Por Shirley Pinheiro
Pioneira na produção de literatura erótica no Brasil, Gilka Machado foi reconhecida por Carlos Drummond de Andrade como “a primeira mulher nua da poesia brasileira”
As duas primeiras décadas do século XXI em muito se diferem às do século anterior, mudaram as moedas, a tecnologia, a moda e, embora enfrentemos um período de retrocesso, também tivemos mudanças no cenário político. As mulheres garantiram o direito ao voto, ao trabalho sem necessidade de autorização do marido, ao divórcio, a leis de combate à violência contra a mulher (a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio) e, este mês, a luta feminina garantiu o direito à distribuição gratuita de absorventes a pessoas que menstruam em situação de vulnerabilidade social.
As artes também acompanharam as mudanças políticas e sociais de seu tempo. Se no século XX, autoras como Hilda Hilst e Cassandra Rios, foram censuradas e perseguidas pela sociedade e crítica literária da época, levadas ao esquecimento e desvalorização de suas obras pelo conteúdo erótico que abordavam, hoje em dia, com o avanço do movimento feminista, a liberdade sexual das mulheres tornou-se pauta recorrente em discussões na televisão, no rádio, na internet, na música — “Me agarra na cintura/ Me segura e jura que não vai soltar/ E vem me bebendo toda/ Me deixando tonta de tanto prazer” (Ana Carolina) — e na poesia —“a pele é o maior órgão do corpo humano/ a pele pulsa/ arrepia com o toque da mão desejada/ a pele formiga/ de nervoso a pele não pode disfarçar quando o coração morre de ódio ou de tesão” (Dia Nobre).
No Brasil, a pioneira na produção de literatura erótica, foi a escritora carioca Gilka Machado, reconhecida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade como “a primeira mulher nua da poesia brasileira”, em alusão ao livro A Mulher Nua (1922), o obra de poesias em que Gilka aborda temas considerados tabus, como o prazer feminino, a sensualidade, as paixões e desejos proibidos — á tua vinda/ volúpias virginais/ e, beijando-me tanto, não confortas/ a anciã infinita dessas virgens mortas/ que, em ímpetos violentos,/ se manifestam nos meus sentimentos!/ Beija-me mais, põe todo o teu calor/ nos beijos que me deres,/ pois vive em mim/ a alma de todas as mulheres que morreram sem amor! (Gilka Machado). Para Drummond “as mulheres que gozam hoje de plena liberdade literária para cantar as expansões do instinto e as propriedades eróticas do corpo deviam ser gratas a essa antecessora de 29 anos, viúva pobre que ganhava a vida com esforço”
Nascida em 12 de março de 1893, no Rio de Janeiro, Gilka Machado teve seu primeiro livro — Cristais Partidos — publicado em 1915, mas seus prelúdios poéticos se deram desde a infância. Aos 13 anos, escandalizou a crítica especializada da época pelo conteúdo de sua poesia ao vencer os três primeiros lugares de um concurso literário organizado pelo jornal A Imprensa, com poemas sob seu nome e pseudônimos, que lhe renderam a definição de “matrona imoral”.
Autora de A Revelação dos Perfumes (1916) e Sublimação (1938), Gilka Machado revolucionou a escrita literária feminina. Em 1933, foi considerada a maior poeta do século XX e poderia ter sido a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), se não tivesse recusado o convite de Jorge Amado, em 1976. Mesmo com tamanha notoriedade, Gilka foi relegada a uma condição de marginalidade, apagada histórica e literariamente, um reflexo do ostracismo reservado às mulheres.
Despida de pudor social, Gilka Machado foi uma mulher em seu tempo. Transgressora e pioneira, renegou o papel a ela designado por uma sociedade patriarcal, participou da política, atuou no Partido Republicano Feminino, criado com o objetivo de integrar mulheres no cenário político da sociedade da época e elevou a escrita feminina a um espaço antes reservado somente aos homens. Uma mulher, cujo talento resiste ao esquecimento.
Fonte: Portal Vermelho.org