Por Caio Gama Mascarenhas – Sábado, 8 de julho de 2023
A linha que separa federalismo e separação de Poderes está cada vez mais tênue, principalmente na seara orçamentária após a Emenda Constitucional 105/2019. Disciplinadas por esta EC, destacam-se atualmente modalidades de transferências intergovernamentais (federalismo fiscal) decorrentes de emendas individuais de orçamento impositivo (separação de poderes) do artigo 166-A da Constituição.
Essa provocação reflete uma análise crítica feita em um artigo de nossa autoria chamado “orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção” recentemente publicado na revista eletrônica do PGE-RJ (veja aqui de acesso ao artigo) [1].
A transferência especial foi a espécie que representou a verdadeira inovação apresentada pelo texto do artigo 166-A do texto constitucional. Essa modalidade de repasse é realizada diretamente ao ente federado beneficiado, independentemente da identificação da programação específica no orçamento federal e da celebração de convênio ou de instrumento congênere. Sua característica mais marcante é a previsão de que seus recursos passam a pertencer ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira, havendo quem defenda que possua natureza jurídica de doação (sem contrapartida).
Os recursos dessa modalidade de transferência devem ser aplicados em programações finalísticas das áreas de competência do Poder Executivo do ente federado beneficiário. Em razão da velocidade em que os recursos transferidos chegam aos seus beneficiários sem a intermediação bancária de instituição financeira, essa modalidade de repasse foi apelidada de “emenda Pix” (em referência ao modelo de pagamento eletrônico instantâneo em real brasileiro).
Por que foram criadas as transferências especiais?
Em verdade, seus benefícios prevaleceram durante os debates no Congresso Nacional. A arquitetura simplificada desses repasses teriam as seguintes vantagens: 1) o destrave da excessiva burocracia imposta pelo atendimento das regras das transferências voluntárias; 2) redução da avalanche de obras paralisadas ou inacabadas em todo o país em razão de tal burocracia; 3) incentivo aos gestores, sobretudo para alavancarem os investimentos públicos em infraestrutura ou em equipamentos públicos, estimulando a atividade econômica local; e 4) diminuição nos custos de gestão pela Caixa Econômica Federal (instituição financeira mandatária), cuja taxa de administração variava de 2,5% a 11,7% sobre o valor das emendas [2].
A transferência com finalidade definida, por sua vez, é conceituada por exclusão e se trata de um regime geral de descentralização fiscal observado pelas emendas parlamentares de execução obrigatória. Na prática, essas transferências já eram realizadas antes da Emenda Constitucional 105/2019 [3], embora não tivessem a atual denominação que lhes foi dada pelo artigo 166-A.
Encontram-se aqui as transferências fiscais decorrentes de orçamento impositivo que não são da nova modalidade “transferência especial”. Essa transferência observa a tradição do direito orçamentário de especificar a programação federal a qual se vincula e destina a despesa pública (orçamento-programa) e de ter seus recursos aplicados em áreas de competência constitucional da União (privativa, comum ou concorrente). Nota-se que essas características genéricas são aplicáveis à toda emenda parlamentar (programação específica e observância dos limites da competência).
Alerta-se que a transferência com finalidade definida não segue necessariamente o rito da transferência voluntária como defendido por alguns estudiosos e técnicos. Esse tipo de repasse detém características singulares (inexistência do óbice de inadimplência, por exemplo) e pode seguir outros procedimentos. Nesse sentido, essa modalidade de transferência pode seguir tanto o rito das transferências “fundo a fundo”, quanto o rito tradicional de transferências voluntárias realizadas por convênios ou instrumentos congêneres — podendo seguir inclusive outros ritos eventualmente criados pelo legislador infraconstitucional.
Ressalta-se que as transferências do artigo 166-A podem seguir distintos procedimentos de descentralização de recursos. Três são os ritos: 1) o rito de transferências “fundo a fundo”; 2) o rito tradicional de transferências voluntárias realizadas por convênios ou instrumentos congêneres; e 3) o rito das transferências especiais.
