Por Sérgio Rodas – Sábado, 13 de agosto de 2022
O Superior Tribunal de Justiça declarou a ineficácia de acordo de colaboração premiada firmado entre o Ministério Público de São Paulo e a construtora Camargo Corrêa. A decisão está de acordo com a regulamentação do instituto, mas não deve afetar as delações de empreiteiras celebradas na “lava jato”. Isso porque, na autodenominada força-tarefa, as empresas assinaram acordos de leniência, não de colaboração premiada — que foram fechados com os executivos.
Na última terça-feira (9/8), a 6ª Turma do STJ trancou ação penal contra um ex-assessor de secretário de logística do governo de São Paulo que havia sido delatado por ex-executivos da Camargo Corrêa. Estes tornaram-se colaboradores ao aderirem a um acordo de colaboração firmado pela construtora. O Habeas Corpus foi impetrado pelos advogados Vinícius Lapetina, Fausto Silveira e Davi Szuvarcfuter, do escritório Pavan Lapetina e Silveira Advogados.
O Ministério Público de São Paulo firmou, em 2017, acordo de colaboração premiada com a Camargo Corrêa. E executivos da empresa celebraram termos de adesão ao compromisso, declarando que se submetem a todos os termos e condições.
O documento é fundamentado na Constituição, na Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/1999), na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998), na Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), no Código Civil, no Código de Processo Civil e nas convenções de Palermo e Mérida.
A delação premiada unilateral, na qual o acusado coopera informalmente com as investigações e o processo em troca de eventuais benefícios, a serem concedidos pelo juiz na sentença, é prevista na Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas e na Lei de Lavagem de Dinheiro. A colaboração premiada, estabelecida pela Lei das Organizações Criminosas, é formalizada em contrato com o MP, com cláusulas detalhando todos os benefícios e as condições necessárias para obtê-los. O termo precisa ser homologado pelo juiz.
Os ministros do STJ concluíram que, como não é possível investigar ou acusar pessoa jurídica de crimes de organização criminosa, ela não pode celebrar acordo de colaboração premiada com o Ministério Público. Dessa maneira, declararam a ineficácia do termo e a nulidade das adesões feitas pelos executivos da empreiteira. Os magistrados ainda anularam as provas que derivam diretamente do acordo com a construtora e dos termos de adesão.
Advogados ouvidos pela ConJur afirmam que a decisão foi acertada. Antônio Figueiredo Basto, que representou, entre outros, o doleiro Alberto Youssef, o dono da UTC Engenharia, Ricardo Pessoa, e o ex-gerente da área Internacional da Petrobras Eduardo Musa em acordos de colaboração premiada na “lava jato”, afirma que o instituto é incompatível com pessoas jurídicas.
“Pessoa jurídica faz acordo de leniência e usa os anexos das colaborações de pessoas físicas. Embora o objeto seja o mesmo, os efeitos jurídicos e a extensão são distintos”, declara. “Nunca vi acordo com pessoa jurídica. Nem se ventilou essa hipótese. Achei uma forçação de barra”.
Estudioso dos acordos de colaboração premiada, o advogado e professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Antonio Eduardo Ramires Santoro diz que “não faz o menor sentido” que pessoa jurídica firme termo de cooperação. Afinal, o instituto se destina a pessoas físicas que estejam sendo investigadas ou acusadas de pertencimento a organização criminosa — delito pelo qual pessoa jurídica não pode responder.
Se uma pessoa jurídica assina acordo de colaboração premiada ao qual seus diretores podem aderir, a manifestação de vontade dos executivos não é livre, avalia Santoro. “O acordo de colaboração premiada deve ser compreendido como um negócio jurídico, e não como um contrato de adesão. Ele pressupõe uma manifestação livre de vontade negociada”, argumenta o advogado.
Mistura de institutos
Um criminalista que celebrou acordos de colaboração premiada e leniência na “lava jato” afirma que o erro do MP-SP no termo com a Camargo Corrêa foi misturar aspectos cíveis e criminais.
O procurador da República Vladimir Aras destaca que a grande questão foi o MP-SP chamar o documento de “acordo de colaboração premiada”.
