A Hora da Estrela – Clarice cria seu próprio Prometeu e rouba o fogo dos deuses

cultura

O que é um autômato? É simples, o termo “alude ao dispositivo que tem um mecanismo interno que permite executar certos movimentos ou desenvolver certas tarefas.” Eu diria que é o ser que, segundo a vontade e quem o cria, imita ou repete vontades e ações que simulam um humano. O desejo do inventor, no sentido da criatura descrita por E. T. A. Hofmann, em seu clássico “O Homem de Areia”, é exatamente o de que o boneco articulado está tão próximo de ser um humano que seria capaz de enganar. Não que Macabéa, personagem de “A Hora da Estrela” seja exatamente um autômato, que é um simulacro de uma tecnologia eficiente para o contexto descrito acima, que ainda está em seu primórdio engenhoso, mas é uma espécie de autômato literário. Algo bastante comum na literatura, uma vez que personagens são criadas a todo tempo com o sentido maior de serem imitadores de todas as características humanas, ou para além disso, supra-humanos como um estágio diferenciado da normalidade que estamos acostumados a viver.

Clarice conta uma história que acontece com um narrador que quer falar de uma mulher. Uma mulher que o ancora em uma rotina que, à medida que a novela evolui, o transforma em completo dependente do porvir que ele mesmo inventa. Especialmente, da relação que institui com a personagem, que cria e estabelece ao passo que a conhece. É um sistema retroalimentado, como em geral deve ser. Ele dá características para a personagem, ela o atrai para dentro de seu universo, e dali saem novas características que vão, na medida dessa evolução, transformando-a em um ser tridimensional e verossímil.

A Hora da Estrela, de Clarice Lispector (Editora Rocco, 88 páginas)

        Assim, a história de “A Hora da Estrela” é sobre um narrador que, à medida em que apresenta sua personagem e a modela, retornando para retocá-la, às vezes, discute seu estilo e seu comportamento de escritor (idiossincrasia da profissão). E, para além das peculiaridades literárias, ele aproxima-se de sua cria com profunda atração e apego. É uma história sobre desejo. O desejo de um homem por uma mulher com características simbólicas baseadas em uma mente perturbada. O autômato cujas ações são aquelas que ele deseja e giram em torno de uma satisfação intima e pessoal que ele imprime no texto enquanto constrói sua personalidade e a rodeia com elementos da vida cotidiana comum e corrente.

        Vejamos. O narrador toma a palavra para dizer que inventou Macabéa. “Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas E também não prestava atenção em si mesma: ela não sabia (Vejo que tentei dar a Maca uma situação minha: eu preciso de algumas horas de solidão por dia senão ‘me muero’.)” O narrador é o “deus” do livro, ou o “Ser abstrato que dava e tirava”. O narrador ama sua personagem, mas sabe, em nome da literatura, que ela necessita de um destino trágico. Falarei disso adiante.

        Analisemos o livro com mais afinco. A personagem principal da novela é o narrador. O livro é, antes de tudo, sobre ele. Clarice faz isso porque tem um conjunto de intenções. E isso deixa o livro mais interessante e profundo. Literatura de verdade. Um dos motivos é criticar o próprio fazer literário e o equilíbrio tênue entre forma e conteúdo. Forma é uma das grandes expertises de Clarice. Em “A Hora da Estrela” observamos o advento de uma voz narrativa única, própria, advinda da maturidade da autora. Seu despojamento orgânico, sua intimidade com a palavra e com as personagens que cria, a riqueza de metalinguagem e de subversão da língua, pensada no uso dos adjetivos e verbos. Nada de novo. O outro motivo é a crítica social em sua época. O narrador carrega uma “sujeira” masculina, humana, que Clarice quer confrontar. Mas não faz isso com obviedades. Constrói um mundo cheio de elementos modernos e faz sua crítica ao machismo e à xenofobia. Clarice é generosa ao entregar uma história dentro da história que apresenta os problemas de uma grande cidade vilã que absorve seus habitantes, mastiga, transforma e cospe um produto alterado, incompreensível e inútil. Macabéa é mais um dos milhares de invisíveis que perambulam no mundo tentando encontrar um sentido para sua existência.

