06/05/2021
Fonte: Informe Ensp
As pessoas privadas de liberdade (PPL) têm risco elevado de infecção pelo Sars-CoV-2, especialmente em países de baixa e média renda como o Brasil, onde mais de 700 mil indivíduos nessa situação vivem, na maioria dos casos em celas coletivas, insalubres, pouco ventiladas, superlotadas e, não raro, com acesso limitado à água. O alerta vem do artigo Por uma estratégia equitativa de vacinação da população privada de liberdade contra a Covid-19, dos pesquisadores Luciana Simas, Bernard Larouze, Vilma Diuana, Alexandra Sánchez, publicado pela revista Cadernos de Saúde Pública, publicada pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). Eles defendem o acesso das PPL à vacinação contra a Covid-19, ampliação das medidas básicas de controle de transmissão nas prisões, com teste diagnóstico e assistência. “Para a preservação desses direitos fundamentais, será necessária uma ativa fiscalização por parte dos órgãos do sistema de justiça (especialmente Ministério Público e defensorias) e por organizações da sociedade civil”, alertam.
Os pesquisadores também denunciam que “essas condições desumanas não permitem respeitar as principais medidas preconizadas para prevenção da pandemia, quais sejam, distanciamento social e medidas de higiene individuais e coletivas. As máscaras faciais disponibilizadas em algumas prisões são utilizadas, na maioria das vezes, só para deslocamentos externos e raramente no interior das celas, onde a situação de aglomeração é permanente”.
O artigo explica que, como medidas de contenção da transmissão, foram interrompidas visitas, transferências entre unidades prisionais e atividades coletivas em escolas e oficinas e mesmo o banho de sol, que se tornou mais raro. Por outro lado, foram pouco aplicadas medidas desencarceradoras, recomendadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para reduzir a superlotação nas prisões por meio da liberdade provisória ou definitiva de PPL em final de cumprimento da pena ou em regime semiaberto, ou ainda prisão domiciliar para aqueles com maior risco de evolução grave ou fatal, sejam presos com comorbidades (grupos de risco), sejam presos idosos (1,26% [9.489] das PPL no Brasil tem mais de 60 anos). Em poucas locais, as PPL idosas foram isoladas em algumas prisões, para se beneficiarem de um acompanhamento médico reforçado.
Os dados oficiais sobre infecções e óbitos publicados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça, a partir de informações fornecidas pelas administrações estaduais, não permitem dimensionar a real situação epidemiológica da Covid-19 nas prisões, devido ao extremamente limitado acesso das PPL ao teste RT-PCR e ao fato de serem incluídos nesse sistema unicamente casos laboratorialmente confirmados. A isso soma-se a suspensão da realização, em decorrência da pandemia, de necrópsias de pessoas presas e a impossibilidade de detectar os óbitos por Covid-19 ou por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) considerados como suspeitos de Covid-19, ocorridos durante o encarceramento, por meio do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), que não permite identificar a origem prisional dos falecidos. Recente levantamento do CNJ assinala aumento de 190% nas mortes por Covid-19 nas prisões nos primeiros 67 dias de 2021 em relação aos últimos 70 dias de 2020 (n = 20 óbitos vs. 58). Além disso, por meio dos dados do Depen, é possível observar ao nível nacional, entre 2019 e 2020, um aumento da taxa global de óbitos em PPL > 60 anos da ordem de 25%, sugerindo impacto significativo da Covid-19 na mortalidade entre os idosos encarcerados.
Dada a impossibilidade de aplicação efetiva às PPL de medidas de prevenção fundamentais, de acordo com o artigo, é possível inferir que a pandemia nas prisões não poderá ser contida, mesmo que de maneira parcial, sem vacinação. Como são cidadãs e cidadãos brasileiros, as PPL, vivendo sob a responsabilidade do Estado, devem se beneficiar das mesmas estratégias de prevenção, especialmente o acesso às vacinas, tal como a população livre.
No Brasil, no início das discussões técnicas acerca da elaboração do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (Pnov-Covid-19), as PPL integravam a fase 4 de vacinação, depois dos profissionais de saúde, idosos, indígenas e pacientes com comorbidades, explica o artigo. Receberiam vacinas juntamente com professores, forças de segurança e salvamento, bem como funcionários do sistema prisional, considerando-se critérios epidemiológicos referendados por diversos órgãos técnicos consultados pelo Ministério da Saúde. Todavia, o Governo Federal prestou informações ao Supremo Tribunal Federal (STF), no processo que discute a distribuição de vacinas contra o coronavírus para toda a população (ADPF nº 754/DF), apresentando uma versão do Plano, sem incluir a população prisional nos grupos prioritários.