O procedimento da transferência fundo a fundo se caracteriza pelo repasse direto de recursos provenientes de fundos da esfera federal para fundos da esfera estadual, municipal e do Distrito Federal, dispensando a celebração de convênios. Exemplos de fundos que operam essa modalidade de transferência são: o Fundo Nacional da Assistência Social (Fnas) e o Fundo Nacional de Saúde (FNS). Operacionalizada por meio de repasses diretos entre fundos de entes federados, essa modalidade de transferência geralmente se destina a atender despesa obrigatória e de caráter continuado [4] advinda de lei, medida provisória ou ato administrativo.
O procedimento da transferência voluntária decorre do disposto em instrumento formal de repasse para a realização de uma determinada ação (por exemplo, a construção de escolas públicas e hospitais. Transferência voluntária é aqui abordada como um procedimento específico de descentralização fiscal que utiliza convênios ou instrumentos congêneres (artigo 25 da LRF), seguindo normas e condicionantes rígidas (Portaria Interministerial nº 424/2016).
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LCP nº 101/2000) prevê um capítulo inteiro destinado à regulação das transferências voluntárias. Os repasses de verbas geralmente financiam projetos de infraestrutura (despesas de capital) e são instrumentalizados por convênio, contratos de repasse e outros instrumentos congêneres. Há aqui uma estipulação de plano de trabalho, metas, cronograma, contrapartida, etc, permitindo o acompanhamento e fiscalização da obra/serviço por parte do ente transferidor.
As transferências voluntárias são objeto de intensa normatização (LRF, LDOs, normas infralegais como a Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU nº 424/2016), com inúmeras condições e exigências para sua realização.
Previsto no artigo 166-A da Constituição, o procedimento das transferências especiais é simplificado e independe de convênio ou instrumentos congêneres. Não há estipulação de plano de trabalho, metas, cronograma, contrapartida, etc. Cuida-se de uma modalidade de transferência de iniciativa exclusiva de parlamentares, especificamente por meio de emendas individuais.
O Tribunal de Contas da União (TCU) já chegou a tratar as transferências com finalidade definida como um “subtipo das transferências voluntárias” [5]. No entanto, há precedente de tal Corte de Contas de antes da EC nº 105/2019 que pondera que emendas individuais de orçamento impositivo também realizam descentralização de recursos por meio de transferências “fundo a fundo” [6].
Uma interpretação sistemática do texto do artigo 166-A da Constituição com seu regulamento infraconstitucional leva a crer que as transferências com finalidade definida não se resumem ao rito das transferências voluntárias. Há, por exemplo, previsão expressa de transferência “fundo a fundo” na regulamentação das transferências de finalidade definida nas portarias interministeriais que tratam do assunto [7].
Por outro lado, o §4º do artigo 166-A da Constituição silencia a respeito da necessidade de celebração de convênio ou de instrumento congênere, somente vinculando a despesa à “programação estabelecida na emenda parlamentar” — programação essa que pode indicar modalidades de despesas distintas das transferências voluntárias (aplicação direta e transferência “fundo a fundo”) [8].
É digno de nota que as emendas individuais destinadas à área da saúde (pelo menos metade) são consideradas como sendo de finalidade definida, não podendo ser veiculadas por transferências especiais [9].
A inobservância das regras procedimentais exigidas para as transferências com finalidade definida pode resultar em impedimento de ordem técnica à execução da despesa. As razões que acarretam tais impedimentos são especificadas em portarias do Poder Executivo e, usualmente, consistem em um amplo rol de itens para as despesas operacionalizadas via transferências com finalidade definida, enquanto limitam-se a número bem inferior para a modalidade “transferências especiais”. Isso ressalta a maior facilidade desse último tipo de repasse em entregar os recursos ao destinatário.
Destaca-se que a Constituição (por meio da EC nº 105/2019) é literal no sentido de que somente as emendas individuais podem alocar recursos aos demais entes por meio da nova modalidade (transferência especial). A Carta Magna não fornece suporte jurídico para estender o mecanismo das transferências especiais às emendas de bancada pela via infraconstitucional, necessitando de outra emenda constitucional para tanto.
