Por Diego Henrique e Lucie Antabi – Quarta, 8 de fevereiro de 2023
O vocábulo leniência, proveniente do latim (lenitate), corresponde à lenidade. Isto é, “brandura, suavidade, doçura, mansidão” [1]. Esse termo para o Direito Penal econômico significa a aplicação de uma sanção ou obrigação mais branda, com menor severidade, concedida em decorrência de uma cooperação voluntária e plena que ajude nas investigações.
Assim, o acordo de leniência pode ser considerado como um instrumento voltado à viabilização das investigações de determinados ilícitos, no âmbito concorrencial, econômico e de combate à corrupção, mediante a criação de incentivos à delação voluntária, especialmente a redução das penalidades que seriam impostas ao delator, na esfera administrativa e/ou criminal, caso as informações prestadas sejam relevantes à investigação em apuração.
No Brasil, atualmente, o acordo de leniência está previsto na Lei nº 12.529/2011 (conhecida como Lei de Defesa da Concorrência ou Lei Antitruste), em relação às infrações contra a ordem econômica, assim como na Lei nº 12.846/2013 (também chamada de Lei Anticorrupção), no que tange aos atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
Tecidas essas considerações, cumpre examinar os principais aspectos do acordo de leniência no âmbito da Lei Anticorrupção.
A Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13), o mais recente diploma legislativo a prever o acordo de leniência, dispõe sobre a responsabilização objetiva nas esferas administrativa e cível de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, não abrangendo, todavia, a esfera penal.
Os atos lesivos à administração pública a que se refere a lei estão descritos no artigo 5º da referida lei, o qual possui o escopo de coibir a prática pelas empresas privadas de atos de corrupção envolvendo agentes públicos, bem como de ilegalidades em licitações e contratos administrativos.
Aliás, observa-se que muitas das condutas nela previstas também são consideradas ilícitas por outras leis, que também preveem sanções pela sua prática. É o caso, por exemplo, da fraude em licitações públicas, que é criminalizada pela Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/93), ou dos atos de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92).
Em outras palavras, uma análise do texto legal revela que os comportamentos descritos e as consequências a ele atreladas, embora intitulados como “administrativos”, tem substância penal. Ora, no tocante aos atos ilícitos descritos no artigo 5º, percebe-se, claramente, que a grande maioria deles tem correspondente na seara criminal.
No tocante ao acordo de leniência, a lei prevê, em seu artigo 16, que a citada celebração seja realizada com a administração. É certo que a empresa poderá ser beneficiada com a redução em dois terços da multa aplicável, além da isenção das penas de publicação da decisão condenatória e de proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público. Saliente-se, ainda, que a lei também prevê a isenção ou atenuação das sanções administrativas eventualmente incidentes dos artigos 86 a 88 da Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93).
Primo oculi, nota-se, mais uma vez, a utilização do direito premial no intuito de viabilizar a apuração de condutas ilícitas. Em uma análise superficial, o aludido acordo de leniência aparenta ser extremamente benéfico, na medida em que a empresa envolvida na prática de uma infração, e na iminência de ser descoberta pelas autoridades públicas, poderia obter uma redução substancial no valor da multa a ser paga à administração em caso de condenação.
No entanto, após uma profunda análise dos dispositivos da aludida lei, nota-se que a lei carece de alguns pontos essenciais para garantir a efetividade do programa de leniência proposto.
Com efeito, a celebração do acordo de leniência não impede que o Ministério Público ajuíze demandas requerendo a suspensão ou interdição parcial das atividades da empresa ou a sua dissolução.
Demais disso, há a possibilidade de persecução na esfera criminal, a qual não está excluída e nem sequer atenuada pela celebração do acordo. Nas palavras de Renato de Mello Silveira [3], “isso, por um lado, pode evitar toda uma sorte de objeções sobre a própria constitucionalidade do instituto. Por outro, talvez iniba o convencimento do leniente, que pode se ver, futuramente, processado criminalmente pelo ato de corruptor inicial”.
Além disso, considerado como um dos mais graves defeitos da citada norma, não há extensão dos benefícios do acordo às pessoas físicas, coautoras dos atos ilícitos.
Em outras palavras, afastou-se o interesse dos dirigentes, administradores e empregados da pessoa jurídica envolvida em auxiliar a administração pública na investigação dos fatos.
Conforme se observa, o acordo de leniência antevisto na Lei Anticorrupção, diferente daquele previsto na Lei Antitruste, apresenta algumas fragilidades. Dentre elas, a ausência de incentivos para o auxílio no combate e apuração das práticas de corrupção, como a não extensão à esfera criminal e às pessoas físicas.
Não resta dúvidas de que o acordo de leniência antevisto na Lei Anticorrupção se baseou naquele previsto na Lei Antitruste. No entanto, quando analisamos comparativamente o regime jurídico do acordo de leniência antevisto em cada uma das aludidas normas, resta absolutamente clara a desconformidade normativa existente.
Nesse sentido, no tocante aos acordos de leniência, verificam-se divergências atinentes aos requisitos, competências e implicações, as quais vêm gerando incerteza jurídica entre os interessados na celebração dos aludidos acordos e colocando em risco a própria efetividade do referido instituto.