Após muita reação por parte de diferentes setores, a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde revisou o Plano e encaminhou nova versão ao STF, indicando a população prisional como grupo prioritário pela elevada vulnerabilidade social, considerando-se que as condições do aprisionamento elevam a possibilidade de contaminação. Nesse documento, o Governo Federal determina que o planejamento e a operacionalização da vacinação nos estabelecimentos penais sejam articulados com as secretarias estaduais e municipais de Saúde e secretarias estaduais de Justiça (secretarias estaduais de Segurança Pública ou correlatos), de acordo com a Política Nacional de Atenção Integral aÌ€ Saúde das PPL no Sistema Prisional (PNAISP).
Para os especialistas, um ponto extremamente importante é que o Pnov-Covid-19, no que se refere à população privada de liberdade, desconsidera a existência, nessa população, de integrantes dos grupos reconhecidamente de maior risco de evolução grave ou fatal, como idosos com > 60 anos e/ou portadores de comorbidades (diabetes mellitus; insuficiência renal; doenças cardiovasculares e cerebrovasculares; hipertensão arterial grave; imunodeficiência, como a determinada pela infecção pelo HIV/Aids; doença pulmonar crônica, como asma; extensas lesões pulmonares consequentes de tuberculose; anemia falciforme; neoplasias, dentre outras), cuja vacinação é considerada como de elevada prioridade na população livre. Essas comorbidades são especialmente frequentes entre PPL, que pertencem aos estratos mais vulneráveis da população e cuja situação de saúde se agrava pelas importantes limitações do sistema de saúde prisional.
De acordo com os princípios constitucionais de igualdade e universalidade do acesso à saúde, as PPL que pertencem aos grupos de risco devem ser incluídas no calendário estabelecido para a população em geral, como ocorre, por exemplo, na França e, no Brasil, no Distrito Federal, que recentemente iniciou a vacinação dos idosos encarcerados por faixa etária. Em particular, não há que se considerar que presos idosos encarcerados tenham menor risco de infecção pelo Sars-CoV-2 e de evolução mais branda do que idosos vivendo em asilos, abrigos ou casas de repouso, uma vez que as condições ambientais e o acesso à assistência tendem a ser piores nas prisões. Nessa mesma lógica, os funcionários do sistema prisional, sejam eles profissionais de saúde > 60 anos, sejam profissionais de segurança com comorbidades, estão sendo e serão vacinados, de maneira assertiva, de acordo com o calendário previsto para sua condição individual, que prevalecerá em detrimento do seu pertencimento ao grupo de profissionais do sistema penitenciário.
Deve ser ressaltado, segundo os pesquisadores, que a Covid-19, na medida em que centraliza os recursos humanos e materiais dos já fragilizados serviços de saúde do sistema prisional, tende a reduzir a atenção para outras doenças, especialmente as crônicas e infeciosas, muito comuns na população prisional. Assim, além de medidas de controle básicas, a vacinação contra o Sars-CoV-2 constitui um elemento importante para melhorar a assistência à saúde global dos presos. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária pondera que quanto maior a demora da vacinação, maiores serão os gastos com prevenção e assistência à saúde da população carcerária, evitando que esses recursos sejam disponibilizados para outras áreas que necessitam de atenção.
Outro aspecto a ser considerado no ambiente carcerário, dizem eles, embora ainda desconhecido, é a eventual emergência e o grau de circulação atual de novas variantes do Sars-CoV-2. Algumas são mais transmissíveis e – mesmo que ainda não confirmado – poderiam ser, com especial frequência, responsáveis por formas graves da doença, propiciando o surgimento de novas ondas epidêmicas intramuros.
Em uma perspectiva de garantia dos direitos humanos, as PPL devem receber tratamento com os mesmos critérios que estabelecem a hierarquização dos riscos e as prioridades aplicadas à população geral, sem razões para distingui-los, prevalecendo sua condição individual sobre o fato de, temporariamente, integrarem a população prisional. Nesse sentido, na difícil e limitada alocação das vacinas, a busca por um equilíbrio com equidade deve considerar as comorbidades, a idade e o ambiente no qual essas pessoas estão inseridas.
Por fim, o artigo ressalta que a vacinação contra o coronavírus deve ser um instrumento de reversão de iniquidades em saúde para as pessoas que mais precisam, tal como a população carcerária, que, como seus familiares, vive em situações de extrema vulnerabilidade e enfrenta maiores obstáculos no acesso à saúde. “Portanto, são necessárias abordagens interinstitucionais eficazes, de modo a oportunizar chances de prevenção e garantia efetiva do direito à saúde, sob pena de o Estado ser responsabilizado por sua omissão”.