Os baianos que se voluntariaram para os estudos clínicos com as vacinas contra a covid-19 da Pzifer e de Oxford/AstraZeneca em Salvador ainda não sabem quando receberão a vacina propriamente dita, porque até o momento não foram informados pelos laboratórios se receberam a dose do agente ativo ou o placebo. Quando os laboratórios começaram a recrutar pessoas para testar seus imunizantes em desenvolvimento, uma das promessas é que os voluntários que receberam placebo seriam vacinados tão logo a substância em questão estivesse liberada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A vacina de Oxford foi liberada no domingo, 17, em caráter emergencial para uso no Brasil. No mesmo dia, também foi liberada a Coronavac, do laboratório chinês Sinovac com o Instituto Butantan. As primeiras doses de Coronavac chegaram a Salvador na noite de segunda-feira, 18, e, nesta terça-feira, 19, a primeira etapa da imunização começou.
A questão é que muitos voluntários de outros laboratórios não sabem se podem – ou devem – tomar a Coronavac. No caso da vacina de Oxford, aqueles que não sabem se já tomaram a substância na fase de testes, não têm certeza se precisam tomar de novo.
Uma das voluntárias do estudo do laboratório americano Pfizer com a empresa alemã BioNTech é a psicopedagoga Kátia Leite, 56 anos. Ela diz que desde novembro não recebe mais notícias das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), instituição responsável pela coordenação da pesquisa em Salvador. “Acho que eles estão negligenciando, a gente merecia mais um pouco de atenção. Eles não ligam mais, não passam mensagem, não dão um retorno. Você não sabe de nada. A gente está voando, sem saber de nada”, reclama Kátia.
Ela se inscreveu com o intuito de receber o imunizante o mais rápido possível. Mesmo não sendo grupo de risco, se enquadra em uma das categorias do plano de vacinação de Salvador, por ser profissional de educação. A psicopedagoga confessa que, se as Osid demorarem muito para responder suas dúvidas, que abandonará o estudo para tomar a Coronavac. “Diante do que a gente está vivendo, a gente quer logo se imunizar. Se tiver outra vacina, eu vou tomar, porque as Osid não dão retorno nenhum”.
Na última vez que entrou em contato com a instituição, há cerca de um mês, a voluntária disse que a informação dada foi a de que ainda aguardavam a autorização da Anvisa. O órgão federal tem de liberar a vacina e também liberar o ‘descegamento’, ou seja, a quebra do cegamento do estudo (leia mais abaixo).
A expectativa, porém, era de que, em dezembro, quem tivesse recebido placebo, receberia a vacina. “Não é todo mundo que quer ser voluntário de uma coisa que não sabe se vai dar certo, a gente não sabia se ia prejudicar nossa saúde. Então você vai para ajudar a humanidade e a mim também. Para ter a vacina, precisa de pessoas como eu, porque, se não fossem os voluntários, eles iriam testar em quem? A Pzifer já está vacinando em vários países graças aos voluntários. Então, acho que precisava de mais consideração”, acrescenta Kátia, que tomou a primeira dose dos testes em setembro de 2020. A segunda foi aplicada 21 dias depois.
Outra voluntária no estudo da Pzifer foi a empresária Bárbara Martins, 31. Ela também ainda não obteve informações se teria recebido o imunizante ou apenas soro fisiológico ou quando receberá a vacina. “No máximo em dezembro eles disseram que quem tomou placebo já estaria vacinado. Mas todo dia nunca mais tem data e já está começando a vacinar e a gente sequer sabe se tomou a vacina. Dizendo quem tomou placebo, já ajuda”, critica a empresária.
Bárbara conta que se sente insegura com a falta de respostas. “Participei para poder tomar a vacina, porque, até então, ninguém sabia quando ela ia chegar ao Brasil. E, quando liguei para me informar, eles disseram que quem fosse voluntário ia tomar a vacina antes de todo mundo. Só que ainda não tem data, ninguém sabe quem tomou o que. A gente está receosa, insegura, e você fica se sentindo usada porque em outros países já começaram a vacinar e eu ajudei a ser essa possibilidade de a empresa vender a vacina no mundo todo, de provar que o estudo é eficaz”, afirma.
