Sexta, 27 de janeiro de 2023
Em análise para a Sputnik Brasil, pesquisadores avaliaram o início da política externa brasileira, agora sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que teve a oportunidade de se mostrar ao mundo em duas recentes oportunidades: no fórum mundial de Davos e nas discussões da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
Ao lado da elite econômica e política mundial, embora ausências notórias tenham sido sentidas, como as do presidente russo, Vladimir Putin, e do presidente da China, Xi Jinping, que fez breve aparição por vídeo, o Brasil do governo Lula deu as primeiras pistas de como será sua política externa no Fórum Econômico Mundial, em Davos.
O evento ocorreu na Suíça entre os dias 16 e 20 deste mês, e logo em seguida a política externa brasileira deixou o continente europeu, desembarcou na Argentina e se juntou aos líderes latinos para celebrar o retorno do Brasil à CELAC. Para ambos os analistas consultados pela Sputnik Brasil as mudanças no Itamaraty sob o comando do petista já são notórias, mas devem ser avaliadas, até aqui, com cautela.
Os assuntos com os quais a política externa mundial precisará lidar, como já indicava o tema do fórum de Davos, “Cooperação em um mundo fragmentado“, são preocupantes e inescapáveis ao Itamaraty, como o aumento da fome na África, o desemprego global, o conflito bélico na Europa e, principalmente, a crise da globalização.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Paulo Feldman, economista da Universidade de São Paulo (USP), disse que o Brasil teve uma participação bastante satisfatória em Davos, buscando desfazer “a imagem que se tinha antes do país, que era muito ruim por causa do desmatamento”. Embora isso tenha significado um “início com o pé direito” na opinião de Feldman, as negociações com a Argentina, indicando uma retomada da agenda de grandes investimentos em parcerias com países vizinhos, já geram incômodo entre os críticos da política externa mais ativa do novo governo.
Afinal, como avaliar a política externa do Brasil no primeiro mês do governo Lula?
Segundo João Victor Motta, doutorando do programa de pós-graduação em relações internacionais San Tiago Dantas, “a grande avaliação é de um retorno a um lugar de protagonismo”.
“Esse primeiro mês foi de reconstrução, de reconexão, de ajuste de pontos. Acho que esse é o grande saldo desse processo de reorganização do próprio Ministério das Relações Exteriores”, disse ele em declarações à Sputnik Brasil.
Para o analista, o ministro das Relações Exteriores, o embaixador Mauro Vieira, tem um perfil técnico e voltado para a organização do Itamaraty. Ao lado de Celso Amorim, que faz parte do gabinete da presidência, o Brasil “garante atores muito conhecidos e estáveis” para negociar com outros países no exterior.
O Brasil em Davos
O primeiro encontro de líderes globais de 2023 ocorreu em um contexto de acirramento das tensões no Leste Europeu, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) oferecendo mais armas à Ucrânia, ampliando a dimensão do conflito com a Rússia e dificultando as negociações em prol de uma solução política para a crise.
Nesse cenário, o governo brasileiro enviou para um evento menos badalado do que em edições anteriores os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, um indicativo, segundo Feldman, da importância que o Brasil dará às questões ambientais e climáticas nos próximos anos. O economista da USP defendeu o discurso de Marina Silva sobre a defesa da Amazônia e o rigor no combate ao desmatamento.
Para ele “foi importante o Brasil recuperar essa bandeira”, que estava esquecida desde o governo de Jair Bolsonaro. Paulo Feldman entende que o Brasil conseguiu superar algumas “expectativas ruins” que cercavam a participação brasileira na Suíça, sobretudo a partir do “estabelecimento de uma meta global para reduzir a perda de florestas”.
Davos e o anúncio de uma crise global
A avaliação de ambos os especialistas consultados pela Sputnik Brasil é que Davos expôs os desafios que serão enfrentados na próxima década pela comunidade internacional, não apenas do ponto de vista ambiental.
Anualmente, ao fim das mesas de discussão, o fórum publica um relatório com os principais desafios globais. Feldman apontou que “eles costumam errar nestas previsões“, pois há um ano ninguém imaginava que haveria o conflito na Ucrânia. “Não se falou da possibilidade de uma guerra entre China e Taiwan“, destacou o economista.
Para ele “o principal risco é a questão da China e de Taiwan, pois ali haveria um conflito muito sério e os EUA se envolveriam”. O segundo maior risco é o conflito ucraniano, “que está longe do fim, com ambos os lados se atacando e a economia da UE [União Europeia] muito prejudicada”.
Para João Victor Motta, existem pistas claras de que o Brasil está atento a esses assuntos e quer participar como protagonista dos debates, construindo uma agenda de paz voltada para o comércio internacional. A crise econômica mundial, atenuada também em razão do boicote ocidental à cadeia de chips e produtos de tecnologia da China, revela que fatores geopolíticos e de segurança nacional cada vez mais impulsionam a formulação de políticas governamentais.
Motta ainda lembrou que a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) é um dos objetivos da política externa brasileira e que isso pode ser um processo de ganho para o Brasil ajudar na mediação do conflito bélico na Europa e na questão envolvendo China e Taiwan, situações com as quais os europeus não conseguem lidar.
“As grandes potências, como EUA, China e UE, precisam sentar à mesa e buscar uma solução. E isso não foi feito ainda. Os europeus se encontram entre si e com os americanos, mas ninguém toma a iniciativa de convencer os lados a sentarem à mesa para discutir uma solução, nem mesmo a Organização das Nações Unidas [ONU]”, criticou Feldman.
BNDES na Argentina: mau negócio?
A integração entre países da América Latina “é um imperativo” para o desenvolvimento da região, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em Davos, observando que é preciso obter acordos comerciais e projetos conjuntos de infraestrutura, “sobretudo no que diz respeito à energia limpa”.
Dias depois, o governo Lula, com o presidente em Buenos Aires celebrando o retorno do país à CELAC, anunciou a sua “primeira obra”, o financiamento de US$ 690 milhões (aproximadamente R$ 3,4 bilhões) ao gasoduto Néstor Kirchner, na Argentina.
O anúncio de que recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vão bancar parte da obra, no trecho de Vaca Muerta, gerou uma onda de críticas da oposição, que aponta que o banco deveria emprestar dinheiro aos pequenos empreendedores brasileiros.
João Victor Motta explicou que, de certa forma, ao investir em infraestrutura pela América Latina, o Brasil não apenas garante mercado para suas empresas atuarem, mas também cria uma cadeia necessária para o escoamento de seus produtos na região, sobretudo aqueles provenientes da indústria nacional.
Além de uma “sinalização de que o Brasil volta a ser protagonista na região”, ele aponta que os investimentos são segurados, “geram juros, porque são empréstimos”, e melhoram o escoamento dos produtos, que pode “aumentar nossas exportações para a região“.
“Obras de infraestrutura que garantam esse acesso e diminuam os custos logísticos podem ser fundamentais para a retomada industrial no próximo período”, reduzindo o grave quadro de desindustrialização que o país enfrenta nas últimas décadas.
Fonte: Sputniknews