O ano era 1998. O Brasil já havia perdido a partida final contra a França na Copa e a empresa Google tinha acabado de ser fundada fundada. Naquele justo dia 11 de dezembro, uma sexta-feira, a Nasa lançava uma sonda para Marte e o Brasil via derrota pior: Uma fábrica de fogos de artifício explodiu numa pequena cidade a 200km de Salvador, provocando a morte de 64 pessoas e deixando toda uma comunidade com uma ferida que ainda está aberta, 24 anos depois.
O dia que nunca terminou dá nome ao Movimento Onze de Dezembro, que reúne sobreviventes e familiares em busca de memória e justiça. A data de 15 de julho de 2020, quando o Brasil foi condenado perante o tribunal da Organização dos Estados Americanos (OEA) poderia começar a cauterizar essa aflição. Mas dois anos depois, os atingidos ainda não viram a justiça efetivamente sair do papel. O Movimento realiza um conjunto de atividades neste fim de semana (10 e 11 de dezembro), para homenagear a memória das vítimas e apontar os problemas às autoridades das esferas federal, estadual e municipal.
No sábado, o Movimento apresenta uma retrospectiva da luta empreendida até aqui, no evento no Salão da Creche-Escola 11 de Dezembro. Na sequência, a proposta é colocar em diálogo as diversas autoridades que atuam ou deveriam atuar na implementação da sentença e, assim, identificar os obstáculos. Já no domingo, após um passeio pelo memorial instalado na escola, os familiares farão um ato simbólico com partilha das emoções dos familiares diante da memória daquele dia. “Em 2020, soltamos balões brancos com os nomes das vítimas celebrando uma justiça que sairia do papel. Mas desta vez, os balões serão pretos, simbolizando o luto pelo não cumprimento efetivo dela”, conta Rosa Rocha, membro do Movimento Onze de Dezembro.
“É um dia para lembrar dos familiares que se foram, mas também é para lembrar toda a caminhada do movimento. Já conseguiram uma vitória significativa na Corte IDH e a luta agora é pela implementação da sentença em todos os seus pontos. E nós sabemos da inércia, da demora injustificada do Estado para cumprir essa decisão e ainda há muito a se cumprir”, afirma Murillo Martins, Defensor Público Federal e Secretário de Acesso à Justiça.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já havia reconhecido a responsabilidade do Brasil nas mortes e lesões causadas pela explosão da fábrica, bem como nas violações ao direito da criança, do trabalho e às garantias e proteção judiciais. Antes disso, o Estado brasileiro chegou a assumir perante a OEA o compromisso de reparar moral e materialmente as vítimas, mas não cumpriu o acordo. Sem uma resposta à altura da gravidade do caso por parte das instâncias internas da justiça brasileira, os peticionários do caso – a Justiça Global, o Movimento 11 de Dezembro e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos – solicitaram à CIDH que o caso fosse levado à Corte.
Dentre as medidas estabelecidas pela OEA na sentença estão: a criação de alternativas econômicas para a inserção econômica e laboral das vítimas e familiares da explosão e a criação e execução de um programa de desenvolvimento socioeconômico destinado à população de Santo Antônio de Jesus. Além da responsabilização cível e penal dos perpetradores da explosão, a sentença exige a determinação de medidas de reparação às vítimas e seus familiares, como tratamento médico e psicológico, além da devida indenização.
A Defensoria Pública da Bahia atua no encaminhamento da indenização e das políticas públicas de assistência social e saúde. O defensor regional de direitos humanos da Bahia, Vladimir Correia, diz que o momento é oportuno para reavaliar os instrumentos de garantia de direitos às vítimas. “Ainda falta muito para chegarmos a um atendimento minimamente digno. Sabemos que os problemas existem em todo o Brasil, mas temos que ter um olhar diferenciado e prioritário àquelas pessoas que já vêm sofrendo há mais de vinte anos em decorrência dessa tragédia”, diz
Justiça se faz em vida
A questão mais sensível para os sobreviventes e familiares atualmente é a da saúde. Entre as determinações da Corte IDH, está a concessão de prioridade de atendimento e mesmo recursos especiais para garantir a devida assistência a deles. Nesse caso, é mais relevante a atuação da Secretaria Municipal de Saúde e pela Superintendência de Recursos Humanos da Secretaria da Saúde do Governo da Bahia (SESAB). Mas muitos estão adoecidos e enfrentam dificuldades para conseguir assistência.
