Mais do que a manifestação do livre pensar de Caetano, exposto nessas duas aspas, o livro –a partir de declarações do compositor e de pessoas próximas a ele recolhidas ao longo das últimas seis décadas em jornais, revistas, filmes e livros– documenta o baiano não enquanto personagem acabado, coerente, definido, mas em processo de construção e pleno de contradições.
(FOLHAPRESS) – O personagem retratado em “Outras Palavras: Seis Vezes Caetano” (Editora Record), de Tom Cardoso, não se deixa capturar facilmente. Num momento, por exemplo, ele assume uma postura sexual avessa a binarismos, décadas antes de isso ser uma pauta banal.
“Tendo a rejeitar o conceito [de bissexualidade]. Eu quero mesmo é experimentar sempre, de tudo. Ser capaz de entrar e sair de todas as estruturas”.
Noutro, lança um olhar terno –mesmo que não se descarte a ironia– sobre o general João Figueiredo, então presidente do Brasil durante a ditadura militar. “Acho que ele tem uma cara de homem que ainda é um pouco menino, que faz uma cara de sério para você achar que ele é sério. Uma seriedade máscula, meio infantil. Eu não antipatizo com ele não.”
Mais do que a manifestação do livre pensar de Caetano, exposto nessas duas aspas, o livro –a partir de declarações do compositor e de pessoas próximas a ele recolhidas ao longo das últimas seis décadas em jornais, revistas, filmes e livros– documenta o baiano não enquanto personagem acabado, coerente, definido, mas em processo de construção e pleno de contradições. Ou seja, “obra em progresso”, para fazer referência ao blog e à série de shows que ele capitaneou em 2008.
Condensada em pouco mais de 200 páginas –que se somam a anexos como notas, discografia e bibliografia–, sua vida ecoa quase parágrafo a parágrafo os versos que ele mesmo canta em primeira pessoa em “O Quereres”. “Onde queres família, sou maluco/ E onde queres romântico, burguês/ Onde queres Leblon, sou Pernambuco/ E onde queres eunuco, garanhão.”
“Entendi que muito mais importante do que eu ouvir Caetano agora sobre todos esses acontecimentos desde a década de 1960 seria ouvi-lo falando de tudo isso no calor da hora, ou seja, suas declarações no momento em que esses fatos se davam”, explica o autor, que não entrevistou o baiano ao longo dos dois anos de apuração para fazer o livro.
“Conversei com algumas pessoas próximas a ele, mas a pesquisa deu preferência aos arquivos de grandes jornais e mesmo da mídia independente. Porque não deixam de ser inéditas e reveladoras falas dele que nunca mais foram lembradas, que não são encontradas no Google.”
O livro, que Cardoso prefere classificar como ensaio em vez de biografia, se divide em seis capítulos, cada um dando conta de um aspecto da personalidade de Caetano –as “seis vezes Caetano” a que se refere o título. Estão lá “o santo-amarense”, “o polêmico”, “o líder”, “o vanguardista”, “o amante” e “o político”.
A estrutura, explica Cardoso, foi inspirada na maneira como Paulo Cesar de Araújo organizou seu “Roberto Carlos em Detalhes”, biografia proibida pelo Rei e recolhida das livrarias. “De certa forma, foi uma provocação com a campanha que Caetano e todos do movimento Procure Saber fizeram contra as biografias não autorizadas. O que se pode descobrir de comprometedor na vida de artistas como eles?
Um envolvimento com o PCC? Não faz sentido essa preocupação”, diz o autor.
Não há realmente nada de especialmente comprometedor nas páginas de “Outras Palavras”. Há curiosidades como a revelação de quem foi a inspiração para a canção “Eclipse Oculto”, relato de uma transa malsucedida –em versos como “mas na hora da cama nada pintou direito”–, o tradutor Paulo César Souza, amigo de Caetano.
“O próprio Paulo César falou disso numa entrevista de 2008 do jornal baiano ‘A Tarde'”, explica o autor, desdenhando do teor escandaloso da informação e novamente, por tabela, da resistência às biografias. “Não chega a ser uma grande revelação uma transa de Caetano com um homem hoje em dia, não é?”
Outras musas de canções aparecem em “O Amante” –das “tigresas” Zezé Motta e Sônia Braga à Gal Costa de “Da Maior Importância”, outra letra escrita para um desencaixe amoroso. Nesse mesmo capítulo, são lembrados também o casamento aberto de Caetano e Dedé Gadelha e o início do relacionamento do cantor com Paula Lavigne quando ela era ainda uma adolescente –fatos que nunca foram tratados como segredo, como as muitas declarações dadas ao longo do tempo presentes no livro comprovam.
Os aspectos mais delicados se mostram não ali, mas na tensa relação de Caetano com a imprensa e a crítica, sobretudo na década de 1970. Numa entrevista em 1978, ele se refere a críticos musicais como obedientes a dois senhores –”um é o dono da empresa, o outro é o chefe do partido.”