        Mas aqui estamos interessados em outra coisa. Mais em literatura do que em política. Pois Macabéa, ao tentar se encontrar no mundo, entender sua função, colocar-se em alguma posição de conforto e compreensão, ela nos conta como uma personagem é construída no sentido da seta orientada do tempo, que se desenvolve. Existe a fabricação de um ser que só é conhecido à medida em que é criado. E não é possível estruturá-lo solitário. Para funcionar e interagir e parecer humano de alguma forma verossímil, é preciso inseri-lo em algum habitat, com outros seres com características humanas, em alguns momentos mais exageradamente trabalhadas, porém com atuação limitada, dada a particular necessidade de suas presenças. “Macabéa, ao contrário de Olímpico, era fruto do cruzamento de “o quê” com “o quê”. Na verdade ela parecia ter nascido de uma ideia vaga qualquer dos pais famintos. Ou ainda, sobre Macabéa: “Ela falava, sim, mas era extremamente muda.”

        O álbum de “fotografias” de Macabéa, impresso por Clarice, mostra a evolução da personagem de bebê à adolescente. Enquanto o ser abstrato que dá vida a ela se aproxima de sua cria intentando possuir seu mais elaborado sentido. Sua estrutura, sua necessidade. Nada mais do que aquilo que ele próprio (Clarice metamorfoseada) insere categoricamente.

        O narrador reflete em Macabéa a sua necessidade por sexo. Macabéa é só isso: sexo? Ela é mais! Pois precisa ser algo além do objeto. Precisa ter um mínimo de comportamento humano para não ser uma boneca para a satisfação sexual bruta e primitiva. O narrador confessa a criatura animalesca que subdivide o corpo que também é capaz de criar, com literatura, aos trancos e barrancos, e com a navalha contundente da crítica. “Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue. Penso no sexo de Macabéa, miúdo mas inesperadamente coberto de grossos e abundantes pelos negros – seu sexo era a única marca veemente de sua existência. Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol num túmulo. Quanto a mim, estou cansado. Talvez da companhia de Macabéa, Glória, Olímpico. O médico me enjoou com sua cerveja. Tenho que interromper esta história por uns três dias.”

        “Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um girassol num túmulo.” Macabéa. O autômato é o reflexo do desejo do criador, que ao manipular seu comportamento define como ela deve ser e sentir. E ainda, “Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue.” O produto de sua criação, a obsessão e a adoração, está sujeito ao misto de aberração e necessidade do criador. Ela deve ser isso, altamente impelida ao desejo, ao sexo, à satisfação, mas o anelo humano não pode tornar-se uma ideia, tem que ser real para que o interesse exista e a paixão não sucumba.

        Tudo ao redor de Macabéa é secundário. Glória é a antítese. O contraponto. Equilibra a tendência instintiva de seu criador. Mas precisa de um elemento de vulgaridade para não roubar a cena. Há entre Macabéa e o narrador uma intimidade crescente. O ciclo narrativo tem simetria. Da mesma forma que o narrador é Clarice, Macabéa é o narrador, em algum grau. Vejamos os elementos de similaridade. Quando Macabéa conhece Olímpico, aquele ser patético que ela julga ser seu namorado, chove. E novamente chove quando eles se encontram. A chuva está intimamente relacionada à memória do narrador. Os dias de chuva são em suma sua declaração de insatisfação com sua infância mal resolvida. “Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta. Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva. É a minha vingança.”

        Prometeu, o homem hábil e previdente, chorou a destruição de sua raça e manteve-se alerta para a vingança enquanto apoiava Zeus como um servo obediente. Segundo o Dicionário Rideel de Mitologia: “Com água e argila (ou com as lágrimas que derramou pelos irmãos), Prometeu esculpiu o primeiro homem, que Atena animou com seu sopro. Este ato de criação situa-se depois do dilúvio e da quase total destruição da humanidade.”

        Prometeu é aquele que roubou o fogo dos deuses e deu à humanidade. O narrador, através de sua cria, é Prometeu. Ensina, no decorrer de sua prosa, como criar uma personagem e dar-lhe vida inserindo-a num contexto complexo. Ele dá aos humanos a capacidade de fazer arte, de desenvolver filosofias, de ser, também, criador. Ao descobrir que o fogo foi roubado, Zeus exige punição. O narrador então encontra-se diante de um dilema. Para não ser punido pelo seu crime ele só tem duas opções: confessar-se e pedir perdão ou eliminar sua criação e esconder as provas de sua leviandade. “Deus é de quem conseguir pegá-lo.”

