- Ruth Clegg
- Da Ucrânia para a BBC News
Sexta, 29 de julho de 2022
Atenção: esta reportagem contém imagens e detalhes que podem ser considerados chocantes.
Vasyl Velychko ficou amarrado a um banco por horas em um dia de forte calor e ninguém o soltou, apesar dos seus gritos. O jovem de 18 anos de idade é uma das milhares de pessoas com deficiência que vivem em orfanatos na Ucrânia.
A BBC News teve acesso a cinco instituições e presenciou abusos e maus tratos generalizados, incluindo adolescentes contidos e adultos mantidos em berços por anos.
Investigadores de direitos humanos afirmam que a Ucrânia não deve ser admitida na União Europeia enquanto não fechar essas instituições. Antes da guerra com a Rússia, o governo ucraniano afirmava que iria reformar o sistema.
Vasyl tem epilepsia e dificuldades de aprendizado. Ele vive em um orfanato perto da cidade de Chernivtsi, no sudoeste da Ucrânia.
Ele usa fraldas e balança o corpo para frente e para trás, entre longos gritos agudos, mas os funcionários não reagem. Eles estão cansados, sobrecarregados e claramente é mais fácil – e aceito – cuidar das crianças e jovens restringindo-os.
O fluxo de pessoas retiradas do leste do país pressionou ainda mais o sistema, mas a forma em que pessoas como Vasyl são tratadas nas instituições da Ucrânia vem de muito antes da invasão russa.
Ao lado de Vasyl, encontra-se outro jovem. Suas mãos estão amarradas com as mangas da sua blusa. Seus olhos vazios estão distantes e uma poça de urina formou-se à sua volta.
Esses meninos com deficiência são dois dos 100 mil jovens e crianças que vivem em orfanatos na Ucrânia. Muitos deles nem mesmo são órfãos. A maioria tem família, mas acaba vivendo nesses lugares devido à falta de apoio e serviços comunitários.
A família de Vasyl achou que não tinha escolha senão interná-lo. Eles tentaram conseguir um diagnóstico quando ele era muito jovem para ajudá-lo a conseguir o suporte necessário.
Eles chegaram a consultar um neurocirurgião no Reino Unido, mas o sistema deficiente de saúde e assistência social fez com que a família tivesse dificuldade para cuidar dele em casa, pois ele sofre convulsões frequentes e pode ficar agressivo.
Por fim, quando ele tinha cinco anos de idade, as autoridades locais disseram que o melhor lugar para ele seria uma instituição.
“É muito difícil ter um filho com deficiência”, afirma a mãe de Vasyl, Maryna, segurando suavemente a mão de seu filho. Ela não questiona nem parece perturbada pelo fato de Vasyl estar amarrado.
“Tenho orgulho de ser ucraniana, mas precisamos de mais apoio do Estado”, prossegue ela. “Se nós morássemos no Reino Unido, nosso filho provavelmente viveria conosco.”
Maryna conta que os primeiros anos de visita a Vasyl foram difíceis. “Nós íamos chorando para casa” – mas agora eles aprenderam a conviver com a situação.
A Ucrânia tem o maior número de crianças vivendo em instituições na Europa. Elas são vítimas de um sistema da era soviética que facilitou o processo para que os pais entregassem seus filhos para o Estado. Havia – e ainda há – em grande parte da sociedade ucraniana a crença de que as crianças com deficiências recebem melhores cuidados em uma instituição.
A vizinha Romênia fechou muitos dos seus orfanatos desde que foram encontradas crianças vivendo em condições chocantes, logo após a revolução de 1989. Mas, na Ucrânia, antes da invasão russa em fevereiro, cerca de 250 crianças eram internadas por dia para viver em instituições.
Uma rede de cerca de 700 instituições recebe do Estado mais de US$ 120 milhões (cerca de R$ 640 milhões) por ano e emprega 68 mil funcionários.
