Em entrevista, autor do livro “A Questão Agrária no Brasil” analisa momento político e importância da luta camponesa
Militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Adalberto Martins, o Pardal, como é mais conhecido, lançou o seu mais recente livro no Armazém do Campo de Porto Alegre, no dia 25 de julho. Graduado em Agronomia, mestre em Ciências Sociais e doutor em Geografia, ele reuniu em “A Questão Agrária no Brasil – da Colônia ao governo Bolsonaro” a história brasileira dos regimes fundiários e das relações sociais de produção no campo.
“É um esforço de síntese, de caráter introdutório, com base em diversas obras que se dedicaram a esclarecer a complexidade da realidade social do país, desde a colônia até o momento atual do capitalismo financeiro”, destaca na apresentação.
Adalberto participou como professor visitante e como coordenador do Ensino Médio no Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC) e atualmente contribui como professor de Agronomia no Instituto Educar (Pontão-RS), em parceria com a Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS). É autor também dos livros “A produção ecológica de arroz e a reforma agrária popular” (Expressão Popular, 2019) e “A História do Brasil na ótica dos regimes fundiários” (MST, 2021).
Confira a entrevista:
Brasil de Fato RS – Você lançou recentemente o livro “A Questão Agrária no Brasil – da Colônia ao governo Bolsonaro”. Como pode ser resumida essa história?
Adalberto Martins – Poder ser resumida por uma classe dominante que em todos os momentos decisivos de nossa história nunca se prestou a pensar uma nação com autonomia, onde tivesse espaço para o povo brasileiro e que promovesse a democratização.
A mentalidade patrimonialista, a visão imediatista e a necessidade de manter a todo custo os seus privilégios marcam a dominação política e econômica em nossos país. Muda-se os agentes que exercem a dominação da classe dominante, como muda-se o regime político, mas estes traços permanecem. E, como pano de fundo disso, temos a concentração da terra e a escravidão como uma herança maldita, que amarra todo o nosso povo a um estado de miséria material e espiritual. Estas condições marcaram o rumo do nosso desenvolvimento periférico, dependente.
A questão da organização do trabalho e a questão agrária marcam as nossas vidas, seja na forma da organização das cidades e da exploração do trabalho, como marcam as formas de apropriação da natureza.
“A mentalidade patrimonialista, a visão imediatista e a necessidade de manter a todo custo os seus privilégios, marcam a dominação política e econômica em nossos país”, defende Adalberto / Foto: Júlia Martins
Cada vez mais, as contradições se aguçam de tal maneira que fica muito visível a necessidade da reforma agrária popular como um dos pilares de novo modo de organização social e civilizatório do nosso país: um Projeto Popular para o Brasil.
BdFRS – O debate da questão agrária está obsoleto, como defende o agronegócio?
Adalberto – A questão agrária se coloca na atualidade de forma muito clara para aqueles que vivem e trabalham no campo e para a classe trabalhadora da cidade. Ela se materializa concretamente com a elevação dos preços dos alimentos, visto a ênfase à exportação pelo agronegócio, deixando de produzir alimentos de base para o mercado interno e priorizando as commodities/exportação. Milhares de pessoas são jogadas à insegurança alimentar e à fome.
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Ela se manifesta também pela contaminação dos alimentos por venenos (agrotóxicos) e por transgênicos nocivos à saúde. Pela contaminação das águas, seja a que bebemos, seja as águas nos lençóis freáticos.
Ela se manifesta nas acentuadas mudanças climáticas, próprias do intenso desmatamento dos biomas brasileiros.
Se manifesta pelo desemprego gerado no campo com o avanço do agronegócio.
Se manifesta pelo aumento da violência no campo e pela apropriação gratuita das terras públicas, ocasionando a destruição das comunidades quilombolas, ribeirinhas, povoados de posseiros, de aldeias indígenas, e grilando as terras dos parques nacionais. Veja o caso recente do assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira.
