Atravessando o campo de batalha da cultura, com Pierre Bourdieu

cultura

Livro de Sergio Miceli analisa os fundamentos da teoria dos sistemas simbólicos proposta pelo sociólogo francês

Texto: Luiz Prado – Domingo, 8 de janeiro de 2023

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), uma boa imagem para definir a sociedade é a de um campo de batalha. Nesta arena, os combatentes se enfrentam em diferentes espaços, cada um com suas regras próprias, que exigem dos beligerantes estratégias específicas para a vitória. Apesar de todas as diferenças, permeando todo o campo de batalha está a força do sentido.

Sentido, neste caso, se refere aos sistemas simbólicos das sociedades. Religião, ideologias, artes, mitos, linguagens: tudo o que poderíamos chamar, de maneira simplificada, cultura. Estes sistemas simbólicos, para Bourdieu, têm sua própria economia e divisão do trabalho, e receberam a atenção do autor em uma série de textos reunidos na coletânea A economia das trocas simbólicas. Publicada no Brasil em 1974, a obra contou com organização, seleção, tradução e prefácio de Sergio Miceli, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“A força do sentido” foi justamente o título escolhido por Miceli para o prefácio do volume de 1974. Um texto que propõe a arqueologia das fontes teóricas que inspiraram Bourdieu em sua empreitada. E esse escrito quase cinquentenário ganha agora nova publicação pela Editora Perspectiva.

Sérgio Miceli - Foto: FFLCH/USP
“Bourdieu enfatiza ao extremo a sociedade à imagem de um campo de batalha a operar com lastro na força e no sentido, ou melhor, no realce à força do sentido”, afirma Miceli – Foto: FFLCH/USP

A força do sentido, o livro, reproduz a íntegra do prefácio assinado por Miceli, acompanhado de uma introdução escrita por Sergio Eduardo Sampaio Silva, sociólogo e mestre em Ciências Sociais pela FFLCH. O pequeno volume de 96 páginas – mas que concentra a densidade de várias centenas – integra a Coleção Elos, voltada para textos curtos de relevância acadêmica.

Um dos maiores especialistas no pensamento de Bourdieu no Brasil, Miceli dedica sua tinta a rastrear as continuidades e afastamentos entre as ideias do sociólogo francês e as contribuições de três grandes tradições do pensamento social: a escola fundada por Émile Durkheim (1858-1917), o legado de Karl Marx (1818-1883) e a obra de Max Weber (1864-1920).

Conforme Sampaio Silva, o texto funciona como uma espécie de aula inaugural para um curso de sociologia dos sistemas simbólicos. “Miceli oferece uma aula sobre como Bourdieu apresentou a existência de uma divisão do trabalho simbólico”, escreve na introdução ao volume. “E ao fazê-lo, propôs à sociologia da cultura questões cruciais, por exemplo: como opera essa divisão do trabalho simbólico? Quais seus efeitos na vida social?”

Sobre ombros de gigantes

Na arena que constitui a sociedade para Bourdieu, os contendores se posicionam em campos específicos, cada um deles com autonomia relativa e organização interna própria – como o campo econômico ou o campo cultural. Em cada um deles, o que está em disputa são os capitais específicos do campo determinado. No caso do capital de tipo simbólico, por exemplo, não se deve pensar em uma luta pelo acúmulo de dinheiro, ações, bitcoins ou coisas do tipo, mas sim em um lucro ligado aos afetos e ao mundo do simbólico. Um lucro que se acumula nas interações sociais.

Para rastrear os alicerces do pensamento de Bourdieu, Miceli começa revisitando duas posturas dominantes entre a intelectualidade no que concerne ao entendimento da cultura. A primeira delas, vinda de Immanuel Kant (1724-1804) e passando por Émile Durkheim e Claude Lévi-Strauss (1908-2009), é aquela que concebe a cultura como um instrumento de comunicação e conhecimento central para o consenso entre as pessoas. A cultura seria, nesse caso, o acordo feito por uma coletividade em relação ao significado dos signos e do mundo.

A outra postura, por sua vez, é aquela que enxerga a cultura como um instrumento de poder, operando para legitimar a ordem vigente. Seu papel seria esconder, reforçar e garantir a dominação de uma determinada classe ou grupo. A tradição oriunda de Karl Marx e o pensamento de Max Weber, guardadas suas diferenças, seriam os representantes dessa vertente.

Publicada em 1974, coletânea apresentou as ideias de Bourdieu sobre a cultura para o pública brasileiro - Foto: Divulgação
Publicada em 1974, coletânea apresentou as ideias de Bourdieu sobre a cultura para o pública brasileiro – Foto: Divulgação

De acordo com Miceli, o que o trabalho de Bourdieu propõe é compatibilizar as principais contribuições de Durkheim, Marx e Weber, tentando com isso preencher as carências de uma ou outra perspectiva de análise. Uma espécie de síntese maior do que a soma das partes, que pretende corrigir a teoria do consenso acrescentando a ela maneiras de captar as condições materiais e institucionais de formação e transformação das instâncias de produção simbólica.

“As críticas de Bourdieu se dirigem aos que acreditam que a sociologia dos fenômenos simbólicos não passa de um capítulo da sociologia do conhecimento e, portanto, nada tem a ver com o sistema de poder”, explica Miceli, “como àqueles que a entendem como dimensão da sociologia do poder para a qual os sistemas simbólicos não possuem realidade tangível”.

Para dar cabo desse projeto, Bourdieu enfatiza a necessidade de se conhecer a organização interna do campo simbólico e, ao mesmo tempo, estar atento a sua função ideológica e política. “Para Bourdieu, a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito constituem uma função lógica necessária ao permitir à cultura dominante numa dada formação social cumprir a função político-ideológica de legitimar e sancionar um regime de dominação”, escreve Miceli.

