Tarifaço dos Estados Unidos é mais um alerta. E talvez seja também uma oportunidade de o setor revisar sua estrutura, fortalecer seus fóruns internos, reposicionar sua visão de risco e amadurecer sua leitura de cenário.
Um anúncio vindo de Washington e o setor inteiro parou para fazer conta. O tarifaço anunciado pelos Estados Unidos sobre produtos brasileiros voltou os olhos do agro para uma pergunta que não pode mais ser adiada: o que fazemos quando o cenário externo muda de forma abrupta?

Medidas como essa não respeitam ciclos agrícolas, contratos firmados ou trajetórias empresariais. Elas simplesmente acontecem e testam a capacidade de resposta de cada organização. Ainda que não fosse esperada nesse momento, a taxação não é, em si, uma surpresa. Ela está no repertório de riscos do comércio internacional. As tensões geopolíticas, a interferência política nos fluxos comerciais e a adoção de barreiras não-tarifárias são fatores recorrentes na história do agro. Tratar esse tipo de evento como exceção apenas revela a ausência de estrutura para reconhecê-lo como possibilidade.
Esse tipo de risco faz parte da realidade do setor há décadas. A novidade agora é que o discurso da imprevisibilidade já não convence. O setor amadureceu, expandiu, internacionalizou. E, com isso, sua responsabilidade institucional aumentou. Não basta mais reagir, é preciso estar preparado. E a preparação, nesse caso, não acontece depois do evento. As principais medidas de proteção são tomadas antes, por meio da implementação de políticas estruturadas de governança.
É dentro da governança que se constrói a capacidade de enfrentar o inesperado, é ela que organiza os fóruns de decisão, define o fluxo das informações críticas, fortalece a interlocução com conselhos, comitês e acionistas e estrutura os instrumentos de planejamento e resposta. Uma governança funcional não apenas identifica riscos com antecedência, mas os classifica, os compara e os posiciona dentro de uma matriz capaz de orientar decisões estratégicas.
A matriz de risco, nesse contexto, é uma ferramenta que precisa deixar a gaveta. Não se trata de uma planilha genérica de auditoria, mas de uma ferramenta viva, articulada com as decisões de investimento, expansão, exposição cambial e concentração comercial. Uma boa matriz classifica os eventos com base na probabilidade de ocorrência, impacto financeiro, tempo de reação, grau de exposição e relevância institucional. Ela permite identificar os riscos de baixa frequência, mas de alta severidade, como o fechamento repentino de um mercado relevante ou a imposição unilateral de tarifas, e, a partir disso, desenhar planos de resposta consistentes, simulações de contingência e margens operacionais que sustentem o negócio mesmo em momentos de estresse.
É importante distinguir, nesse ponto, risco e incerteza. O risco, em sua concepção técnica, é mensurável. Pode ser estimado, monitorado, classificado. É o que permite o uso de ferramentas como mapas de calor, matrizes e indicadores. Já a incerteza se refere a situações em que o comportamento das variáveis é desconhecido ou imprevisível, tornando inviável qualquer cálculo de probabilidade confiável. Enquanto o risco exige controle e priorização, a incerteza exige robustez e margem de absorção. A governança precisa lidar com os dois, e deve saber exatamente com qual deles está tratando em cada decisão.
A estruturação de comitês de risco, compostos por membros com experiência diversa, com acesso direto ao conselho de administração e com autonomia para tensionar decisões operacionais, é uma etapa central desse processo. Mas a governança não se limita a órgãos formais. Ela exige uma cultura que valorize o debate estratégico, o confronto técnico, a construção coletiva e o registro institucional das decisões. Sem isso, não há aprendizado organizacional, e sem aprendizado, cada crise será tratada como inédita, mesmo quando não for.
A concentração de mercado, nesse sentido, não é apenas uma falha de política comercial. É sintoma de uma governança que não reconheceu, a tempo, a necessidade de diversificar. A exposição a um único país, canal ou comprador é uma escolha estratégica, e como toda escolha, deveria ser submetida a critérios objetivos de risco, retorno, dependência e impacto reputacional. Diversificar não é sair de um mercado por impulso, mas entender o custo de ficar nele de forma exclusiva, e preparar alternativas viáveis para proteger o valor do negócio.
O discurso de que “ninguém podia imaginar” já não serve como escudo. A pandemia da COVID-19 já havia deixado isso evidente. A guerra na Ucrânia, os choques logísticos, a fragmentação comercial global, todos esses eventos vêm reiterando o mesmo ponto: o cenário externo muda, e muda rápido. O que define a solidez de uma organização é o que ela já tem estruturado quando a mudança chega.
Governança corporativa, no agro, não é uma camada de conformidade regulatória, é uma ferramenta de resiliência. Ela permite proteger valor, garantir continuidade, preservar margem de decisão e reagir com velocidade e coerência em momentos críticos. Uma empresa que se estrutura antes do impacto opera com margem. Quem depende do governo ou do improviso, opera no limite, e, cedo ou tarde, paga mais caro por isso.
O tarifaço dos Estados Unidos é mais um alerta. E talvez seja também uma oportunidade. Uma oportunidade de o setor revisar sua estrutura, fortalecer seus fóruns internos, reposicionar sua visão de risco e amadurecer sua leitura de cenário. Não se trata de perder agilidade, trata-se de estruturar agilidade com método, e de proteger, com seriedade, tudo aquilo que já foi conquistado.
Fonte: Artigo escrito por Amanda Salis Guazzelli e Diego Billi Falcão, fundadores da Associação de Governança Agro.