Breve guia da judicialização da Saúde em 2024

saúde

Por Gabriel Brito

Alguns temas estão em destaque no que diz respeito à garantia de direitos à população. Entre eles, o direito ao aborto, a descriminalização da maconha e a garantia de tratamento a pessoas autistas. Entenda o que está em jogo

Entre temas mais e menos midiáticos, a saúde certamente ocupará um lugar de destaque nos trabalhos das duas mais altas esferas do poder judiciário brasileiro. Como resume um guia publicado pelo Jota, oito grandes temas da área devem passar pelas mãos dos ministros do STF e STJ neste ano.

Certamente, a relação entre seguros de saúde e seus clientes será, e já é, a mais recorrente. Trata-se do âmbito onde a conflitividade jurídica atinge níveis mais massivos, o que na visão de especialistas retrata um insuficiência crônica dos atuais mecanismos regulatórios brasileiros. Segundo a pesquisa JUDICIALIZAÇÃO E SOCIEDADE: Ações para acesso à saúde pública de qualidade, realizada pelo CNJ em 2021, foram 2,5 milhões de ações relativas ao tema protocoladas na justiça entre 2015 e 2020.

“A judicialização é um sintoma que denota graves problemas de regulação no sistema de saúde”, afirmou recentemente o pesquisador José Sestelo ao Outra Saúde. “Uma situação em que as questões de assistência à saúde são resolvidas no judiciário por si só já é um sinal de alerta, um sinal de falha regulatória e sistêmica. A justiça não seria o lugar ideal para resolver esse tipo de situação. O sistema de saúde deveria ter os seus próprios meios de regular preço, acesso, qualidade, de uma maneira que a demanda judiciária não deveria ser tão alta como é no Brasil. Eu penso que as estruturas oficiais de regulação não acompanharam as mudanças estruturais que ocorreram no setor e ainda estão organizadas para fazer frente e analisar uma moldura do final dos anos 1990, início dos 2000, o que atualmente não existe mais.”

Apesar da decisão de 2022 favorável ao rol exemplificativo, que permite acesso a remédios fora do escopo vigente da ANS para tratamentos variados, deve ser mantido o expediente corporativo de judicialização, tática que, como explicou Sestelo, serve para que os planos privados invistam seu dinheiro em outras frentes. Os recentes balanços do setor, salvo por aplicações financeiras, explicam o fenômeno.

Outro tema espinhoso desta relação tem sido o cancelamento unilateral de planos de saúde, em especial de famílias, menos rentáveis às seguradoras do que os planos coletivos/empresariais. A negação intempestiva de acesso ao seguro contratado tem ocorrido em tratamentos caros, como de câncer ou terapias para pacientes autistas.

“Elas dizem que o cancelamento é previsto em contrato e não há nenhum tipo de tentativa de cortar os pacientes com deficiência. O que elas omitem é que existe um tema do STJ que define um precedente. Esse tema afirma que nenhuma seguradora pode unilateralmente cancelar um plano se um segurado estiver com um tratamento em andamento”, protesta a deputada estadual paulista Andrea Werner, símbolo da luta por inclusão de crianças autistas. Fora do âmbito da saúde, esta frente de batalha obteve uma pequena vitória: o governo paulista criou lei, baseada em proposta de Werner, que concede direito a acompanhamento de crianças em tal condição nas escolas públicas.

Já naquilo que afeta mais diretamente a atuação do Ministério da Saúde, será julgado tema que, aparentemente, tem pouco potencial de polêmica: trata-se da incorporação de remédios ou insumos de saúde pelo SUS. Geralmente, há receptividade do Estado em absorver novas tecnologias ou obrigação de aquisição de novos materiais. No fim das contas, depende-se mais da disponibilidade orçamentária, por vezes sabotada por interesses particulares, como retratado na matéria do Outra Saúde a respeito dos avanços de parlamentares sobre o orçamento da pasta.

Aborto e maconha

Sem dúvidas, os dois temas mais candentes são as ações que correm no STF a respeito da descriminalização do porte de maconha e o direito ao aborto. Pautas-fetiches de uma extrema-direita que acabou de arruinar a sociedade na direção do poder executivo, os assuntos se mantêm em evidência. O renitente apego a pautas morais pode até sinalizar ausência de projeto de bem-estar social mais amplo da parte de tal espectro político, mas é fato que ainda mobiliza debates de massa. Em ano eleitoral, especialistas analisam até como perda de tempo o dispêndio de energia nestes temas que tocam em relações sociais estruturais.