A questão agrária só faz sentido para estas populações de camponeses e de trabalhadores
Portanto, a questão agrária não é percebida pelo agronegócio, a não ser pelo aumento do seu custo de produção, na medida que os insumos importados são encarecidos com o aumento do dólar ou pela guerra na Ucrânia ou pelo aumento do diesel e da energia elétrica.
Fora isto, o agronegócio está muito bem, obrigado, ganhando milhares de dólares sem pagar um centavo de imposto de tudo que exporta, sem gerar um emprego depois da colheita, já que exporta produto primário, sem pagar um centavo de imposto dos venenos que utiliza em suas lavouras, entre outras tantas subvenções que o Estado brasileiro banca para estes endinheirados.
Por isto, a questão agrária só faz sentido para estas populações de camponeses e de trabalhadores, não fazendo mais sentido para o agronegócio e para o capitalismo. Este é um dos aspectos do que denominamos de Reforma Agrária Popular.
BdFRS – O que é a Reforma Agrária Popular e quais os avanços nesse debate?
Adalberto – Primeiro, é preciso compreender que, se há uma questão agrária no Brasil, é porque há um problema agrário. E, como já indicado, é um imenso problema agrário sentido somente pelo povo brasileiro e não pelos ricos, detentores das terras e do capital. E para superar este problema agrário é que, desde o século XIX, o próprio sistema capitalista desenvolveu a reforma agrária.
A mudança na estrutura fundiária de um país contribui tanto para avançar o mercado interno, na medida em que milhares de pessoas acessam a terra e passam a produzir alimentos, e por isto contribui também para democratizar a sociedade. Quanto a reforma agrária contribui para quebrar o poder político desta fração de classe burguesa, mais identificada como Oligarquias Rurais (e na atualidade também oligarquias financeiras, visto o imbricamento da terra como ativo financeiro).
Ocorre que, para o desenvolvimento do capitalismo em sua fase industrial, a reforma agrária se fez presente justamente para cumprir estas funções econômica e política. Foi o que se denominou de “Reforma Agrária Clássica”, desenvolvida em diversos países capitalistas, seja no século XIX, como no século XX.
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No entanto, nesta quadra histórica em que o setor hegemônico do capitalismo passou a ser o setor financeiro, a reforma agrária clássica ficou sem lugar. Mais do que nunca o agronegócio é justamente a expressão do capital financeiro no campo. É a expressão de uma nova aliança de classes.
Como já indicado só há sentido em falar de reforma agrária na ótica da população trabalhadora e não mais do ponto de vista do próprio desenvolvimento do capital.
Assim a dimensão Popular da reforma agrária ganha evidência, tornando uma bandeira ainda mais revolucionária, pois ela só será obra dos próprios trabalhadores(as) e camponeses(as).
“Mais do que nunca o agronegócio é justamente a expressão do capital financeiro no campo. É a expressão de uma nova aliança de classes” / Foto: Júlia Martins
Mas ela ganha um caráter popular, pois deverá solucionar problemas que afetam diretamente o povo, como a questão da produção de alimentos em quantidade e em qualidade, contribuindo para eliminar a fome, a inflação, como também contribui para recuperar os bens da natureza na medida que se replante milhares de mudas nos assentamentos conquistados.
Ela também é popular porque virá da ação direta das famílias interessadas, não esperando pelo Estado burguês. Iremos tomar as terras improdutivas e as terras das empresas falidas do agronegócio e iremos tratar de colocá-las em produção. E isto significa colocar milhares de hectares produzindo alimentos agroecológicos, satisfazendo a demanda de milhares de pessoas.
Isto é a Reforma Agrária Popular, onde o povo se envolva e satisfaz as suas necessidades
É claro que isto requer nova correlação de forças na sociedade brasileira e por isto que estamos muito empenhados da luta de classes na atualidade e nos envolvendo não só na organização dos comitês populares para debater o projeto popular, como também envolvidos no amplo processo de solidariedade, doando alimentos e refeições, além de estar plantando centenas de mudas de árvores em nossos assentamentos.