Em primeiro lugar, no que tange a competência para a celebração do acordo de leniência, saliente-se que na Lei Antitruste incumbe à Superintendência-Geral do Cade, enquanto que na Lei Anticorrupção compete à autoridade máxima do órgão da administração pública lesado ou, no âmbito do Poder Executivo federal e nos casos de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira, exclusivamente à Controladoria-Geral da União (CGU) — atual, Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle (MTFC), conforme Medida Provisória 726; o que, por certo, poderá, em certos casos, causar um aparente conflito de atribuições. A depender da complexidade dos fatos e da diversidade das infrações investigadas (como ocorreu na operação “lava jato”), haverá diversos órgãos competentes no momento da celebração de eventual acordo.
Em segundo lugar, percebe-se que nenhum dos acordos supra referidos gera implicações protetivas para o colaborador em outros procedimentos sancionadores — devendo, assim, o infrator interessado em cooperar com o Estado buscar diversos acordos de leniência para se blindar, correndo o risco, inclusive, de não conseguir cumprir todos os requisitos antevistos em cada norma.
Outro ponto a ser considerado consiste no fato de que o acordo de leniência no âmbito da Lei Antitruste antevê a isenção da multa na hipótese de leniência prévia. Em dissonância, a Lei Anticorrupção não prevê qualquer tipo de isenção de multa, bem como não faz qualquer diferenciação entre a leniência prévia e a leniência concomitante (ou posterior). Afora isso, tal acordo no âmbito da Lei Anticorrupção não isenta o leniente de determinadas sanções previstas na referida lei (exemplificando, não impede a aplicação da dissolução compulsória da pessoa jurídica, bem como não impede a aplicação das sanções previstas no Direito Antitruste e no Direito Penal).
De outro lado, revelando-se como o principal ponto demonstrativo da referida discrepância normativa do regime jurídico do acordo de leniência antevisto nas aludidas normas, diz respeito aos efeitos penais da celebração do acenado acordo.
Nesse sentido, a Lei Anticorrupção não antevê qualquer efeito penal na celebração do acordo de leniência, tornando-o, assim, pouco ou nada atrativo, ante os riscos que a pessoa física se submeterá ao propor um acordo sabedora do grave risco de vir a ser processada criminalmente.
Em contrapartida, a Lei Antitruste traz em seu programa de leniência benefícios penais para as pessoas físicas envolvidas ao prever redução da pena e/ou extinção da punibilidade do agente. A título de exemplo, em um caso de cartel licitatório, havendo a celebração do acordo e seu efetivo cumprimento, o colaborador se tornará imune a ações penais das mais variadas ordens.
Nesse ponto, certo é que a legislação antitruste evoluiu significativamente. Na legislação anterior (Lei nº 8.884/1994), o benefício penal se limitava aos crimes contra a ordem econômica, ao passo que o novel diploma expandiu os benefícios para todo e qualquer crime, passando a atingir a esfera penal como um todo, todavia apenas para infrações de cartel.
Desse modo, resta evidente que a previsão de um mesmo instituto implantado em distintos diplomas normativos, inclusive com algumas e importantes diferenças no tocante à competência, requisitos e implicações, vem causando incertezas jurídicas, quer para os interessados na celebração do acordo, quer para os entes incumbidos de aplicá-lo.
Portanto, como solução para esse impasse, o presente estudo propõe a criação de uma norma geral versando sobre o instituto da leniência, utilizando-se as experiências estrangeira e nacional (atual Lei de Defesa da Concorrência ou Antitruste, por ter se mostrado a mais completa e eficaz), atenuando-se a insegurança jurídica hoje instalada e, via de consequência, aumentando-se o número de interessados (pessoas físicas e jurídicas) na celebração de tais acordos e o combate às práticas anticoncorrenciais e de corrupção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_____. Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994. Transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em autarquia e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. Diário Oficial da União, Brasília, 13 de junho de 1994.
_____. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 — Código de Processo Penal, e a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei nº 9.781, de 19 de janeiro de 1999. Diário Oficial da União, Brasília, 2 de dezembro de 2011.
_____. Lei nº 12.846, de 01 de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Diário Oficial da União, Brasília, 2 de agosto de 2013.
_____. Portaria nº 910, de 7 de abril de 2015. Controladoria Geral da União. Define os procedimentos para apuração da responsabilidade administrativa e para celebração do acordo de leniência de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, 8 de abril de 2015.
_____. Decreto nº 8.420, de 18, de março de 2015. Regulamenta a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Diário Oficial da União, Brasília, 19 de março de 2015.
_____. Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro de 2015. Altera a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, para dispor sobre acordos de leniência. Diário Oficial da União, Brasília, 21 de dezembro de 2015.
[1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. 1999.
[2] FIDALGO, Carolina Barros; CANETTI, Rafaela Coutinho.Os Acordos de Leniência na Lei de combate à Corrupção. In Lei Anticorrupção: prefácio de Nicolao Dino. São Paulo : Editora JusPodivm, 2015.
[3] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. O acordo de leniência na lei anticorrupção. Revista dos Tribunais, 2014.
Fonte: Conjur