Presentear um punhado de doces é tão sinônimo de Halloween quanto uma fantasia assustadora ou uma abóbora macabra.
Mas, há 166 anos, em 31 de outubro de 1858, essa tradição normalmente inofensiva causou a morte de várias crianças, semeou pânico em Bradford, na Inglaterra, abalou o país e levou a alterações nas leis do Reino Unido.
Tudo porque alguém quis economizar no uso de açúcar na produção de balas em uma farmácia.
Quando William Hardacre encerrou o dia de trabalho, parabenizou a si mesmo pelo sucesso nas vendas.
Naquele dia, o dono de barraca no mercado local, conhecido por muitos como Humbug Billy, o ‘Billy da bala de hortelã’, não só havia vendido cinco quilos de pastilhas de hortelã para os moradores de Bradford, como também tinha comprado elas por um preço barato.
Ao buscar os doces no revendedor, ele havia notado que eles estavam mais escuros do que o normal. Pechinchou com o confeiteiro Joseph Neal e conseguiu uma economia de meio centavo por quilo.
Mas a falha de Hardacre em questionar a qualidade do produto foi um grave erro — no anoitecer do dia seguinte, vários de seus fregueses estavam mortos.
De início, o médico que atendeu Elijah Wright, de nove anos, nas primeiras horas do Halloween de 1858, pensou que o menino havia morrido de cólera.
O médico, John Roberts, achou que os sintomas — vômitos e convulsões — eram consistentes com a doença, à época comum na Inglaterra.
Uma hora depois, o pai de Joseph Scott saiu de casa em busca de um médico para o filho, de 14 anos, que repentinamente ficou gravemente doente. Quando Scott voltou, já era tarde demais.
Ambos os meninos, descobriu-se mais tarde, haviam comprado doces de Humbug Billy no dia anterior — mas a ligação ainda não estava estabelecida.
Foi o médico John Henry Bell que suspeitou dos doces quando foi atender dois garotos no meio da tarde.
Sinos pela cidade
Orlando Burran, de cinco anos, e seu irmão John Henry, de três, estavam mortos diante dele; o pai e outras duas pessoas da mesma casa também estavam doentes naquela manhã, e todos haviam comido as balas de hortelã.
O médico levou então alguns doces para a análise do químico Felix Marsh Rimmington.
À medida que o dia avançava, começaram a chegar relatos de todo o distrito sobre pessoas adoecendo e morrendo.
Quando foi alertada sobre os doces suspeitos, a polícia foi até a casa de Hardacre, o vendedor do mercado, e descobriu que ele também estava doente, de cama, e que havia vendido cerca de 1.000 balas no dia anterior.
“A polícia ficou horrorizada ao descobrir que havia [tantos] doces em circulação”, diz Lauren Padgett, médica e curadora assistente de coleções dos Museus e Galerias de Bradford.
“Naquele momento, já era tarde da noite de domingo, e eles saíram para as ruas tocando sinos para chamar a atenção das pessoas, gritando avisos. Eles iam de bar em bar dizendo às pessoas: ‘Não comam os doces, são venenosos’.”
Avisos foram rapidamente impressos e afixados em locais públicos.
Uma lista dos que estavam mortos ou gravemente doentes foi publicada no jornal Bradford Observer e, em 4 de novembro, o número de mortos chegou a 18, o mais jovem de apenas 17 meses.
O jornal descreveu a lista crescente de vítimas como “a tragédia mais terrível que talvez já tenha se abatido sobre o distrito… [espalhando] sofrimento, luto e angústia”.
Os investigadores foram rápidos em descobrir como os doces foram adulterados.
Eles seguiram a trilha de Hardacre até o confeiteiro, Joseph Neal, que pensou ter substituído parte do açúcar caro dos doces por pó de gesso.
Era prática comum no século 19 usar o pó no lugar de ingredientes caros, já que podia ser comprado a preço baixo nas farmácias.
O que Neal não sabia era que, no dia em que mandou seu colega buscar o pó de gesso, o farmacêutico Charles Hodgson estava doente e disse ao seu aprendiz não treinado, William Goddard, onde encontrar o produto.
Infelizmente, havia dois barris de pó branco sem identificação no mesmo local — um contendo o pó inócuo e o outro contendo arsênico, venenoso.
“Goddard foi até um barril que acreditava conter gesso e coletou 5,4 kg dele, deu-o ao jovem que o levou de volta à confeitaria, onde outro funcionário começou a misturá-las para fazer as pastilhas”, diz a doutora Padgett.
“Esse próprio funcionário ficou muito doente por ter sido exposto ao arsênico, mas, em vez de isso soar o alerta, ele continuou a produzi-los.”
Quando Humbug Billy foi buscar a mercadoria, conseguiu o desconto por causa da aparência estranha das balas, que em seguida foram vendidas em sua barraca no mercado.