BdFRS – Como o MST vem avançando na prática da Agroecologia?
Adalberto – Em nossos assentamentos, as famílias camponesas produzem uma diversidade de alimentos, seja para sua dieta como para a comercialização. Boa parte desta produção é agroecológica, sobretudo pelo não uso de insumos químicos, sejam fertilizantes sintéticos, sejam venenos. Utiliza-se sementes crioulas, produzidas pelos próprios agricultores; utiliza-se esterco animal, biofertilizantes, caldas e tantas outras maneiras históricas que os camponeses(as) já desenvolveram e herdamos de nossos pais e avós.
Mas há também um processo mais intencionalizado, quando olhamos nossas famílias que produzem hortaliças e arroz aqui na região Metropolitana de Porto Alegre. Organizamos grupos produtivos gestados por uma metodologia participativa (os “Grupos Gestores”) e certificados pelo nosso Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade (OPAC).
Nestes processos participativos de gestão e de certificação, ganha força a agroecologia, mas destaca-se a cooperação entre as famílias. Seja cooperação no plano das vendas nas feiras locais, seja no plano do processo em que atuamos com agroindústrias (também certificadas), seja no plano estadual e nacional com a comercialização dos nossos produtos com a marca Terra Livre Agroecológica.
Como também ganha força a participação direta das mulheres nos processos de trabalho, mas também nas tomadas de decisão. Reflete-se sobre o papel das mulheres e da juventude, também presente nestes processos agroecológicos.
A nossa Agroecologia combina práticas sociais, ciência, mas sobretudo organização, tomada de consciência do nosso projeto e luta política por governos populares e por reforma agrária
Em outras regiões produzimos sementes agroecológicas de hortaliças e forrageiras, comercializadas pela cooperativa Coonaterra, através da marca Bionatur. Além da produção de leite a base de pasto em sistema de pastoreio racional voisin.
Agora estamos estudando os bioinsumos e em breve teremos a nossa “biofábrica”, promovendo a difusão destes conhecimentos e qualificando os nossos solos e o aumento da nossa produtividade.
Enfim, a nossa Agroecologia combina práticas sociais, ciência, mas sobretudo organização, tomada de consciência do nosso projeto e luta política por governos populares e por reforma agrária, enfrentando o agronegócio e o seu modelo agrícola de morte.
BdFRS – Dia 25 de julho foi celebrado o dia dos agricultores e agricultoras. Qual mensagem tu deixas a eles diante de tantos desafios?
Adalberto – A mensagem é de esperança, já que novos tempos irão se abrir na medida que derrotarmos o fascismo no Brasil e o seu governo (governo Bolsonaro). Novos tempos que permitirão acumular forças para o nosso projeto de Reforma Agrária Popular e de combate ao agronegócio.
Uma mensagem de ânimo, pois o MST sai deste duro período de regressão social mais fortalecido, pois a sociedade compreendeu que precisará da Reforma Agrária Popular. Ela entendeu que os camponeses cumprem sua função social na medida que plantam alimentos para o mercado interno, mas alimentos sadios, e na medida que as famílias camponesas recuperam e protegem os bens da natureza que se encontram sob sua tutela.
Cada dia mais, a sociedade se identifica com a produção agroecológica e sabe que somente os camponeses(as) são capazes de gerá-la e de desenvolvê-la.
Enfim, a compreensão que fica é de que, em meio às pandemias, à crise climática, à crise econômica e social e crise alimentar, não haverá saídas dentro do marco do capitalismo e que somente a aliança entre os camponeses e os trabalhadores será capaz de reverter esta situação.
A humanidade precisa dos camponeses(as) nesta luta geral, mas também porque ela necessitará da produção camponesa. Não haverá humanidade sem camponeses(as).
Viva as famílias camponesas. Viva a Agroecologia. Viva a Reforma Agrária Popular!
Fonte: BdF Rio Grande do Sul