Especialistas explicam que as mudanças ambientais provocam uma modificação na circulação dos roedores, responsáveis por transmitir a doença fatal aos seres humanos
Por Davi Caldas* – Sexta, 26 de abril de 2024
A febre de Lassa é uma doença hemorrágica fatal que, em 2018, teve recorde de epidemia na Nigéria e, desde então, sofreu um aumento no número de casos no país em todos os anos seguintes. Apesar do quadro ser uma emergência de saúde pública naquele país, também é comum em Serra Leoa, Guiné e Libéria, o que fez a Organização Mundial da Saúde (OMS) colocar o vírus que transmite a doença na lista de agentes patogênicos notórios com potencial epidêmico ou pandêmico. De acordo com a revista científica Nature, a febre deve ter um aumento da sua área de propagação, chegando também à África Oriental e Central no futuro, com projeções até 2070.
Transmissão e sintomas
Expedito Luna, professor do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, explica que o vírus da febre de Lassa (LASV) é uma zoonose, transmitida de roedores silvestres para os seres humanos, através do contato com excrementos no meio ambiente — inaladas pelo ar em formato de poeira ou por contaminação direta em alimentos e água, por exemplo. Seu principal reservatório é o Mastomys natalensis, que não tem grandes implicações ou adoece com o vírus, apenas o portando e eliminando na urina ou fezes.
Uma outra possibilidade de infecção é via inter-humana, apesar de não ser altamente transmissível dessa forma. Para exemplificar essa forma de transmissão, Ana Catharina de Seixas, doutora do Hospital das Clínicas (HC) e pesquisadora da FMUSP, diz: “Quando o vírus foi primeiramente isolado, em 1969, alguns profissionais da saúde e alguns funcionários do laboratório que trabalharam com o vírus foram contaminados. Acredita-se que a via de infecção foi por contato com secreções dos pacientes ou inalação de partículas virais. Um técnico de laboratório morreu na ocasião, mas devemos lembrar que as condições de segurança nos laboratórios eram muito diferentes naquela época”.
A doutora afirma que, uma vez no organismo, o vírus vai se replicar nas células de defesa de primeira linha. Assim, o organismo demora a produzir anticorpos e uma resposta de defesa imunológica, o que faz o LASV se espalhar pelo corpo do hospedeiro.
Pertencente à família dos arenavírus (Arenaviridae), o vírus de Lassa transmite uma doença classificada entre as febres hemorrágicas do Velho Mundo. Porém, Luna explica que somente cerca de 20% dos casos vão ter os sintomas mais graves da febre, com gravidade variável, enquanto os outros 80% vão ser assintomáticos ou com sintomas leves. “Ela começa com um mal-estar geral, uma indisposição, um pouco de febre, vai evoluindo, vai piorando, a pessoa começa a ter sintomas de dor de garganta e às vezes vem também manifestações digestivas, náuseas e vômitos, e nos quadros mais graves a pessoa vai ter derrame pleural e pode ter manifestações hemorrágicas e um quadro de encefalite, um dano cerebral”, comenta.
Segundo o especialista, a letalidade da doença varia, se iniciando com 1% e chegando até 20% nos casos mais graves. “No ambiente hospitalar vai ter o doente mais grave, que vai também exalar vírus pelas secreções respiratórias, então tem surtos hospitalares de contaminação. Quando o paciente está hospitalizado, é necessário medidas muito rigorosas de controle de infecção para evitar a disseminação no ambiente hospitalar”, alerta. O professor explica que alguns fatores podem ajudar a identificar quais pessoas vão evoluir para quadros mais graves da febre de Lassa, como os extremos de idade, gravidez ou a presença de outras comorbidades. Apesar disso, ele comenta que identificar esses fatores é a grande questão da epidemiologia e que, para uma melhor identificação desses quadros, ainda é necessário mais análises e estudos.
De uma a três semanas após a infecção para o início dos sinais, Ana Catharina afirma que, por possuir sintomas iniciais parecidos com outras doenças, como dengue e malária, o diagnóstico específico da febre de lassa pode ser dificultado. Além disso, ela comenta que um possível sintoma da doença é ainda a surdez, que pode ser irreversível e evoluir em um terço das infecções, independentemente do grau.