Hoje com 46 anos, Elizangela “Tata” Silva Costa perdeu a mãe na tragédia de 24 anos atrás. Com uma grave ferida no pé provocada pela diabetes, ela já passou por três cirurgias e, hoje, não consegue andar. Elizangela tem tido dificuldades para comprar cadeira de rodas e medicamentos, e, por ser parte do movimento, ainda tem sofrido retaliações para acessar seus direitos. Tata relata que frequentemente fica à mercê da boa vontade de quem a atende: “Quando eu briguei para ter uma cadeira de rodas para ir a Santo Antônio fazer curativo, o secretário de transporte respondeu ‘agora eu vou ter que comprar carro para carregar madame’. Mas eu não sou madame e não pedindo luxo nenhum”.
Juliana Silva, que é presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa do município, reforça que a garantia de saúde física e psicológica das vítimas é fundamental para que possam desfrutar com vida e saúde quando, enfim, a justiça chegar. “Essa luta é de todos nós. Não só pela justiça, visto que uma sociedade só será justa quando for para todos, mas também porque as determinações, quando chegarem, irão beneficiar toda a sociedade de Santo Antônio de Jesus e região”, diz.
Negligência do Estado perante violações estruturais e do setor privado
Entre as vítimas, estavam 59 mulheres adultas, adolescentes e crianças com idade entre nove e 14 anos – além de um menino de 9 anos –, majoritariamente, como declarou a Corte, “afrodescendentes que viviam em condições de pobreza, tinham baixo nível de escolaridade, eram contratadas informalmente e recebiam salários muito baixos”. Algumas delas também eram idosas, de 76 a 91 anos. Na fábrica, eram as mulheres e as crianças as responsáveis pela produção de traques (pequenas quantidades de pólvora embrulhadas em papel), enquanto os homens ficavam em outro local na produção de bombas.
Além de serem submetidas a um trabalho perigoso e sem qualquer proteção, as trabalhadoras ganhavam apenas 50 centavos pela produção de cada mil traques. A investigação feita pelo Ministério Público na época dá conta de que havia mais de 1,5 tonelada de pólvora no local.
Uma das vítimas, Rosângela França, tinha 17 anos e estava grávida de cinco meses. Ela não resistiu aos ferimentos, mas sua filha milagrosamente conseguiu sobreviver e é uma das 35 crianças que ficaram órfãs por causa da tragédia, além das muitas mães que perderam filhas ainda jovens em condições cruéis, em alguns casos, da mesma família.
Mesmo após a tragédia, o dono da fábrica, Osvaldo Bastos Prazeres, o “Vado dos Fogos, continuou com a produção ilegal. À época, ele tinha autorização do Ministério do Exército, mas, sem fiscalização, insistia em desrespeitar inúmeras normas de segurança. Reportagens feitas uma década após o crime mostraram que a montagem de fogos continuava ocorrendo de forma insegura e irregular com exploração do trabalho infantil na Bahia. Hoje a secretária de saúde da prefeitura de Santo Antônio de Jesus, Ariana Reis, leva também Bastos em seu sobrenome.
Um dos pontos resolutivos da sentença trata da criação e da execução de um programa de desenvolvimento socioeconômico para inserir os trabalhadores de fábricas de fogos de artifício em outros mercados (Número 18). O Movimento observa que já houve uma iniciativa do município. No entanto, considerando se tratar de uma condenação internacional, ainda está pendente a liberação de recursos por parte dos governos federal e estadual, conforme sinalizado pelo terceiro ponto.
