Por Afa Neto ( Portal Ipirá City ) – Quinta, 20 de agosto de 2020
Página final do livro “Confiança e Medo na Cidade” de Zigmunt Bauman (Jorge Zahar Editor) e ele lembra das aulas de um professor de Antropologia quando ainda estudava. Segundo ele, os antropólogos “conseguiram identificar a aurora da sociedade humana graças a descoberta de um esqueleto fóssil”. O detalhe era que o tal esqueleto daquele humanoide tinha uma deficiência em uma das pernas. Provavelmente sua perna sofrera uma fratura ainda quando aquele ser era uma criança, no entanto, ele só morrera aos 30 anos. Conclusão: aquele só poderia ser um ser humano; pois se fosse uma criatura outra, um outro animal, sua deficiência poria fim à sua vida. Ela não teria mais condições de se sustentar e acabaria morrendo em algumas horas ou dias. Se a criatura sobreviveu tantos anos é porque alguém cuidou dela. E só o ser humano é capaz desse gesto.
Os demais seres podem parar por algumas horas ou até dias em companhia do outro ferido, mas, o instinto fala mais alto e ele tem que seguir deixando para trás o companheiro. Entretanto, o ser humano não se contenta com um réquiem. Ele insiste em lutar contra as forças da morte e quer levar junto com ele o seu semelhante. Então, ele não somente pára e lamenta, mas solidariza-se e CUIDA.
Pois bem, esse cuidado, que é uma das marcas distintivas do ser humano, está sofrendo tentativas vorazes dessa sociedade pós-moderna no sentido de sufocá-lo, de suprimí-lo. A banalização da vida, o cotidiano de violência, a espetacularização da tragédia, estão produzindo seres humanos inferiores. E são inferiores porque estão sufocando os apelos constantes da nossa mais básica expressão de humanidade: a capacidade de solidarizar-se e cuidar do outro.
O outro se apresenta de duas maneiras: Como o outro “conhecido” e como o outro “desconhecido”. E vejam vocês como a lógica dessa nossa sociedade de mercado soube potencializar essa desumanização para tirar proveito dela. No caso do outro “conhecido”, procuramos evitá-lo porque cuidar dele demanda um tempo que eu não tenho, uma paciência que me foi tirada e recursos que preciso canalizar para o meu bem estar. Mas a consciência ainda grita e quer ser ouvida; então, para ajudar a sufocá-la, eu me chafurdo na indústria do entretenimento e ajudo a movimentar a economia. Talvez assim, esse outro possa “merecer”, através das suas capacidades, reverter a sua situação (da mesma forma como eu mereci).
O outro “desconhecido”, por sua vez, foi transformado no estranho e, como tal, em uma ameaça. E aqui estamos diante de um verdadeiro filão da economia mundial: A paranóia da segurança. Condomínios fechados, circúitos internos de tv, cercas eletrificadas, monitoramento via satélite e uma inteligência orquestrada para gerar o terror. Nesse universo da insegurança o principal vilão é o outro “desconhecido”. Mas não se desespere: O terror movimenta a economia.
É preciso ser honesto. Pensar em solidariedade no mundo da economia de livre mercado é um desatino imperdoável deste que vos escreve. O que as pessoas estão sendo ensinadas a crer é que a competição é a solução para os nossos problemas. Vejam esta pérola do tal do Rodrigo Constantino em seu artigo desta semana (articulista da VEJA): “A livre concorrência é o melhor aliado que os consumidores possuem. Quanto mais empresas tiverem de competir para atender à demanda, melhores terão de ser os serviços prestados, e menor terá de ser o preço cobrado. Poder trocar de fornecedor é a arma mais poderosa dos clientes”.
O raciocínio parece perfeito. Entretanto é preciso lembrar que uma sociedade é feita, antes de mais nada, de pessoas e não de consumidores/clientes. E não me venham pra cá dizer que são áreas diferentes que nós todos sabemos que não funciona assim. Não há como competir e solidarizer-se ao mesmo tempo. A mesma lógica que impera nas questões econômicas é reproduzida nas relações interpessoais.
Acredito que seja esse o grande desafio que temos: o resgate da COMPAIXÃO. “Nascer de novo” enquanto seres humanos e experimentarmos nossa condição básica e primeva da Solidariedade. De olhar para o outro não como uma ameaça mas, como o companheiro de caminhada nesta existência marcada pelas ambiguidades.
Grande abraço.
Afa Neto
Teólogo, Historiador e Especialista em Ética, Subjetividade e Cidadania
@afaneto4
Parabéns pela grande participação deste ser brilhante, Sr. Afa Neto.
Uma pessoa de grande coração e muito conhecimento.
Parabéns Ipiracity por nos proporcionar tamanha fonte de boas leituras e reflexões de Afa Neto.
Obrigado pelo seu comentário Maria Goreth. Estamos a sua disposição.