Por último, é possível defender que Estados possam reproduzir essas regras de emendas parlamentares impositivas em matéria orçamentária em suas constituições estaduais, desde que a reprodução seja idêntica e posterior à EC nº 105/2019 em razão do princípio da simetria [10]. É o caso do artigo 175-A da Constituição Estadual de São Paulo (acrescentado pela Emenda Constitucional nº 50/2021), segundo o qual “As emendas individuais impositivas apresentadas ao projeto de lei orçamentária anual poderão alocar recursos aos Municípios por meio de: I – transferência especial; ou II – transferência com finalidade definida”.
Fonte: Conjur
[1] Para citação: MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: Notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ), [S. l.], volume 6, número 1, 2023. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/340/269 .
[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer da Comissão Especial destinada a proferir parecer à Proposta de Emenda à Constituição nº 048-A, de 2019. Senado Federal: Brasília, 2019.
[3] A justificativa do texto substitutivo que passou a prever e definir as transferências com finalidade definida é expressa ao apresentar a nova forma de repasse “transferência especial” mas faz a seguinte ressalva da prática de repasse que já ocorria: “sem prejuízo de opção pela forma como atualmente ocorre, ou seja, mediante transferência com finalidade definida”. Fonte: BRASIL. Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer à Proposta de Emenda à Constituição nº 48-A, de 2019, do Senado Federal, Op. cit.
[4] Segundo o artigo 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000): “Artigo 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios”.
[5] Acórdãos do plenário do plenário do Tribunal de Contas da União nº 287/2016, 2704/2019 e 439/2021.
[6] É o caso do acórdão do 2407/2019 do plenário do TCU: “54. Quanto à modalidade de aplicação, as emendas podem ser realizadas de diversas maneiras, sendo as mais comuns a concretização por transferências voluntárias (convênios e contratos de repasse), por transferências fundo a fundo (comuns nas áreas de saúde e educação) e aplicações diretas. Verificou-se que pouco mais da metade (52%) de todas as emendas individuais a estes órgãos se deu por meio de transferências voluntárias. A modalidade fundo a fundo alcançou 30% do quantitativo das emendas e 10% se deu por meio de aplicação direta. Restaram, contudo, 8% a definir, que indica uma provável inércia do parlamentar quanto a este aspecto”.
[7] Notadamente: §2º do artigo 7º da Portaria Interministerial MPO e MGI e PR/SRI Nº1/2023 e §2º do artigo 5º da Portaria Interministerial ME/SEGOV-PR nº 6.145/2021. Outra questão digna de nota diz respeito ao §8º do artigo 7º da Portaria Interministerial MPO e MGI e PR/SRI Nº1/2023. Segundo tal dispositivo, a “indicação de emenda parlamentar, cujo beneficiário seja consórcio público, serviço social autônomo ou organização da sociedade civil, deve se dar na modalidade transferência com finalidade definida”. Se as transferências de finalidade definida fossem instituto novo e específico, elas deveriam ser limitadas aos entes federados e não às entidades privadas e associações de direito público (como os consórcios).
[8] O fato de as transferências especiais independerem “de celebração de convênio ou de instrumento congênere” (inciso I do §2º do artigo 166-A) não leva à conclusão inversa em relação às transferências com finalidade definida, cujo texto constitucional silencia a respeito. Considerando uma interpretação autêntica, até as discussões legislativas que levaram à Ec nº 105/2019 consideravam as transferências com finalidade definida como algo que já ocorria — lembrando que as emendas individuais com transferências “fundo a fundo” eram tão comuns quanto as transferências voluntárias.
[9] BRASIL. Câmara dos Deputados. Nota Técnica 02/2021, op. cit., p. 4.
[10] Nesse sentido, os seguintes precedentes do Supremo Tribunal Federal: ADI 6308, Tribunal Pleno, julgado em 06/06/2022; ADI 6670, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2021.
Fonte: Conjur