Agência ligada ao Governo federal e instituição do estado de São Paulo apresentam versões contraditórias sobre interrupção de testes da Coronavac
AFONSO BENITES – Brasília – 10 NOV 2020 – 19:31 BRT
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, entrou hoje numa guerra de versões com o Instituto Butantan, do governo paulista, sobre a medida de suspender os testes da vacina Coronavac, fabricada pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o órgão estadual. Durante coletiva na tarde desta terça-feira, a liderança da agência disse encarar como uma decisão técnica a paralisação dos estudos e negou que o órgão esteja contaminado pela disputa política entre o Palácio do Planalto e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB-SP), em torno da questão – hoje, Bolsonaro celebrou a suspensão dos testes. Já em outra coletiva, na parte da manhã, o Butantan sustentou a posição de que o “evento adverso grave” observado em um voluntário do estudo clínico da Coronavac não teve relação com o imunizante e que a instituição foi notificada com antecedência, no dia 6 de novembro. Segundo informações de diversos veículos, o voluntário teria cometido suicídio.
De acordo com Antônio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, as informações enviadas pelo Butantan foram consideradas insuficientes pela área técnica para continuar desenvolvendo o procedimento de teste da vacina contra o coronavírus. “A decisão tomada ontem pela gerência geral de medicamentos era a única a ser tomada. Em sede de dúvidas, para o teste”, afirmou. Ele diz que o órgão não foi informado sobre a causa da morte do paciente. “Informação para nós não é informação se não vem pelo canal correto. Não é brincadeira de criança”, disse. Ele negou que tenha informado a imprensa sobre a suspensão antes de avisar o Butantan.
A Anvisa diz que a morte do paciente ocorreu no dia 29 de outubro. De acordo com a instituição, o Butantan teria enviado um comunicado para a agência no dia 6 de novembro, mas essa informação não chegou pelo sistema porque as redes do governo brasileiro sofreram ataques hackers. O Ministério da Saúde, então, teria comunicado de maneira informal à Anvisa de que havia a possibilidade de ter ocorrido a morte de um voluntário. A agência diz ter procurado o Instituto de maneira oficial. Este, por sua vez, enviou um novo comunicado às 18h do dia 9 de novembro, segunda-feira. Nele, havia apenas a informação de que houve um “evento adverso grave não esperado”, sem nenhum outro detalhamento. Não tratava da causa morte, por exemplo. No mesmo dia, um comitê interno da Anvisa se reuniu, e às 20h47 comunicou ao Butantan que os testes deveriam ser suspensos. “Permitir a continuidade [dos testes] estaríamos, ouso dizer, beirando uma prática criminosa”, disse Barra Torres. Conforme a Anvisa, um comunicado foi feito à imprensa às 21h25 do mesmo dia.
O presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, disse que soube pela imprensa a respeito da proibição. “É uma notícia que causa surpresa, insegurança e, no nosso caso, causa até indignação”, afirmou, sem dissimular sua chateação. A divulgação da nota da Anvisa sem detalhar que a suspensão não levava em conta ocorrência não relacionada à vacina gerou celeuma, uma vez que a interpretação inicial era de que alguma coisa grave havia acontecido com um voluntário por causa dos testes com a vacina.
Polarização política
O mal-estar ganhou proporções internacionais, uma vez que a vacina é a esperança para conter a pandemia que já matou mais de 1,1 milhão de pessoas no mundo. Com vários estudos em andamento, a disputa saltou para o cenário político, com uma torcida anti-China entre integrantes do Governo, uma vez que a Coronavac tem apoio do governador João Doria. Barra Torres diz que a instituição não entra na politização entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e Doria. “O que o cidadão brasileiro não precisa agora é de uma Anvisa contaminada por uma questão política. Ela existe? Existe, mas daqui para fora”, disse ao ser indagado sobre a comemoração que Bolsonaro fez diante da paralisação do teste do Instituto Butantan e da Sinovac. “Nós não tecemos no passado, não teceremos agora, nem teceremos no futuro comentários sobre questões políticas”, afirmou.
Torres diz que é natural paralisar testes. Isso já ocorreu com vacinas que estão sendo testadas pela AstraZeneca e pela Johnson & Johnson. “A Anvisa não é parceira de nenhum desenvolvedor, nenhum laboratório, nenhum instituto, ninguém do setor regulado. Não somos parceiros”. Ele disse que o papel da agência é o de ser um árbitro do processo. Comparou a paralisação dos testes com o uso do VAR em partidas de futebol. Ao ser questionado se tratou da paralisação dos testes com Bolsonaro, não negou nem confirmou. Apenas alegou que a Anvisa manterá o seu trabalho. “Costumo me ater dentro do meu quadrado. O momento que estamos vivendo precisa de pessoas técnicas como nós dentro de seus quadrados. Sair dele causa confusão e descrédito à população”.
Foi a mesma linha adotada pelo gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos da Anvisa, Gustavo Mendes, durante a coletiva. “Uma situação de politização põe em xeque o nosso trabalho, o que é muito ruim”, afirmou. “Não poderíamos correr o risco de que mais voluntários fossem vacinados sob o risco de termos eventos adversos semelhantes. Usamos o princípio da precaução. E é isso que tem pautado o nosso trabalho”, disse Mendes, que comanda uma equipe de 250 servidores da agência que analisam o registro de novos medicamentos e vacinas.
Mendes disse ainda que não foram suspensas todas as etapas dos testes da vacina Coronavac, apenas a vacinação de novos pacientes voluntários. Segundo ele, fases como acompanhamento dos voluntários, a compilação dos dados existentes e o desenvolvimento biotecnológico da vacina poderão prosseguir normalmente. “O estudo clínico não é só a vacinação (…) O que foi interrompido foi a vacinação por um princípio de prevenção e cautela”, afirmou. Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, a Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), também comunicada sobre o caso, recomendou a continuidade dos testes. A entidade, ligada ao Ministério da Saúde, é uma das que dão autorização para pesquisas científicas no Brasil, ao lado da própria Anvisa.
O diretor-presidente ficou marcado durante a pandemia de coronavírus por ter participado ao lado de Bolsonaro de uma manifestação com centenas de pessoas em frente ao Palácio do Planalto, em maio. Perguntado sobre a sua participação naquele evento, ele disse que já havia se manifestado sobejamente sobre este tema, não o faria novamente nesta terça-feira.
Fonte: El País