Ao contrário de Kátia, Bárbara prefere aguardar para receber a vacina da Pzifer. “Minha vontade é continuar [no estudo], mas queria que eles, da mesma forma que tiveram a boa vontade de pedir para a gente participar, pelo menos dissesse quem tomou placebo, porque tem gente vivendo como se já estivesse vacinado. E a gente não sabia se ela seria eficaz ou não, podia ser 90% de eficácia ou 9, 10%. Foi um tiro no escuro”, desabafa a empresária.
Segundo as voluntárias, o acompanhamento foi feito por um aplicativo, em que se respondia semanalmente se a pessoa teve sintomas de coronavírus ou não. Poderiam participar pessoas entre 18 e 65 anos, com comorbidades controladas.
Oxford
Assim como as voluntárias da Pzifer, o médico Djalma Souza, 26 anos, está sem saber se tomou a vacina contra a covid-19. Ele participou do estudo da Universidade de Oxford com o laboratório sueco AstraZeneca, coordenado pelo Hospital São Rafael em Salvador.
“O ensaio é randomizado, então ninguém pode saber o que tomou ou não, porque ainda não terminou o estudo e não sei em que fase ele anda. Mas vi que a vacina foi aprovada para uso emergencial. Então fica essa interrogação, até para a gente que é funcionário da área. Obviamente dá muita insegurança, porque eu estou morando afastado de meus pais por medo de contágio. E tendo a oportunidade de me vacinar, vai poder fazer com que eu possa entrar em contato com eles, depois que eles forem vacinados”, conta o médico.
Apesar de não terem entrado em contato com ele, Djalma ressalva que o acompanhamento do São Rafael não deixa a desejar. “Eles me ligam religiosamente toda semana, perguntando se tive sintomas, e disponibilizam um número com um médico responsável pelo estudo 24h. A assistência foi muito boa com a gente, eles foram muito organizados”, diz.
Souza também afirma que, desde o Natal, mesma data em que sua namorada testou positivo para a covid-19, ele está sem olfato. Por isso, acredita que deve ter recebido a vacina – a primeira dose foi em agosto e, a segunda, entre setembro e outubro. No entanto, os dois exames PCR que realizou deram negativos enquanto ele teve os sintomas. Além disso, o médico afirma que existe cláusula que proíbe os voluntários de usarem imunizantes de outro laboratório, pois impactaria no estudo. Para isso, o voluntário teria que abandonar a pesquisa da Oxford.
A também médica e voluntária da substância da Oxford/AstraZeneca, Larissa Voss Sadigursky, contou que tomou sua primeira dose de testes em julho e a segunda em setembro. Ela também acrescentou que foi monitorada a cada 15 dias pela equipe do estudo no São Rafael e que no último contato foi informada de que em breve será divulgado o descegamento do estudo, mas que não foi marcada uma data.
Ainda segundo Larissa, ela já sabe se tomou placebo ou vacina, mas que como o estudo não foi aberto ainda, ela não tem certeza se já pode compartilhar essa informação. Opinando como médica, além de voluntária, ela disse que caso tivesse tomado o placebo no estudo de Oxford, ela se vacinaria com a primeira substância que chegasse aos postos devidamente autorizada.
“Vacina boa é vacina no braço e aprovada pela Anvisa o quanto antes. A instituição é séria e não aprovaria sem eficácia ou segurança”, afirma a médica Larissa Voss Sadirursky.
Sem mistura
Os voluntários que por ventura tomaram placebo nos estudos de vacina feitos no Brasil – ou qualquer outra pessoa que esteja na fila aguardando a imunização – não precisam tomar duas vacinas diferentes. A afirmação é da infectologista pediátrica e especialista em vacinas, Anne Galastri.