Do consenso ao combate

Com Durkheim, sublinha o professor, Bourdieu compartilha o cerne do argumento de que a organização interna dos sistemas de classificação – a base para as representações coletivas de uma sociedade – obedece ao modelo fornecido pela própria sociedade. Contudo, para Durkheim, tais sistemas classificatórios não transfiguram ou dissimulam a realidade, mas guardam com ela uma relação de correspondência íntima. Recobrindo a ordem social, os sistemas de classificação se impõem sobre as pessoas e tanto regulam a apropriação dos símbolos quanto suprem as regras e os materiais significantes com os quais as coletividades conferem sentido para suas ações.

Durkheim, com isso, evita a questão da dominação no âmbito da cultura, aponta Miceli. “A cultura restringe-se, assim, à sua função de integração lógica e moral ao reproduzir, com materiais significantes próprios, a classificação social que reparte os homens pela hierarquia”, explica. “Os homens não classificam os seres no intento de encobrir ou justificar as relações que mantêm entre si; os homens classificam os seres pela necessidade lógica que também os leva a pensar na própria existência em termos de grupamentos e divisões”.

“O trajeto de Bourdieu alia o conhecimento da organização interna do campo simbólico à percepção da função ideológica e política a legitimar a ordem arbitrária em que se escora o sistema de dominação vigente”, escreve Miceli – Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Não é assim para Bourdieu. Em seu pensamento, a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito são os movimentos que garantem a um grupo legitimar sua dominação. Isso posto, é possível perceber a confluência entre a mirada marxista e suas ideias.

Miceli destaca primeiramente a retomada que Bourdieu faz da metáfora espacial: estrutura econômica como a base de um edifício, as representações ideológicas como sua superestrutura. O sociólogo francês, assim, enfatiza o vínculo entre economia e cultura. “Tudo se passa como se uma determinada formação social estivesse fundada numa divisão social do trabalho cujos agentes, instituições, práticas e produtos circulam no âmbito de um mercado material e de um mercado simbólico fundamente imbricados”, analisa Miceli.

Nesse sentido, conforme explica o professor, as mesmas condições sociais responsáveis pela divisão do trabalho simbólico – a separação que determina quem irá trabalhar na produção material da vida e quem se ocupará de aspectos como as artes, a filosofia, a religião, o entretenimento – dão forma às teorias e ideias que ganham força justamente pela ausência de questionamento a respeito das próprias condições da divisão geral do trabalho.

É assim que as empresas simbólicas, as instituições ligadas à cultura, surgem para Bourdieu com a função de dissimular as relações sociais. Desempenhando uma atividade continuada e contando com um corpo de agentes treinados, dotados de competência estrita, tais empresas estariam voltadas à produção de bens dirigidos a naturalizar, eternizar, consagrar e legitimar a ordem vigente.

É assim que as empresas simbólicas, as instituições ligadas à cultura, surgem para Bourdieu com a função de dissimular as relações sociais. Desempenhando uma atividade continuada e contando com um corpo de agentes treinados, dotados de competência estrita, tais empresas estariam voltadas à produção de bens dirigidos a naturalizar, eternizar, consagrar e legitimar a ordem vigente.

Tais apontamentos já colocam Bourdieu em contato com Max Weber. Miceli assinala que o autor é importante para o pensamento do sociólogo francês por revelar os fundamentos sociais das atividades de simbolização. O central aqui está nas relações entre sistemas simbólicos – como as crenças religiosas ou a indústria cultural – a hierarquia de classes e grupos de status e a estrutura de poder resultante das combinações possíveis. “A cultura adquire feição em consequência da hegemonia de um grupo e dos conflitos entre as forças mestras no curso do desenvolvimento histórico”, explica o professor.

Bourdieu se distancia das explicações weberianas sobre o carisma pessoal e prefere concentrar sua atenção nos aparatos institucionalizados nos quais a produção simbólica repousa. “Qualquer que seja a instância regional – indústria cultural, sistema de ensino, campo religioso etc. –, o processo de simbolização cumpre a função essencial de legitimar e justificar a unidade do sistema de poder, suprindo o estoque de símbolos indispensável à sua expressão”, comenta Miceli.

A força do sentido, livro de Sergio Miceli – Foto: Divulgação

Para o professor, o que Weber traz de novo e é retomado por Bourdieu se encontra na demonstração dos fundamentos sociais das atividades de simbolização. No trato da religião, por exemplo, Weber tentou unir questões sobre seu papel econômico e político ao exame de seus protagonistas – sacerdotes, profetas e leigos – compreendidos como integrantes dos aparelhos institucionalizados de produção da própria religião. Com isso, a teoria weberiana apareceria como o paradigma sociológico da composição social de qualquer elemento da cultura.

É, portanto, com a contribuição de Weber que Bourdieu amarra suas reflexões sobre a cultura, superando as faltas que sente tanto no pensamento de Durkheim quanto na tradição marxista. “Não basta refinar o modelo canônico ao remeter de pronto os símbolos aos interesses materiais e ideais das classes e grupos”, aponta Miceli. “Como passo preliminar, cumpre investigar os processos de produção simbólica para o qual concorrem, de modo incontornável, os agentes produtores das instituições e instâncias do campo simbólico”.

Dito de outra forma e retomando a metáfora bélica, na arena da cultura não basta conhecer as motivações dos Senhores da Guerra: é preciso decifrar os planos de batalha e esquadrinhar cada espaço do teatro de operações nos quais os exércitos se confrontam com suas espadas, baionetas ou drones.

A força do sentido, de Sergio Miceli, Editora Perspectiva, 96 páginas, R$ 42,40.

Fonte: Jornal USP

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