.
No meu entendimento, agindo assim, as instituições da área de saúde faltam com a sua responsabilidade técnico-científica e social, ao se colocarem a serviço de preconceitos de diferentes origens, restringindo o acesso de pacientes e endossando, direta e indiretamente, a difusão do uso médico e social de drogas mais danosas à saúde pública. Estes desvios e a verdadeira inversão da função das instituições médico-científicas acontecem, neste caso, porque não é possível separar a questão do uso medicinal dos produtos de maconha do seu uso social – portanto, da sua criminalização como droga.
É apenas neste contexto, e pelo seu peso ideológico e moral, que se pode entender, por exemplo, as restrições estranhas e insensatas que a Anvisa, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e as associações de Psiquiatria e Pediatria ainda querem impor contra o uso medicinal da maconha e de seus produtos e derivados, aqui no Brasil. Os valores e os paradigmas sobre os quais este proibicionismo está estabelecido são de caráter social, étnico, moral, religioso, jurídico ou policial. O setor de saúde vem a reboque e tem a função de validar, de dar caução médico-científica, aos (pre)conceitos e (des)valores dos outros setores. E cumpre aí o papel mais retrógrado e contraditório porque, com bases científicas e médicas frágeis ou francamente insustentáveis, promove restrições e proibições com relação à maconha que apenas são prejudiciais para a saúde pública. O faz através de meias verdades, através de manipulação dos dados e das informações e, no limite, através de informações falsas, de farsas, de fake news mesmo.
A presente revisão é, portanto, o resultado de um trabalho pessoal de responsabilidade profissional e uma contribuição, também pessoal, para o avanço deste debate. Nesta revisão, tomei como ponto de partida o documento norte-americano de recomendação pública do Minnesota Department of Health: Office of Medical Cannabis “Important Information and Warnings About Using Medical Cannabis”, de Novembro de 2022. A partir deste documento eu aprofundei a análise em suas fontes, as referências utilizadas para a sua fundamentação, em especial focalizando nos estudos que trazem os melhores níveis de evidência para a identificação de riscos para a saúde, que são os estudos clínicos longitudinais, prospectivos e controlados pela análise estatística de outros fatores de risco associados.
Escolhi este documento, como ponto de partida, porque é de um setor de saúde pública, de um estado dos EUA onde o uso medicinal já havia sido legalizado e que, em 2022, legalizou também o uso adulto. É, portanto, um exemplo da visão sobre o tema, em um setor da saúde pública especializado, em um estado avançado no processo de legalização da erva nos EUA e bastante atual. Apesar de tudo isto, ele apenas confirma a postura pouco responsável com que o setor vem tratando a questão das drogas em geral e, especificamente, da maconha. As informações e advertências do documento de Minnesota são sobre o uso medicinal, mas todas as evidências clínicas trazidas para a sua sustentação são, de fato, trazidas do uso social ou, como se diz, recreativo. Deste modo o documento e a sua análise se aplicam ao uso medicinal, ao qual se dirige especificamente, mas também (e até antes de tudo) ao próprio uso social, onde se encontrariam as evidências clínicas que o fundamentam.
Em síntese, o documento de Minnesota adverte contra: (1) riscos de baixo peso ao nascer e distúrbios psicológicos da criança, com o uso de Cannabis na gestação; (2) riscos de problemas de desempenho cognitivo e social para o uso na infância e adolescência; (3) risco de desenvolvimento de distúrbios psicóticos e esquizofrenia e risco de dependência. Sinaliza que (4) há algum indício de risco de ataque cardíaco em portadores de doença cardíaca grave e talvez, ainda, (5) algum risco em pacientes com doença hepática grave. Também adverte contra (6) riscos de problemas inflamatórios e até de câncer na boca, faringe e vias aéreas superiores, mas apenas no caso de uso de cigarros de maconha. Em geral, os riscos estão associados ao uso de THC e o documento avalia que muitos deles poderiam ser evitados com o uso de CBD.
Essas advertências e as restrições nas indicações e no uso medicinal de produtos de Cannabis, que delas derivam, transmitem responsabilidade e cuidado. Mas, na realidade cumprem um papel contrário. Trazem desinformação e prejudicam a tomada de decisão, o acesso e o cuidado com a saúde das pessoas. De fato, exceto no tocante a riscos de distúrbios inflamatórios em região orofaríngea, no caso de uso de cigarros de maconha, todas as recomendações e advertências do documento de Minnesota têm fundamentação muito frágil, inconsistente e contraditória, como eu pretendo mostrar em detalhes, abaixo, com o foco na questão do risco de esquizofrenia. O documento e as suas referências não são capazes de indicar estudos clínicos que possam sustentar, com alguma segurança, que a Cannabis provoca dano ao feto ou ao seu desenvolvimento, nem problemas psíquicos devido ao uso na gestação, ou pelo uso na infância, na adolescência ou na juventude. Também não há evidência clínica suficiente para sustentar que produtos de CBD minimizariam qualquer um destes riscos, em comparação com produtos de THC.