“Os objetivos da necropolítica da guerra às drogas são outros e eles continuarão a ser perseguidos e atingidos, independente destas marolas que o STF e o Congresso estão fazendo. Sob a armadura moral, religiosa, jurídica e policial, a guerra às drogas opera na disputa de terras, na disputa de poder, na manutenção da hierarquia social e étnica e no controle e ordenamento dos comportamentos pessoais. A ideologia e as práticas da guerra às drogas constituem um instrumento muito eficiente de terrorismo constante sobre populações marginalizadas. Um instrumento útil e eficiente demais para ser facilmente descartado”, lamentou Paulo Fleury, em duríssima crítica à hipocrisia generalizada em torno do tema.

O mesmo se estende ao aborto, como se viu no recuo do ministério da Saúde em nota técnica que reafirmava o direito a tal procedimento em casos previstos em lei. Após gritaria desta direita que barbarizou na coordenação de políticas de saúde, o ministério recuou. Agora, entidades dominadas pelo conservadorismo da elite nacional, a exemplo do CFM, colocam as mangas de fora e tentam avançar em sua agenda de supressão paulatina de direitos. Nesta semana, a autarquia se atreveu a agir como se fosse o próprio Ministério da Saúde e publicou nota que visa proibir médicos de procederem com assistolia fetal em gestações frutos de estupro superiores a 22 semanas, prazo cuja especificidade carece de qualquer amparo médico.

“O CFM tem poder de autorregulação sobre a prática da medicina. Só que nesse caso há evidente abuso de poder, já que uma resolução do CFM não pode contrariar a lei federal, que não fixa prazo para os casos de aborto legal. Mais uma lamentável prova de que o atual CFM está a serviço da agenda política da extrema direita”, comentou Fernando Aith, especialista em Direito de Saúde e colunista do Jota.

“Devemos lutar pela atualização da agenda dos direitos reprodutivos, que muitos já chamam de cidadania reprodutiva. Enfim, toda uma agenda que dê essa possibilidade das mulheres terem direitos reprodutivos consistentes, assegurados e também até essa bandeira tão sensível, que é a questão do aborto, uma agenda global. Também muitos países do mundo se mobilizam com relação a isso”, rebate Lucia Souto, do Conselho Nacional de Saúde.

Ainda sobre a maconha, há a questão da entrada da cannabis medicinal no mercado brasileiro e seu uso para tratamentos, inclusive no SUS. No âmbito privado, fármacos à base de canabidiol já estão acessíveis, mas cabe um parecer definitivo do STF a respeito de sua liberação sem riscos de judicialização para todo o território brasileiro. Aqui, novamente o CFM tentou barrar o avanço e, propositalmente, confundiu produtos à base de CBD com THC, a propriedade psicoativa liberada pelo consumo recreativo de maconha.

Além de todos esses temas, vale destacar que 2023 foi marcado por uma forte judicialização do Piso Nacional da Enfermagem. Garantido no setor público, o piso que garante salários minimamente razoáveis a esta que é a maior força de trabalho do sistema de saúde é sistematicamente postergado pelo setor privado. Incapaz de dar cabo da solução, o STF tomou decisão de regionalizar a execução do piso e jogar para as esferas estaduais a conflitividade entre empregadores e empregados.

“A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), ao favorecer a regionalização na implementação do piso salarial da enfermagem, representa um grande retrocesso. Essa regionalização não considera realidades específicas enfrentadas por enfermeiras em diferentes partes do país e dificulta ainda mais a busca por uma remuneração justa para todas”, comenta Solange Caetano, presidente da Federação Nacional dos Enfermeiros.

Entre Conflitos de Competência, Recursos Especiais, Ações Diretas de Inconstitucionalidades, dentre outras definições pouco familiares ao público médio, a saúde verá nos tribunais a encenação de boa parcela de suas confrontações políticas, econômicas, ideológicas. Dessa forma, parece não haver espaço para ilusões a respeito de soluções definitivas para a maioria dos temas aqui expostos.

“Em 2024, a tendência é de que esses assuntos continuem em evidência”, sintetizou a advogada Estela Nunes a respeito dos dois temas.

Fonte: Outras Saúde / Créditos: Matheus Piccini/Correio do Povo

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