- Por Giulia Granchi
Durante dez meses, um desequilíbrio intestinal severo causado por uma bactéria fez com que a aposentada Sônia Maria Vitor Oliveira, de 67 anos, tivesse diarreias incontroláveis e persistentes.
“Eu sofria noite e dia, sem controle algum do meu corpo. Precisei usar fraldas e cheguei a perder 45 quilos”, conta ela.
A bactéria Clostridioides Difficile, que causou o problema de saúde de Sônia, está presente no organismo de qualquer pessoa.
No entanto, quando há uso prolongado ou descuidado de antibióticos, as bactérias podem se deslocar, causando o quadro chamado de colite pseudomembranosa, apontam especialistas.
Trata-se de uma inflamação do cólon, região central do intestino grosso, que causa febre, dor abdominal e diarreia.
Sônia, por exemplo, precisou usar muitas medicações diferentes nos últimos anos devido a pressão alta e diabetes, passou por um transplante de rim e teve uma infecção grave por covid-19 durante a pandemia.
O uso prolongado de diferentes medicações, de acordo com o médico Felipe Tuon, que acompanhou Sônia, contribuiu para a disbiose — o desequilíbrio de bactérias na flora intestinal.
Sem apetite e perdendo peso continuamente, ela foi internada no Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba, no Paraná — um dos hospitais universitários que pesquisam transplante de fezes atualmente no Brasil.
“Passei 63 dias internada, foi um período muito difícil. Os médicos encontraram várias úlceras [feridas] no meu intestino. Quando descreveram isso, fiquei com medo de ter câncer. Mas, depois de alguns exames, constataram que era essa bactéria que estava causando os danos.”
Quando escutou do médico a recomendação de um transplante de fezes, Sônia pensou que se tratava de uma brincadeira.
“Eu dei risada, mas ele logo me disse que era sério, e depois acrescentou de forma bem humorada: ‘É um transplante de cocô mesmo. A senhora topa fazer?’ E eu não pensei duas vezes. Disse que se fosse para o meu bem, toparia, sim.”
Como funciona o transplante de fezes
Também chamado de transplante de microbiota fecal, o procedimento é simples e tem como objetivo transferir bactérias intestinais de um doador saudável para uma pessoa que está com a flora danificada.
O primeiro trabalho descrevendo esse procedimento foi feito em 1958, mas, no Brasil, o transplante de fezes aconteceu pela primeira vez apenas em 2013.
Apesar do nome sugestivo, não são literalmente fezes que são colocadas no paciente doente.
O bolo fecal passa por um procedimento para separar as bactérias “boas”, que são os microorganismos presentes no organismo humano que exercem papéis positivos, como ajudar na digestão, fortalecer o sistema imunológico, produzir vitaminas essenciais, competir com bactérias prejudiciais e manter o equilíbrio do microbioma.
Depois, o conteúdo pode ser injetado como pó, após passar por processo de desidratação, ou líquido, a forma mais utilizada, que precisa ser armazenada em um ultrafreezer (-80°C), o que garante a sua viabilidade por cerca de quatro meses.
O procedimento é similar à colonoscopia, exame que analisa o intestino grosso.
Depois de tomar um remédio contra diarreia e ser sedado, o paciente recebe uma injeção do transplante da amostra fecal no cólon através de um tubo de colonoscopia.
“O remédio contra a diarreia segura as bactérias saudáveis no organismo, o que aumenta as chances de se proliferarem e auxiliarem no tratamento”, explica o infectologista Felipe Tuon, responsável pelo projeto no Hospital Universitário Cajuru.
Para Sônia, o transplante foi um sucesso. “Em dez dias não tive mais diarreias, pude parar de usar fraldas e voltar a sair de casa”, conta.
De acordo com Tuon, entre os 30 pacientes que já foram atendidos gratuitamente pelo projeto, 27 tiveram sucesso na cura dos quadros.
“Como pesquisador, embora seja empolgado por trazer benefícios, às vezes sou bastante cético”, diz o médico. “E é também por isso que o transplante surpreende tanto: realmente os pacientes apresentam uma resposta maravilhosa, muitos cessam a diarreia em 24 horas. Além disso, o procedimento evita necessidade de cirurgia, tempo prolongado de internação e infecções por bactérias multirresistentes.”
Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), outra que oferece transplantes de fezes dentro de um protocolo de pesquisa feito no hospital universitário, a taxa de sucesso também é alta: 11 dos 12 pacientes que passaram pelo procedimento tiveram resultados satisfatórios, segundo informou a instituição à BBC News Brasil.
Anvisa estuda regulamentar a técnica
Em 2022, locais como Reino Unido, Estados Unidos e Austrália receberam a aprovação dos órgãos reguladores de saúde locais para realizar o trasplante fecal como opção oficial de tratamento contra infecções recorrentes por superbactérias.
“Nos Estados Unidos, inclusive, já estão mais avançados: a FDA [órgão regulador equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária no Brasil, a Anvisa] aprovou dois comprimidos diferentes que funcionam como transplante de microbiota por via oral”, explica Eduardo Vilela, gastroenterologista e coordenador do Centro da UFMG.
Já no Brasil, a técnica ainda não foi aprovada e regulamentada pela Anvisa e, por isso, não pode ser amplamente oferecidas em hospitais.
As universidades que oferecem o procedimento estão dentro de um protocolo de pesquisa aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa — e devem seguir as regras estipuladas no projeto autorizado.
A Anvisa afirmou à BBC News Brasil que recebeu recentemente um pedido de “enquadramento regulatório” para este tipo de tratamento.
“O ‘enquadramento regulatório’ define qual o caminho de regularização necessário para uma nova tecnologia”, informou a agência.
“No momento, os técnicos estudam o assunto e buscam informações em agências internacionais de referência.”
O infectologista Felipe Tuon considera que a história do transplante de fezes está “apenas começando” no Brasil.
“Ainda é um desafio sem uma legislação específica, mas estamos trabalhando nesse sentido, para que o procedimento seja regulado e que possa ser inspecionado pelos órgãos fiscalizadores, garantindo a segurança para os pacientes”, afirma.
Banco de fezes
Dentro de seus projetos de pesquisa, tanto o Hospital Universitário Cajuru quanto a UFMG, que atende por meio do Hospital das Clínicas, tentam construir bancos de fezes — locais de estoque de material fecal de doadores saudáveis.
“É uma forma de facilitar a oferta para os pacientes que atendemos, e nossa ideia é expandir para oferecer material não só para a nossa instituição, mas também para fora”, afirma Tuon.
Atualmente, os grupos de pesquisadores enfrentam o desafio de encontrar doadores.
“A triagem é extremamente rigorosa, mais exigente que um transplante de órgão. É feita uma entrevista e uma série de exames de sangue e de fezes para garantir que não ocorra nenhuma transmissão de infecção viral, bacteriana, fúngica ou parasitária”, detalha o médico do Hospital Universitário Cajuru.
Eduardo Vilela, coordenador do projeto da UFMG, complementa que os critérios clínicos incluem não ter doença crônica ou em curso e não usar medicamentos, não ter sofrido infecção gastrointestinal nos últimos seis meses e ter boa saúde cardiovascular.
O candidato passa por uma bateria de exames completa, com vários testes sanguíneos para detectar possíveis infecções transmissíveis, além de avaliação clínica e laboratorial.
Por fim, seu material fecal passa por testes moleculares que visam detectar patógenos que não estão causando nenhum sintoma naquela pessoa, mas podem vir a causar no receptor.
“Já avaliamos mais de 170 doadores, e só 6 cumpriram todos os requisitos necessários”, diz Vilela.
“Conseguir um material biológico perfeito é uma preocupação muito grande, já que a segurança é essencial para quem vai passar pelo transplante.”
No Brasil, poucos centros contam com iniciativas semelhantes, e as doações acabam sendo realizadas conforme a demanda.
Por ser uma técnica ainda não regulamentada, se há alguém com indicação de transplante de fezes internado em um hospital, o procedimento pode ser realizado com o consentimento do paciente, que assina um termo.
“Como não há banco de fezes nos hospitais, eles chamam um familiar que passa por toda a triagem”, explica Tuon. “É um processo complicado de se fazer dessa forma individual, porque a pessoa tem que coletar imediatamente, analisar esse material, e o outro paciente tem que estar preparado para fazer o transplante. E ainda há chances de não ser um material biológico ideal.”
Fonte: BBC Brasil