Com relação à questão da dependência, o estudo clínico de referência para o documento de Minnesota, com dezenas de milhares de usuários de nicotina, álcool, Cannabis ou cocaína, concluiu que 67,5% dos consumidores de nicotina, 22,7% dos consumidores de álcool, 20,9% dos consumidores de cocaína e 8,9% dos consumidores de Cannabis se tornariam dependentes em algum momento. Olhando estes dados, comparando com drogas de maior toxicidade, mas de uso corrente e livre (como o álcool) assim como também com as mais diversas drogas psiquiátricas, as advertências e recomendações contra o uso de Cannabis ou THC, devido ao risco de dependência, se mostram, como realmente são, apenas manipulação da informação em favor do preconceito proibicionista.
Além destas advertências e recomendações, o que não está dito no documento de Minnesota também chama a atenção e merece muito destaque. Não há aí, corretamente, nenhuma recomendação ou advertência com relação a riscos metabólicos, endócrinos, renais, pulmonares, digestivos etc. As alusões de risco para doentes cardíacos e do fígado apenas identificam indícios muito frágeis, sem qualquer pesquisa clínica que os confirme. De fato, até agora não há risco orgânico significativo identificado devido a uso de Cannabis ou canabinoides. Esta é uma qualidade que não pode ser ignorada de modo algum, assim como a correlativa ausência de risco de overdose letal. Estas características, por si sós, indicariam que a maconha e os canabinoides são realmente de máxima segurança para o uso humano.
Mas, para sustentar esta posição é necessário considerar a questão do perigo de esquizofrenia. A questão do risco psicótico e, especialmente, da esquizofrenia é, com certeza, o maior que se atribui ao uso de maconha – ou do THC, especificamente. Realmente é a única atribuição de uma doença crônica, persistente ou permanente, causada pelo uso da Cannabis. Por isso é de máxima importância a sua análise detalhada.
O documento de Minnesota adverte que o uso de maconha na adolescência ou juventude pode aumentar em até 6 vezes o risco de transtornos psicóticos ou esquizofrenia e que este efeito estaria presente mesmo quando o uso de outras drogas é considerado. O documento sustenta, ainda, que esta é uma associação de causalidade e não devida a um autotratamento dos usuários. Mas nada disto se confirma, com segurança, nos estudos em que o próprio documento e suas principais referências buscam se fundamentar. A seguir considero estes estudos em categorias, de acordo com suas principais características:
• 15 são estudos pré-clínicos. Obviamente, estes estudos de ciência de base não trazem nenhuma evidência clínica do risco de esquizofrenia, ou de qualquer outro transtorno ou efeito colateral;
• 7 são estudos transversais ou retrospectivos. Por não se tratarem de estudos longitudinais, apresentam limitações para estabelecer com segurança a relação temporal entre o início do uso ou da “dependência de Cannabis” e o início dos sintomas psicóticos. Portanto, estes estudos também trazem apenas indícios ou evidências frágeis e não podem servir como base para a identificação de causa;
• 4 são estudos longitudinais, que aportariam um nível de evidência mais alto, mas são mal controlados. Na análise dos dados, o risco familiar e/ou o uso de outras drogas de uso social não são verificados em comparação a um grupo de controle, e muito menos é controlado o uso de drogas psiquiátricas. Por isto também não devem ser considerados fonte de evidência consistente. De fato, quando não se controla o uso de drogas e/ou o risco familiar e pessoal se tem uma ideia completamente diferente da realidade na relação entre uso de Cannabis e esquizofrenia;
• 2 são metanálises contendo estudos com as características acima, portanto, não agregando maior nível de evidência;
• 3 são estudos longitudinais bem controlados, incluindo na análise dos dados o controle do uso de álcool e outras drogas, assim como do risco pessoal ou familiar (sintomas prodrômicos ou história familiar). Estes são os estudos que realmente poderiam trazer um nível de evidência mais consistente, realmente seguro, sobre o tema. E, de modo impressionante, os dados destes três estudos convergem para a análise de que, quando o risco pessoal ou familiar é considerado, a associação de causalidade entre uso de maconha e esquizofrenia não se sustenta.
Senão, vejamos. Giordano e outros, 2015, em estudo com mais de 5.000 casos de esquizofrenia e 5 controles (jovens não esquizofrênicos) para cada caso concluem que, após a consideração do risco familiar, a associação é reduzida em mais de 5 vezes. Afirma: “as previsões de casos de esquizofrenia que poderiam ser evitados pela redução do consumo de Cannabis com base em associações populacionais são, portanto, provavelmente consideravelmente superestimadas”.
