Nossa Reforma Psiquiátrica deve muito à da Itália. Mas não a copiamos, e nem o queria Basaglia. Para avançar, é preciso valorizar nossas singularidades: o SUS, as Conferências Nacionais de Saúde Mental, Nise da Silveira – e o movimento de luta antimanicomial
Título original: Conferências de Franco Basaglia e a invenção à brasileira de processos de desinstitucionalização
Por Claudia Braga
A experiência brasileira de reforma psiquiátrica foi decisivamente influenciada pela experiência teórico-prática da desinstitucionalização em Trieste, na Itália, inventada por Franco Basaglia. Seja pela relevância de suas ideias e práticas, pelo contato direto com sua vinda ao Brasil há 45 anos, bem como com outros atores da desinstitucionalização italiana nas décadas seguintes, seja pela ida de muitos trabalhadores brasileiros a Trieste para ver o que ali pôde-se criar de instituições da desinstitucionalização, ou por tantas outras trocas estabelecidas, é fato que a reforma psiquiátrica brasileira tem a marca da desinstitucionalização.
Tal influência não significou, no entanto, uma reprodução de modelo – ainda bem. Como Basaglia mesmo afirmou durante as Conferências Brasileiras, em 1979: “Eu não vim até aqui para dar soluções imperialistas; não vim trazer uma receita europeia para os problemas brasileiros. Eu creio que os brasileiros é que devem procurar as soluções para seus problemas” (Basaglia, 1982, p.26).
E assim tem sido na reforma psiquiátrica brasileira, que, em um processo crítico e social complexo, tem desenvolvido um arcabouço normativo, estratégias e serviços para afirmar a liberdade, garantir cuidados e promover direitos de pessoas com experiência de sofrimento por condições de saúde mental ou por uso de drogas. Das estratégias e serviços, o fechamento de hospitais psiquiátricos e a substituição do modelo asilar por uma rede de serviços de saúde mental aberta e de base comunitária e territorial, formalizada na Rede de Atenção Psicossocial, é essencial. Nas práticas realizadas nesse processo e no cotidiano dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial, muito se observa das marcas da experiência teórico-prática da desinstitucionalização – não é sem razão que uma das estratégias previstas no desenvolvimento de Projetos Terapêuticos Singulares é a promoção da contratualidade. Mas a reforma psiquiátrica brasileira e as experiências de desinstitucionalização inventadas nesse processo vão além disso.
Outras relações, outra sociedade
Das soluções para os problemas brasileiros, possivelmente a mais própria e bela invenção democrática criada no Brasil é o movimento social da luta antimanicomial que, reunindo trabalhadores, pessoas com experiência de sofrimento, familiares e, cada vez mais, tantas outras pessoas, mobiliza a luta por uma sociedade sem manicômios e toma as ruas em todo o 18 de maio – data inspirada na Lei 180, conhecida como Lei Basaglia, a lei da reforma psiquiátrica italiana. Uma bela invenção porque toca e movimenta o fundamental em uma experiência de desinstitucionalização: as relações.
Em sua vinda ao Brasil há 45 anos, Basaglia certamente muito disse sobre o manicômio e sobre a psiquiatria, questionando as instituições da violência, e por isso é muito conhecido também no país. Basaglia conheceu os horrores do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, e, segundo registrado nas Conferências Brasileiras pelas pessoas que o acompanharam, nesse dia se silenciou. Para além dessa discussão e importante visita à Barbacena, a leitura das Conferências Brasileiras mostra que, nas conferências que proferiu e nos debates que delas seguiram, Basaglia colocou em discussão as relações e o que fazemos delas: as relações sociais com o que é definido como desvio da norma social, as relações de exercício de poder nas instituições, as relações entre trabalhadores, sociedade e pessoas com experiência de sofrimento, para citar algumas das expressões dos debates provocados por Basaglia.
Como formulado por Franco Rotelli, com Basaglia e a experiência por ele inaugurada de desinstitucionalização, a instituição que foi colocada em questão não é o manicômio, mas a loucura – e a nossa relação com essa experiência.