Aumento de propagação
A partir de 2018, houve um aumento expressivo de casos na Nigéria, com milhares de infecções detectadas — só em 2023, foram quase 9 mil casos suspeitos, com 1.227 confirmados no país. Fora dele, houve mais relatos da febre de Lassa nos países vizinhos, em que a detecção da doença ainda não era comum, como Mali, Togo e Costa do Marfim.
De acordo com Luna, alguns dos fatores que podem contribuir para o espalhamento do vírus na África são as mudanças climáticas e ambientais — por exemplo, houve perda florestal e menos chuva local nas áreas endêmicas do vírus. Ele explica que a pressão humana sobre o meio ambiente, com a busca de recursos naturais e a ocupação pela agricultura, está desmatando espaços que eram ocupados pela mata e vida silvestre, o que gera uma proximidade maior entre o humano e a fauna, além de um desequilíbrio climático — em períodos de chuva muito abundante, o roedor silvestre vai ter mais alimento à sua disposição e, em períodos de seca extrema, o roedor vai ter dificuldade em encontrar seu alimento natural, invadindo as áreas ocupadas pelos humanos para encontrá-lo.
Ana Catharina complementa: “O aumento do número de casos nessa região também foi atribuído a um aumento populacional nessa área e a uma maior circulação local do vírus. A melhor adaptação do vírus parece estar restrita a algumas subespécies do Mastomys natalensis e de alguns outros poucos roedores de outras espécies”. Ela ainda comenta que o Mastomys natalensis tem uma vasta distribuição na África Subsaariana, com potencial para espalhamento da doença ainda maior com o avanço das mudanças climáticas e ambientais atuais. Contudo, a possível restrição de adaptação do vírus a poucas espécies de roedores, somada ao fato do LASV sofrer competição com outros vírus que infectam o mesmo animal, ajuda na lenta dispersão viral geográfica e na ausência do LASV em todo o território onde há a presença do seu principal reservatório.
Dessa forma, a pesquisadora explica que uma disseminação da febre de Lassa no Brasil seria difícil, já que o território não habita o mesmo hospedeiro do vírus — o que aceleraria e multiplicaria os casos. Na verdade, a América do Sul possui outros vírus da família Arenaviridae, espalhados por diversos países e regiões, que parecem seguir o mesmo padrão de restrição a determinadas áreas geográficas e a determinados hospedeiros. “Para que uma cadeia de transmissão se estabelecesse em outro país fora da África, o vírus também deveria achar o seu hospedeiro (espécie de roedor) nesse novo ecossistema. Além disso, outras espécies de arenavírus ou outros vírus relacionados existentes aqui poderiam competir para a instalação de espécies importadas”, explica.
Luna também diz que a transmissão de pessoa a pessoa não seria suficiente para uma disseminação em massa: “Parece ser uma coisa menos frequente no ambiente hospitalar ou no contato muito próximo de quem está cuidando da pessoa doente, ou ainda pela transmissão sexual”. Com isso, afirma que a instalação definitiva do vírus em algum outro continente demandaria não só na importação do LASV, como em ele encontrar as condições ecoepidemiológicas necessárias para se estabelecer em um novo reservatório.
Controle contra o LASV
A febre de Lassa não possui, no momento, nenhuma vacina eficaz para o seu controle. Para uma diminuição ou controle dos casos da doença, o professor alerta que não é possível a eliminação do seu principal reservatório e deve-se tentar diminuir a possibilidade de contato dos roedores com os seres humanos e seus alimentos, com uma melhoria habitacional, deixando-as menos permeáveis à entrada de roedores, o acondicionamento adequado dos alimentos e outras questões que não são simples de serem resolvidas.
Ana Catharina complementa essa ideia: “O controle das mudanças climáticas e ambientais é algo mais difícil de alcançarmos. Porém, a diminuição do ritmo de coberturas vegetais, com a consequente menor perturbação do hábitat desses roedores é essencial. Como o vírus tem uma velocidade de dispersão diminuída, a vigilância local dos casos com o correto tratamento dos pacientes infectados e o controle do hospedeiro animal são os mecanismos mais importantes para barrar a dispersão do LASV”.
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
Fonte: Jornal USP / Alguns dos fatores que podem contribuir para o espalhamento do vírus na África são as mudanças climáticas e ambientais – Foto: Freepik