Arseneault e outros, 2002, acompanhando 1.000 jovens da Nova Zelândia, 30% dos quais declararam uso de maconha aos 15 e 18 anos, indicaram que as pessoas que usaram cannabis aos 15 anos tinham quatro vezes mais probabilidade do que os controles (jovens não usuários) de ter um diagnóstico de transtorno esquizofreniforme aos 26 anos. Mas, depois que os sintomas psicóticos aos 11 anos foram controlados (ou seja, foram considerados na análise) “o risco permaneceu maior entre aqueles que usaram Cannabis aos 15 anos; no entanto, este risco foi reduzido em 31% e já não era significativo”. Ou seja, em bom português, com o controle do fator risco pessoal prévio, NÃO foi identificado risco significativo de psicose/esquizofrenia com o uso de maconha na adolescência. Mas, o que se divulga é justamente o contrário. Isto é, simplesmente, farsa!
Já Proal C e outros, 2014, em estudo com 4 grupos, com aproximadamente 80 pessoas em cada, constatam diretamente que houve risco positivo de esquizofrenia em associação à história familiar de esquizofrenia e não ao uso de cannabis. “Os resultados do presente estudo sugerem que ter um risco mórbido familiar aumentado para esquizofrenia pode ser a base subjacente para a esquizofrenia em consumidores de Cannabis e não o consumo de Cannabis por si só”. Mas essa informação é completamente distorcida, para sustentar o contrário. Isto é farsa!
NÃO HÁ, portanto, base suficiente para uma conclusão condenatória do uso da erva como causa de doença psicótica, nem para a sua contraindicação em pacientes com risco familiar ou pessoal para esquizofrenia. Creio ser bem realista concluir que não se fariam as mesmas advertências e recomendações que hoje se fazem contra a maconha, com estas bases tão frágeis e inconsistentes, se se tratasse de um remédio, desenvolvido por um laboratório qualquer.
Quero finalizar esta análise dando o meu testemunho pessoal de médico, com alguns milhares de pacientes atendidos em clínica canábica, nestes últimos 10 anos. Eventos psicóticos podem ocorrer em pacientes em uso medicinal ou entre usuários sociais ou recreacionais de Cannabis, mas estes são eventos muito raros. Na prática clínica estes eventos e outras crises neuropsíquicas ocorrem raramente e quase exclusivamente em casos com um transtorno já diagnosticado, em uso de medicação antipsicótica e/ou outros medicamentos psiquiátricos. De fato, é no manejo, redução ou retirada, da medicação antipsicótica que a ocorrência destes eventos representa um risco importante.
Em geral, na grande maioria dos pacientes, a Cannabis, os canabinoides, o THC, têm o efeito inverso, reduzindo a intensidade e a gravidade dos eventos psicóticos e podem, por isso mesmo, serem utilizados terapeuticamente nestes casos, inclusive na vigência de um surto psicótico. Os canabinoides – o THC inclusive – realmente podem ser utilizados no controle de transtornos psicóticos. Minha experiência nestes casos, com pacientes com distúrbios psicóticos, sejam eles esquizofrênicos, portadores de doença de Alzheimer ou, em maior número, autistas, entre outros, confirma esta possibilidade, com um bom nível de segurança. Diante da baixa efetividade e da grande toxicidade dos medicamentos que atualmente são prescritos nestes casos, na minha visão, com certeza o tratamento com canabinoides (com THC) deve ser tentado em todos estes casos, tanto no controle cotidiano quanto no manejo das crises.
A minha experiência clínica concorda plenamente com a análise epidemiológica que identifica na busca de autotratamento a razão da maior associação entre uso de Cannabis e os sintomas psicóticos ou a esquizofrenia. Esta análise é também coerente com a evolução dos dados populacionais sobre esquizofrenia e o uso de Cannabis mundo afora, que, consistentemente, não mostra diferenças na incidência de esquizofrenia após aumento da proporção de jovens e adolescentes usando Cannabis e do teor de THC na erva, como tem ocorrido nas mais diversas sociedades nas últimas décadas. E, como acabamos de ver, esta análise não é negada e, de fato, é até mais confirmada do que negada, pelos estudos clínicos sobre o tema aqui analisados. Pois quando se controla pelo risco pessoal ou familiar, a associação é muito reduzida e, em geral, deixa de ser estatisticamente significativa.
Para concluir, reitero que, ao finalizar esta revisão, aqui rapidamente sintetizada, cheguei às mesmas conclusões que tenho chegado em todas as outras revisões sobre os riscos da Cannabis ou dos canabinoides que realizo desde 2013. Até o momento, não existem evidências consistentes de nenhuma doença, nem orgânica, nem mental, produzida pelo uso de Cannabis ou canabinoides. Por estas razões devemos considerar os canabinoides e a própria Cannabis como recursos fitoterápicos ou farmacológicos de máxima segurança sem qualquer contraindicação absoluta e que, por isto mesmo, podem, nas formulações atuais, serem de uso livre e de domínio popular, não devendo estar submetidos a qualquer restrição especial de produção e uso.
Fonte: Outra Saúde