        Falemos de literatura dentro da história. O narrador gasta sua energia detalhando algo que fará: contar uma história. E que isto está demorando, pois não consegue sair do lugar, mas os fatos o pressionam a escrever. A passagem do refrigerante é genial, pois situa o leitor na narrativa. O escritor de fato não está escrevendo um livro, está contando que vai escrever. Ele não poderia dizer algo sobre o refrigerante, depreciativo, por exemplo, dentro de um livro patrocinado. Outra passagem conta sobre um morto (metafórico) que toca um violino na esquina. Estar vivo ou morto é indiferente, uma vez que sua função é tocar uma música imaginária que nunca será ouvida. “Afianço também que a história será igualmente acompanhada pelo violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina. A sua cara é estreita e amarela como se ele já tivesse morrido. E talvez tenha.”

        Assim, o narrador se vê vítima de uma cilada. Está atrelado a Macabéa e precisa dar um final decente para ela. Sabe que precisa destruir a sua cria. Mas a história é um fiasco. Nada de verdade acontece. Existe a crítica, mas não há ação e entretenimento. Então, após o episódio da cartomante (machadiano, é claro!), que é um recurso Deus ex-machina (utilizado para indicar uma solução inesperada/mirabolante para terminar uma obra ficcional), o golpe baixo de Clarice, o narrador se declara: “Nestes últimos dias, sozinho, sem personagens, despersonalizo-me e tiro-me de mim como quem tira uma roupa. Despersonalizo-me a ponto de adormecer.”

A autora, perdão, o narrador, abusa dos clichês. A mais previsível das histórias de amor. Um príncipe estrangeiro (pois todo gringo é rico) virá para salvar Macabéa de sua vida de infortúnios. Para a cartomante, essa personagem inverossímil faz Macabéa sentir-se “uma pessoa grávida de futuro”. Veja, Clarice faz sua mais contundente critica à literatura de mercado, feita para agradar, com temas fáceis e lugares comum. Sua última cartada é o desfecho para o dilema divino da criação. Ao mesmo tempo em que faz uso do cinismo para falar de literatura, ela coloca seu narrador frente a frente com sua maior decisão. Matar ou não a sua criatura. Mas, sabemos que, assim como Capitu traiu Bentinho, Macabéa morre. Morre porque deve morrer. Morre para não deixar o narrador na pior das situações literárias. O herói que se acovarda diante do perigo, diante do inimigo. Morre para que o segredo dos deuses não seja descoberto em sua posse. Morre porque “Se um dia Deus vier a Terra haverá silêncio grande.” Morre porque o homem criador é diferente, maior, único e especial. E a inveja do idiota não deve persegui-lo. O narrado de Clarice é profundamente dostoievskiano.

        Da geometria sutil do caos nasce as porções materiais. Tudo nasce com um sim: “Uma molécula disse sim para outra molécula.” Ou, em outras palavras, “Faça-se a luz!” Não é possível que a luz deixe de existir? Ela, de alguma forma, deixa sua marca. “Qual é o peso da luz?” Depende! “E não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela.” Clarice fecha seu ciclo dramático com um arremate científico. Seu narrador-criador também é um homem da engenharia. E é um cientista em algum grau. Um inventor-criador. Suas ferramentas são a máquina de escrever, a caneta, o lápis e a borracha. Seu laboratório a literatura. Macabéa, que deriva do Hebraico Maqqabh, que significa Martelo (e por isso gosta de pregos), e também significa combatente, tem sua unificação luminosa com seu protótipo inicial quando, madura, declara: “eu acho que sou alguma coisa!” E é algo que nasceu, cresceu, buscou um objetivo e morreu. Seu ciclo é o arco do interesse. “Morrendo ela virou ar. Ar enérgico? Não sei. Morreu em um instante.” Porque a existência é um sopro. Um clarão. O resultado da interação quase instantânea. A existência Macabéa tem fim na necessidade de seu criador em dominá-la completamente. “No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.” Mas ela também é um tudo que nasceu da fusão atômica. Macabéa é o produto do Fiat Lux!


Livro: A Hora da Estrela
Autor: Clarice Lispector
Páginas: 88 páginas
Editora: Rocco
Nota: 10/10

Fonte: Bula / Foto: Reprodução

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