“É basicamente um problema de rótulo, isto é, de nome dado ao acordo. Essencialmente, é um acordo de leniência, ao que se batizou de acordo de colaboração premiada. Veja a menção à Lei da Ação Civil Pública e à Lei Anticorrupção empresarial. É a tal questão do ‘nome da rosa'”, opina.
Aras, que também é professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal da Bahia, diz que pessoa jurídica só pode fazer acordo de colaboração premiada nos casos de delitos ambientais (previstos na Lei 9.605/1998) — afinal, elas podem responder criminalmente por tais infrações. Porém, empresas podem celebrar acordos de leniência (nos termos da Lei Anticorrupção), acordos de não persecução civil (ANPC) ou termos de ajustamento de conduta (conforme a Lei da Ação Civil Pública).
Portanto, “a iniciativa do MP-SP e da empresa merece aplauso, não crítica”, analisa o procurador. A seu ver, o STJ deveria ter conferido ao documento da Camargo Corrêa a natureza jurídica de acordo de leniência, ANPC ou TAC, sem anulá-lo.
Sem impacto na “lava jato”
A decisão do STJ não afetará os acordos firmados na “lava jato”. Na operação, empresas não celebraram acordos de colaboração premiada. Companhias como Odebrecht e Andrade Gutierrez assinaram acordos de leniência com o Ministério Público Federal. E executivos aderiram ao compromisso por meio de colaborações.
Para Antonio Santoro, tal modelo é problemático. Segundo ele, os acordos de leniência deveriam ser firmados pela empresa e o órgão responsável — no caso do governo federal, a Controladoria-Geral da União. Caberia ao MP interceder junto à instituição, mas não celebrar o compromisso.
Efeitos para empresa e executivos
O STJ anulou as provas diretamente oriundas do acordo de colaboração premiada firmado com a Camargo Corrêa e dos termos de adesão dos executivos. Mesmo com a decisão da corte, o compromisso pode ser preservado, bem como os benefícios concedidos à empresa e a diretores, além dos inquéritos e ações penais originados de suas informações, diz Vladimir Aras.
Segundo ele, a corte pode preservar o compromisso com ponderações constitucionais e legais, conjugando colaborações cíveis (como ANPC ou TACs com a pessoa jurídica) e acordos penais com as pessoas físicas.
“Um dos grandes desafios das saídas consensuais em casos de criminalidade corporativa é justamente alcançar acordos que atendam aos interesses das pessoas jurídicas e não deixem expostas as pessoas físicas ligadas a elas. É uma questão de justiça e equidade que talvez possa ser observada pelo STJ em eventual recurso do MP ou da empresa”, avalia o procurador, mencionando que o tribunal pode validar o documento como um acordo de leniência. Caso ele seja realmente anulado, a empreiteira pode assinar outro termo e repetir os atos probatórios.
Como a Camargo Corrêa e os executivos firmaram os compromissos de boa-fé, as provas decorrentes deles não devem ser invalidadas, sustenta o professor da UFBA.
Um criminalista entende que houve erro na celebração do acordo, mas seria exagero o STJ anular os benefícios e processos decorrentes dele devido a isso.
Por outro lado, Antonio Santoro aponta que, com a anulação do acordo, são inválidos os benefícios à empresa e executivos e os inquéritos e ações penais decorrentes de suas informações.
“As pessoas físicas que aderiram vão ter graves problemas. Mas é inevitável que se sofra consequências quando se celebra um negócio jurídico fora das hipóteses legais. Tal como acontece quando o acordo é rescindido ou quando o proponente, que é quem pretende ser colaborador, formula uma proposta ao MP e este recusa, o que ele disse não pode ser utilizado nem contra ele nem contra terceiros. Perde o valor de prova e, por consequência, ele não goza dos benefícios que foram acordados”, analisa o professor da UFRJ.
Ele lembra que os executivos podem firmar acordos de colaboração premiada a qualquer momento. No entanto, pode haver diferença quanto aos benefícios. Se o termo for celebrado durante a investigação ou processo, o colaborador poderá ter sua pena reduzida em até dois terços ou substituída por restritiva de direitos ou até receber perdão judicial. Caso a colaboração seja posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.
Fonte: Conjur