A luta antimanicomial e sua insígnia – por uma sociedade sem manicômios – faz o enfrentamento das instituições da violência ao mesmo tempo que envolve a construção de outras relações entre as pessoas e outra relação com a experiência da loucura – e, por que não acrescentar, com a droga. ‘Por uma sociedade sem manicômios’ é, claro, sobre o fim dessas instituições para garantir o direito à liberdade. Mas, note-se, em uma análise semântica desse mote de luta, o substantivo é a sociedade: a luta é por uma outra sociedade, enquanto a palavra manicômio é expressão qualificadora daquilo pelo que se luta. Ou seja, essa insígnia, tomada como a luta pelo fim dos manicômios, afirma que a luta é por uma sociedade que possa prescindir da existência de manicômios, uma sociedade que não crie a demanda de uma instituição total para segregação e controle dos desvios das normas sociais, uma sociedade que conviva com as diferenças e cuide das pessoas.
Ora, para uma sociedade livre da necessidade do manicômio, é preciso transformar a relação com a experiência da loucura – e da droga. Daí que a luta antimanicomial, em seu processo constituinte, movimenta as relações, engendrando transformações nas relações sociais entre todos os envolvidos: trabalhadores, pessoas com experiência de sofrimento, redes de apoio e sociedade.
Outra característica da experiência brasileira é a busca por abrir relações e construir oportunidades concretas de exercício de participação social e protagonismo das pessoas com experiência de sofrimento por condições de saúde mental ou por uso de drogas. O direito à participação social é, no mundo, amplamente afirmado como horizonte em práticas de saúde mental alinhadas aos direitos humanos. No Brasil, há inúmeros exemplos disso se realizando na prática: da própria participação cidadã na luta antimanicomial à participação enquanto delegados eleitos nas Conferências Nacionais de Saúde Mental e em suas etapas estaduais e municipais; da participação em experiências socioculturais diversas – blocos de samba, rádios amadoras, torneios de futebol – à participação em mesas de debates de eventos científicos; do dia a dia dos serviços de saúde mental à participação formal em Conselhos Gestores, entre tantas outras. Destas experiências, como singularidade brasileira, destacam-se as Conferências Nacionais de Saúde Mental e as experiências de interface com as artes e culturas, tendo como contexto os princípios e práticas do Sistema Único de Saúde e, enquanto hipótese, a marca das práticas inauguradas por Nise da Silveira.
Certamente é possível e necessário ir além, fortalecendo a organização da luta antimanicomial e instituindo mecanismos concretos para assegurar a participação social.
Mesmos ensinamentos para outras relações
Agora, de toda maneira, para todas essas experiências que envolvem transformar as relações de poder, é preciso algo que se dá antes: o reconhecimento da cidadania das pessoas e a busca por construir relações de reciprocidade, questões que Basaglia discutiu em sua vinda ao Brasil há 45 anos e que vale a pena recordar, já que a influência da perspectiva da desinstitucionalização no país é um fato. Nas Conferências Brasileiras, Basaglia assinalou que “…quando se abre o manicômio, a pessoa tem o direito de fazer o que quiser, de ficar ou de ir embora. Portanto, quando o doente pergunta quando irá para casa, o médico estará obrigado a iniciar um diálogo com ele, e nesse diálogo o objeto e o sujeito deixam de existir, há duas pessoas que se tornam dois sujeitos” (Basaglia, 1982, p. 150).
Ora, só é possível pensar em participação social, por exemplo, se uma relação de objetivação do outro e de objetificação com o outro cessa, ou seja, se a outra pessoa não mais é identificada e estigmatizada em uma doença ou uma droga, logo, enquanto um doente mental ou um drogado, e assim pode tornar-se apenas uma pessoa com experiência de sofrimento, com necessidades, com uma história de vida, com relações, com sonhos e tantas outras coisas. A participação social, enquanto oportunidade de trocas relacionais, enquanto redistribuição de poder nas relações e enquanto exercício de conflitos e dialetização dos conflitos, só pode se dar se a outra pessoa existe na relação.
Nos hospitais psiquiátricos, o outro não existe. Basaglia ensina que é o fechamento do manicômio que cria a abertura daquilo que antes estava confinado, a abertura de escolhas, a abertura de relações entre pessoas, a abertura para inventar outras formas de relação com a loucura. Mas mesmo fora dele – nos serviços de saúde mental substitutivos ao modelo asilar, na luta antimanicomial e nos tantos espaços da vida social – isso precisa ser construído.