Quando o químico Felix Rimmington analisou os doces, ele declarou, na investigação, que havia encontrado “arsênico em abundância — em quantidade suficiente para matar”.
Em apenas uma pastilha, ele encontrou 16 grãos de arsênico — quatro vezes a quantidade considerada uma dose venenosa e suficiente para matar alguém várias vezes.
“Foi uma quantidade absurda de arsênico”, acrescenta a historiadora de doces e confeitaria Alex Hutchinson.
“Para nós, como consumidores do século 21, parece uma loucura que esse elemento chocantemente venenoso, inodoro e sem gosto pudesse ser armazenado em um barril sem identificação ao lado de outro material sem rótulo, e pudesse simplesmente ser entregue para alguém do outro lado do balcão”, diz.
‘Angustiante para todos’
Jornais de todo o país cobriram o caso, que causou uma onda de protestos.
O artista John Leech talvez tenha se tornado tão conhecido por seu desenho de um esqueleto misturando açúcar em uma loja de doces publicada na revista Punch, quanto por ilustrar a primeira edição de Um Conto de Natal, de Charles Dickens.
Oficialmente, 20 pessoas — muitas delas crianças — morreram e outras 200 ficaram gravemente doentes, mas Padgett suspeita que os números tenham sido bem maiores.
“Foi muito angustiante para todos”, diz ela. “Bradford era muito pequena e próxima, então, quando algo acontecia na comunidade, todos eram afetados, e foi o que aconteceu nesse caso. É provável que as pessoas conhecessem alguém que foi afetado.”
Os envenenamentos de Bradford, que tinha cerca de 50 mil habitantes, realçaram a importância de se zelar pela segurança dos medicamentos e produtos de consumo.
O caso deu impulso à criação da Lei das Farmácias de 1868, que não só limitou a venda de produtos venenosos e medicamentos perigosos a farmacêuticos qualificados, como também estabeleceu um quadro regulatório para a venda de componentes venenosos que até hoje exige que substâncias sejam devidamente rotuladas.
Se estivesse em vigor uma década antes, a lei poderia ter impedido Goddard de escolher o barril errado e vender o pó venenoso. Mas não teria resolvido a questão mais ampla dos alimentos adulterados — a indústria precisava de regulamentação e reforma, diz a historiadora Alex Hutchinson.
“Até 1820, a maioria de nós vivia em vilarejos ou em pequenas cidades onde conhecíamos as pessoas que forneciam os nossos alimentos. Mas, com a Revolução Industrial, os fabricantes passaram a produzir mercadorias em grandes quantidades e adicionavam substâncias para diluir alimentos e preservar o seu prazo de validade, melhorar a aparência ou torná-los mais baratos. E esse foi o problema em Bradford.”
Uma lei que impede a adulteração não comunicada de produtos foi finalmente aprovada em 1875 na forma da Lei de Venda de Alimentos e Drogas.
Mas os avisos poderiam ter sido levados em consideração muito antes, diz Hutchinson. Em 1820, o químico Friedrich Accum escreveu em seu livro Death in the Pot (Morte na panela) que alimentos do dia a dia como leite, farinha, cerveja e doces eram rotineiramente adulterados.
“O livro de Accum foi um grande best-seller — ele alertou os consumidores para ficarem atentos ao fato de que havia elementos adulterantes [em seus alimentos]”, diz ela.
“Mas simplesmente não havia legislação para proteger as pessoas, e acho que Bradford foi a gota d’água.”
Embora tenham sido implementadas leis para evitar que uma tragédia como a de Bradford se repetisse, talvez seja chocante saber que ninguém foi condenado.
Humbug Billy nunca foi preso, mas perdeu os movimentos das pernas e braços por causa das balas que comeu. Neal, Goddard e Hodgson foram presos por homicídio culposo, mas o inquérito concluiu que “o arsênico foi vendido acidentalmente e misturado sob a suposição de que era pó de gesso”.
O grande júri rejeitou as acusações contra Neal e Goddard e, de acordo com o Bradford Observer, o próprio juiz interrompeu o processo contra Hodgson.
“Nenhum outro resultado era esperado”, dizia o relatório do tribunal. “A única coisa realmente criminosa do episódio foi o que lei não podia alcançar — a prática da adulteração e o fornecimento de pós para esse fim. Se o trágico episódio ensinar esta lição, não terá sido em vão.”
No final, a cadeia de acontecimentos que levou aos envenenamentos de Bradford foi “pura incompetência”, acrescenta Hutchinson. “Mas, como uma história de Halloween, é uma bem horrível.”
Fonte: BBC Brasil / Foto: BRADFORD DISTRICT MUSEUMS & GALLERIES’ COLLECTION