O governo da Ucrânia reconheceu que o seu sistema de institucionalização precisa mudar e prometeu uma série de reformas ao longo dos últimos anos. Milhares de “órfãos” haviam começado a ser transferidos para casas de acolhimento, até que a guerra causou a suspensão do processo. Mas os planos já não incluíam as pessoas com deficiências.
O governo ucraniano não respondeu ao pedido de comentários apresentado pela BBC.
O CEO (diretor-executivo) do grupo de direitos humanos Disability Rights International (DRI), Eric Rosenthal, afirma que as pessoas com deficiências são agora mercadorias em “fábricas de deficiências”. Ele já visitou centenas dessas instituições e afirma que sempre fica chocado e devastado com o que encontra.
Nós visitamos outra instituição a cerca de uma hora de carro do orfanato onde mora Vasyl. Lá, homens com deficiências entre 20 e 30 anos de idade vivem em berços infantis.
Eles raramente deixam seus berços, nem para comer. Os funcionários os alimentam com colheres através das barras.
Rosenthal indica os tornozelos magros e deformados de um dos homens e as costelas aparentes de um jovem como sinais de “desnutrição pela vida inteira”. Ele afirma que a guerra não pode ser usada como desculpa para esses cuidados desumanos, já que as pessoas com deficiências vêm sendo negligenciadas há décadas.
Ao lado do homem, Eric comenta: “ele está sofrendo uma morte lenta nesta cama”.
As camas de madeira são alinhadas umas às outras, fileira após fileira. As paredes com cores brilhantes contrastam com a vida desoladora desses jovens. Eles não tentam se libertar – estão apenas desesperados por um pouco de atenção.
No quarto ao lado, Oleh vive deitado na cama há décadas. Ele tem 43 anos de idade e foi encaminhado para a instituição quando ainda era criança.
Ele tem paralisia cerebral, uma condição que afeta os movimentos e a coordenação. Com cuidados adequados, as pessoas com paralisia cerebral conseguem viver vidas plenas e independentes.
Oleh compreende tudo sobre o mundo à sua volta – e seu rosto se ilumina quando ele vê Halyna Kurylo, uma das pesquisadoras da DRI. Ele a reconhece da sua última visita, sete anos atrás.
Oleh a cumprimenta com um sorriso caloroso e ela nos apresenta. Ele expressa surpresa e animação quando descobre que somos jornalistas, sorrindo e perguntando nossos nomes.
Halyna segura seu braço definhado e conta que suas más condições físicas deixam claro que ele passa a maior parte do tempo na cama. “Só fico preocupada com o potencial que ele não viveu, porque esteve aqui sua vida inteira”, comenta ela.
Antes da guerra, a Ucrânia já era um dos países mais pobres da Europa. A pobreza e a falta de apoio para as famílias com dificuldades contribuem para formar a crença de que essas instalações são necessárias, segundo o diretor da instituição onde mora Oleh, Mykola Sukholytkyi.
“É melhor que as crianças com deficiências vivam aqui e não com suas famílias”, afirma ele. “Em vez de ficarem em famílias disfuncionais onde não podem receber cuidados, nem alimentos, aqui eles podem ter o benefício de todos os itens essenciais.”
Rosenthal afirma que os bilhões de dólares de ajuda internacional sendo enviados para a Ucrânia durante a guerra deveriam também ser usados para fechar os orfanatos, apoiar as famílias para que ofereçam assistência aos seus filhos e construir uma comunidade que aceite as deficiências.
“Sabemos que os orfanatos não precisam existir”, segundo ele.
Rosenthal teme que parte desse dinheiro venha a ser gasto na manutenção das instituições e que, depois do fim da guerra, “a atenção internacional para a Ucrânia irá terminar e os orfanatos continuarão como estão”.
Depois de um longo dia quente no jardim do seu orfanato, chega a hora de Vasyl despedir-se dos seus pais. Ele ainda está amarrado e continua gritando.
Ao sair, Maryna conta que “é muito grata à instituição”. Mas acrescenta: “nossos filhos com deficiências não deveriam ficar escondidos da sociedade, atrás desses muros altos”.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62330989
Fonte: BBC Brasil