A propósito, note-se como a cena descrita por Basaglia é uma experiência cotidiana de Centros de Atenção Psicossocial: em um serviço aberto está posta a questão de que a pessoa usuária do serviço pode sair dali no momento em que quiser, e quando a pessoa que está no serviço afirma que não irá mais ficar ali e o serviço entende que é importante para o percurso de cuidados e direitos da pessoa que ela esteja ali, os trabalhadores são obrigados a iniciar um diálogo com essa pessoa e, retomando Basaglia, “nesse diálogo o objeto e o sujeito deixam de existir, há duas pessoas que se tornam dois sujeitos”. Aqui há duas pessoas, frente a frente, que precisam se escutar mutuamente, precisam criar entendimentos, pessoas que entram em conflito, que operam com o poder nessa relação, que constituem e participam de uma relação.
Para tanto, como discutido na perspectiva da desinstitucionalização, é preciso que o trabalhador de saúde mental recuse o mandato social de realizar a tutela do outro e possa agir de maneira diferente, entrando em relação com a pessoa, assumindo a responsabilidade pelo percurso de cuidados e de direitos da pessoa e se colocando em uma relação de reciprocidade com essa pessoa. Isso requer a desconstrução das certezas de um paradigma psiquiátrico para reconhecer que é preciso escutar o outro porque o outro tem algo a dizer sobre si, sobre sua experiência. E aqui essa relação pode deixar de ser uma relação de tutela para se tornar oportunidade de abertura de relação e de participação na relação. Essa recusa do mandato social e do poder sobre o outro pode se tornar experiência para o trabalhador de libertação mesmo do seu corpo.
Fecham-se manicômios e abrem-se relações. A liberdade aqui é práxis de libertação coletiva, e esse é um dos ensinamentos de Basaglia aos brasileiros.
Dizer não à miséria do mundo e dizer sim à democracia
Para encerrar, é preciso dizer: passados 45 anos da vinda de Basaglia ao Brasil, mais de quatro décadas da reforma psiquiátrica brasileira com a marca da desinstitucionalização e mais de duas décadas da promulgação da lei nº 10.216/2001, que impulsionou a efetivação da reforma psiquiátrica brasileira, ainda é preciso falar dos manicômios porque ainda temos mais de dez mil leitos em hospitais psiquiátricos custeados com recursos públicos. Dez mil leitos em manicômios que precisam ser fechados e substituídos em definitivo por uma rede de estratégias e de serviços de saúde mental de base comunitária e territorial, a Rede de Atenção Psicossocial, para garantir que todas as pessoas possam ser cuidadas em liberdade e com respeito aos seus direitos. É preciso dizer não ao manicômio porque “quando dizemos não ao manicômio estamos dizendo não à miséria do mundo, e nos unimos a todas as pessoas que no mundo lutam por uma situação de emancipação” (Basaglia, 1982, p.29). Para não esquecer, na soma dos desafios, acrescente-se a necessidade de fechamento dos leitos em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, incluindo o Hospital Psiquiátrico e de Custódia Jorge Vaz, de Barbacena – aquela mesma cidade em que Basaglia esteve há 45 anos.
O Brasil inventou maneiras de fazer isso e assim tem feito. E, como assinalado aqui, criou formas próprias de desinstitucionalizar relações. O que será inventado nos próximos 45 anos para ir além disso, respondendo às necessidades das pessoas e promovendo emancipação é tarefa coletiva do presente e o caminho a ser percorrido. Uma boa trilha para isso segue sendo aquela que foi o contexto mesmo do surgimento da reforma psiquiátrica no Brasil e da organização da luta antimanicomial: a luta pela democracia. Das muitas questões e intervenções do plenário nos debates das conferências no Brasil proferidas por Franco Basaglia (1982, p.115), uma delas foi a de Sérgio Arouca, que refletiu sobre a experiência de desinstitucionalização colocar em curso a “democratização das instituições, levando finalmente a uma tentativa de democratização da cidade como um todo”. Este pode ser um bom norte: democratizar a cidade para que todos dela possam participar.
REFERÊNCIAS
BASAGLIA, Franco. A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. Conferências no Brasil. São Paulo: Ed. Brasil Debates, 1982 [1979].
Fonte: Outra Saúde / Foto: Luís Costa