Segundo a médica, aqueles que se voluntariaram para estudos devem entrar em contato com os respectivos laboratórios quando forem informados sobre que substância tomaram, se o imunizante ou o placebo.
“Quem tomou placebo, vai receber a vacina. A questão é que eles ainda estão organizando como vão chamar os que foram placebo, para agendar e receber a vacina. Os que colaboraram, se estiverem na dúvida, devem entrar em contado com os institutos de pesquisa para receber as informações adequadas, porque, se a pessoa já se vacinou, não tem porque tomar a Coronavac, ainda mais em um plano atual de imunização em que não temos doses suficientes para todos, tanto que a Secretaria Municipal de Saúde está priorizando determinados grupos. Precisamos de sabedoria e altruísmo”, orienta.
A especialista em vacinas também diz que não há estudos que indiquem que a imunidade aumente se o indivíduo tomar duas vacinas diferentes ou se existirão consequências. O principal alerta é de que não há motivo para tomar imunizantes de laboratórios diferentes.
“Provavelmente os riscos são pequenos, mas a principal função da vacina fica faltando, ou seja, a proteção”, pondera Galastri. Ainda de acordo com ela, o prazo para a divulgação de quem tomou a vacina ou o placebo no estudo de Oxford é só após a aprovação da vacina pela Anvisa.
Em resposta à reportagem, a Anvisa explicou que o ‘cegamento do estudo’ – requisito obrigatório em pesquisas clínicas de medicamentos e vacinas – pode ser quebrado pelo pesquisador após autorização do órgão regulador. “A decisão por quebrar o cegamento do estudo e revelar quem tomou placebo ou não, é do pesquisador. O centro de pesquisa deve solicitar a autorização à Anvisa para a quebra do cegamento, mas a decisão sobre o momento de fazer isso é do pesquisador”, diz a nota da agência.
Centros de pesquisa
O Hospital São Rafael não quis comentar sobre a quebra de cegamento do estudo de Oxford. “A unidade não faz nenhum pronunciamento sobre assunto relativo a voluntários da vacina”, disse a instituição.
Já a Pzifer informou que “a vacinação dos voluntários que receberam placebo será realizada de acordo com as resoluções dos órgãos brasileiros, em data a ser confirmada”. Ao todo, foram 150 locais de estudo clínico nos Estados Unidos, Alemanha, Turquia, África do Sul, Brasil e Argentina. No Brasil, participaram 2.900 voluntários e os trabalhos foram conduzidos pelo Cepic – Centro Paulista de Investigação Clínica, em São Paulo, e pelas Obras Assistenciais Irmã Dulce (Osid), em Salvador.
As Osid explicaram que aguardam autorização da Anvisa, que deve acontecer até a sexta-feira, 22. A meta, quando autorizado, é vacinar os 1.549 voluntários em 12 dias, começando pelo grupo de risco. Se aprovado pela agência, a vacinação deve começar na segunda-feira (01/02).
O Instituto D´Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), centro complementar do estudo da vacina de Oxford no Brasil, que conduziu o processo de seleção, recrutamento e acompanhamento de voluntários, assim como a aplicação dos imunizantes no Rio de Janeiro e em Salvador, disse que planeja vacinar todos os grupos voluntários em dois meses e meio, começando pelos grupos de risco. O IDOR convocará os voluntários “assim que as autoridades éticas e regulatórias aprovarem a emenda do protocolo de estudo em relação ao processo de ‘descegamento’ e, de acordo com a disponibilidade das vacinas em nossos centros, no Rio de Janeiro e Salvador”.
O centro de pesquisa não recomenda que os voluntários tomem duas vacinas diferentes contra a covid-19. “Não é recomendado tomar vacinas diferentes contra a covid-19. Por isso, os participantes do estudo que optarem por tomar qualquer outra vacina contra a covid-19, devem passar previamente pelo processo de abertura de cegamento para saber qual imunizante já receberam”, conclui.
Fonte: Correio