Autora do documentário Salve! Santo Antônio, a cineasta Aline Sasahara destaca que o crime foi fruto da omissão e negligência do Estado na fiscalização das condições de trabalho. “E do seu dever de garantir a elas condições dignas de vida. Condições que não a forçassem a se expor diariamente ao perigo para receber uma remuneração miserável”, completa.
A coordenadora da Justiça Global Sandra Carvalho ressalta que muitas violações já aconteciam antes da tragédia e muitas após. “A gente não pode chamar o que aconteceu de acidente. Foi um crime. Essas pessoas eram colocadas em péssimas condições de trabalho. Já era uma situação que representava risco e o Estado tinha consciência”, diz. Sandra conta que viveu no dia 20 de janeiro de 2020 um dos momentos mais marcantes de sua trajetória como militante pelos direitos humanos. Nesta data, ocorreu a audiência na sede da Corte IDH, em Costa Rica, em que três mulheres – Dolores, Rosa e Leila – prestaram depoimento.
“Foi tão forte que tirou o fôlego e levou ao choro os juízes. Ali a Corte Interamericana viu que o que ela realmente tava julgando era um crime muito bárbaro. A sentença é uma das mais emblemáticas de sua história. Ela reconhece o racismo estrutural, a violência de gênero e a violência por questões socioeconômicas”, declara Sandra Carvalho.
Imbróglio judicial
A explosão da fábrica de fogos resultou em quatro processos judiciais, nas áreas cível, criminal, trabalhista e administrativa. No entanto, até agora, só os processos administrativo e trabalhista foram encerrados, sem, no entanto, garantirem uma reparação justa às vítimas da explosão.
Na sentença internacional de julho de 2020, ficou determinado que o Brasil estabeleça punições cíveis e penais contra os responsáveis pela explosão, pague indenizações e preste assistência médica e psicológica aos familiares dos mortos e aos feridos. Apenas em março de 2021, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos publicou um resumo do acórdão no Diário Oficial da União (em 24 de março).
A Corte IDH avaliou ainda que o Brasil também violou os direitos das vítimas ao não garantir o acesso efetivo à Justiça, sem punir os responsáveis. Na época da sentença, o “Vado dos Fogos” ainda estava vivo. Ele e seus quatro filhos foram condenadas à prisão pelo crime em um júri popular de 2010. No entanto, nenhum foi preso.
Por diversas vezes, o Movimento Onze de Dezembro foi até a capital do estado para cobrar o cumprimento da sentença.
Presidente da mobilização, Maria Balbina dos Santos perdeu a filha de 14 anos na explosão. Ela se queixa do cansaço perante o vai-e-vem de papeis com pouca resolutividade e relata sobre as frustrações sempre que chega a mais uma reunião sem as autoridades que têm “tinta na caneta”. “Já estou fraca e doente. Não só eu, como Tata e mais meio mundo do movimento que não tá nem mais aguentando ficar em pé”.
Balbina tinha expectativa de que, em dois anos, tudo teria sido cumprido dentro de dois anos. “Mas não estamos nem no quarto ponto ainda. Perdi minha única filha naquela tragédia e perdi 63 amigos, crianças e mulheres. A gente comia, saia junto, andava junto, chegava junto… quem não tinha, dividia com a outra. E de lá pra cá, a gente tem uma luta que, quando chega no meio do caminho, parece que andamos para trás como caranguejo”, diz.
“Agora o Brasil está desafiado à implementação da sentença. Uma sentença importante, que prevê reparação para as vítimas, atendimento médico e psicológico, e principalmente políticas públicas para o enfretamento do racismo, da pobreza, da violência de gênero e medidas para que tragédias criminosas como essa não se repitam”, conclui Sandra Carvalho.
Por Emily Almeida | Justiça Global