Em debate na Fiocruz, pesquisadora relaciona padrão de beleza com status social e racismo no Brasil. E defende: sistema de saúde deve garantir cirurgias de afirmação de gênero com menos barreiras, para garantir dignidade e segurança a transexuais
Há 20 anos, o Estado brasileiro reconhecia a necessidade de elaborar uma agenda de direitos da população transexual e travesti. Assim, passou-se a considerar janeiro o mês da visibilidade trans, pauta que indiscutivelmente avançou não só na institucionalidade como em diversos espaços da vida social. Na semana passada, a Fiocruz reuniu pesquisadores para celebrar a visibilidade dessa população e produzir reflexões a partir dos trabalhos dos convidados.
No seminário de abertura, realizado no canal de youtube da Editora Fiocruz, a jornalista Luiza Trindade recebeu Carmen (Alvaro) Jarrín, para o seminário virtual O acesso à saúde das pessoas trans e travestis. Autora de Biopolítica da Beleza: cidadania cosmética e capital afetivo no Brasil (Ed. Fiocruz, 2023), Carmen é pessoa não binária e professora associada do departamento de sociologia e antropologia da Universidade de Duke, na Faculdade Holy Cross, estado de Massachusetts.
Em linhas gerais, sua exposição combinou uma análise histórica da estética e dos padrões de beleza brasileiros, para depois culminar numa compreensão de como tal carga social e cultural incide no SUS e na forma como a população objeto de seus estudos acessa o sistema público de saúde. “Eu fiquei muito interessada no assunto, porque o Brasil é um dos poucos países no mundo que oferece cirurgias plásticas estéticas nos hospitais públicos e filantrópicos que são associados ao SUS”, explicou.
No entanto, sua densa exposição tira qualquer carga de romantismo sobre esta faceta do direito à saúde. Não que Jarrín condene a garantia de tal serviço, mas sua obra analisa as motivações e mecanismos de coerção social que conduzem as pessoas à fila do SUS por procedimentos estéticos.
“Isso começou pouco a pouco, nos anos 60, quando o famoso cirurgião plástico Ivo Pitanguy escreveu o livro Direito à Beleza, conceito desenvolvido a seguir, quando começou a falar que o governo deveria oferecer beleza para os pobres, no sentido de melhorar o país como um todo, embelezá-lo. Mas eu argumento que o projeto dos cirurgiões plásticos é biopolítico, um projeto bastante normativo, sobre quais seriam os tipos de beleza aceitáveis no país ou não. Os pacientes de classe trabalhadora não internalizam tais conceitos de beleza”, afirmou Jarrín, que trabalha em cima dos conceitos de biopolítica e seu interesse pelo controle dos corpos desenvolvido por Michel Foucault.
Como discorre, sua pesquisa desbrava uma dimensão em que as pessoas buscam o procedimento estético não por uma necessidade ou capricho pontual, e sim por uma sistemática submissão a valores dominantes de uma sociedade que começara o século 20 falando abertamente sobre “branqueamento da raça”. Assim, sua pesquisa confirma que o padrão estético desejado combina historicamente questões de classe, raça e gênero.
“José Rebelo Neto, conhecido no ramo como pai da cirurgia plástica brasileira, disse que a disciplina médica trabalha em prol de um ideal de rigidez, eugenia e beleza, e diretamente cita Renato Kehl como inspiração. Fiquei muito interessada nessa ligação entre a eugenia e a cirurgia plástica, pois Kehl é uma pessoa importante na história da medicina do Brasil, foi fundador da Comissão Central Brasileira da Eugenia, publicou vários livros sobre o assunto e teve muita influência no movimento eugênico brasileiro. Um de seus livros mais famosos é A Cura da Fealdade, publicado em 1923, que argumentava que a fealdade era um produto da doença e da degeneração racial, não era simplesmente uma construção social”.
Como demonstra na pesquisa e na sua fala, tal estética era escancaradamente difusora do ideal de branquitude como beleza a ser admirada. Mais do que isso, passaporte para a própria mobilidade social e econômica. “No Brasil, se fala dos cirurgiões plásticos como os magos da beleza. Os cirurgiões plásticos geram um capital corporal e supostamente geram mobilidade social numa sociedade muito desigual. Era muito comum os pacientes de classe trabalhadora de minha pesquisa falarem desta esperança, de que fazer uma cirurgia plástica era conseguir mobilidade social, ou manter a mobilidade social que já tinham conseguido. Isso cria uma hierarquia estética da beleza, uma construção social. Não tem nada de natural, foi construído por uma história específica de raça, gênero e classe”.
A ressignificação da plástica pelo SUS
Em meio à ação desta biopolítica, apareceram nas últimas décadas, com suas lutas por reconhecimento, os corpos e sexualidades dissidentes. Aqui, o sistema público de saúde pode superar a carga cultural discriminatória e realizar contribuições relevantes no processo de inclusão e integração social. Dessa forma, Jarrín é taxativa em afirmar que é hora de o SUS se abrir à população transexual em seus serviços. E a demanda por procedimentos estéticos é exatamente uma das faces onde o preconceito ainda levanta barreiras.
“As cirurgias plásticas no Brasil estão obviamente muito ligadas ao gênero, a cirurgia plástica é muito mais aceitável como prática feminina, as mulheres são facilmente aprovadas para fazer cirurgia no SUS. A falta de feminilidade é vista como um problema, uma patologia que precisa ser medicalizada. E para uma pessoa trans que está tentando se inserir numa sociedade transfóbica, essas cirurgias são ainda, no meu conceito, mais importantes do que cirurgias plásticas para pessoas cisgêneros. Elas podem evitar o suicídio, podem evitar o preconceito na sociedade, e realmente as pessoas que sofrem de disforia de gênero precisam de cirurgia, é um assunto médico”, explana.
Na conversa, Carmen Alvaro Jarrín argumenta que ainda há uma forte invisibilidade da população trans em tais questões. É hora de avançar, inclusive em termos legais e jurídicos. Trata-se de uma opressão que produz trágicos resultados sociais, como facilmente se pode concluir ao observar a expectativa de vida da população trans. Procedimentos clandestinos ou automedicação têm sua contribuição para esta tragédia ainda invisibilizada.
Em termos práticos, Jarrín defende uma legislação que agilize procedimentos e mude exigências como o acompanhamento psicológico de dois anos antes de se permitir a transição – tempo muito maior se somarmos à imprevisível espera na fila. A aprovação recente na Argentina de leis que caminham nessa direção é o exemplo concreto.
“A solução é oferecer o acesso à saúde de uma forma digna no SUS. Se as pessoas tivessem realmente acesso a cirurgias plásticas de afirmação de gênero nos hospitais do SUS, teriam segurança maior. Também haveria resultados mais previsíveis do que fazer uma injeção de silicone líquido com uma bomba, com uma pessoa que não tem formação médica”, finalizou.
No fim das contas, a cirurgia plástica, uma especialidade nascida para sanar os danos de queimaduras e que foi convertida em um produto à venda no mercado, condicionada por determinada construção histórica e valoração social, pode ser convertida em instrumento de avanço nas lutas por dignidade e inclusão de um setor da população até hoje severamente marginalizado.
Fonte: Outra Saúde