Cardoso pondera que o teor das “policialescas críticas” era muitas vezes de patrulha descabida sobre a produção do artista considerada “alienada”. Cita como exemplo alguns textos escritos sobre o disco “Bicho”, de 1977, que tinha como canção-símbolo a dançante “Odara”: “Dançar, nesses tempos sombrios?”, reprovava um jornalista. Mas o autor ressalta que “dizer que jornalistas estavam a mando do PCB em plena ditadura era algo sério e perigoso”.
“Vladimir Herzog havia sido assassinado em 1975, não muito tempo antes. Em 1981, houve o atentado no Riocentro. Ou seja, o ambiente ainda era tenso. Algum tempo depois, Caetano deu uma entrevista amistosa ao jornal comunista ‘Voz da Unidade’ e fez uma espécie de retratação.” Ao jornal, o baiano disse: “Profissionalmente eu tive muitos problemas com a crítica, mas não especificamente com os comunistas. Embora tenham dito que eu dedurei algumas pessoas, nunca soube quem é do Partido e quem não é”.
“Ele é muito leonino. É um personagem que lança suas opiniões não como estratégia para chamar a atenção, como marketing, mas por impulsividade. E, nessas horas, é capaz de falas muito coléricas, que se contrapõem a essa coisa meio leãozinho, mais doce, hedonista, odara”, diz Cardoso, comparando-o com a personagem de outro livro seu, a biografia “Ninguém Pode com Nara Leão”, lançada em 2021. “Nara é o oposto disso, ela tinha preguiça dessa hiperexposição, apesar de ter dado entrevistas muito impactantes.”
Entre as muitas polêmicas do livro, há desde as mais explícitas –como a com Paulo Francis, que o inspirou em certa medida a compor “Reconvexo”– às mais veladas –como a com Chico Buarque, alimentada sobretudo pela imprensa no período da Tropicália. Se o lança em embates, o caráter “leonino” de Caetano, como identifica Cardoso, também permitiu que se desenvolvesse a figura que aparece no capítulo “O líder”.
“Sem essa personalidade de Caetano, sem sua liderança, não haveria Tropicália, o próprio Gil reconhece isso. Há entrevistas de Gil pouco antes da Tropicália, que mostro no livro, na qual ele falava da ‘defesa da pureza da música brasileira’. Ainda havia certa dúvida nele. Em Caetano não. Ele mete o pé na porta e sai abrindo. É ele quem briga com a plateia do Teatro Tuca [no famoso discurso ‘vocês não estão entendendo nada’]. Ele foi peitando, sempre com um posicionamento corajoso.”
Coragem que aparece em episódios como a bronca que Caetano dá no todo-poderoso Antônio Carlos Magalhães quando este vem lhe cobrar por estar apoiando Collor. “Como você pode falar assim comigo?”, disse o músico na ocasião. “Vocês da direita sustentaram esse cara que nós fizemos tudo para derrotar e agora você vem me tratar como se estivéssemos juntos?”, continua Caetano, antes de concluir contando que “Toninho Malvadeza ficou ralo”.
ACM como oposição a Collor e Caetano visto como simpático ao ex-presidente –há várias declarações no livro que apontam nesse sentido– mostra a complexidade não só do cenário político brasileiro, mas do próprio comportamento do músico nesse cenário. O último capítulo de “Outras Palavras”, “O político”, aparece, portanto, como o mais rico da obra, ao acompanhar o pensamento do artista em movimento incessante.
Ele sempre declarou desinteresse em participar de organizações políticas (“Nunca pertenci, sequer, ao diretório acadêmico da minha universidade”), o que não o impediu de escrever canções que tocavam em feridas políticas do país e de ser preso e exilado. E menos ainda de participar ativamente da política do país, nunca se furtando a manifestar sua posição.
É minha parte favorita do livro”, diz Cardoso. “Me surpreendeu muito a maneira como ele vai mudando. Elogia o Lula, dá a entender que o vê como um estadista, e pouco depois sugere que o governo do PT é corrupto. Apoiou Fernando Henrique, mas quando o tucano o citou na cerimônia de posse, Caetano já achou aquilo oportunista. Defendeu Collor quando ninguém mais o defendia, elogiou Olavo de Carvalho. Mais recentemente se aproximou do [jovem historiador marxista] Jones Manoel, dizendo que não é mais o liberalóide que foi. Agora, já declara voto em Lula.”
Na visão do autor, esse comportamento –de constante e desavergonhado autoquestionamento– se reflete em outros aspectos de sua trajetória, como os que aparecem nos capítulos “o vanguardista” e “o polêmico”. “Mas é na política que ele se mostra mais evidente.”
Portanto, ao compilar, como mosaico ordenado, episódios e declarações de Caetano “no calor da hora”, o livro mostra que às vésperas dos 80 anos o artista ainda é capaz de driblar expectativas. Seja a de quem espera o lar ou a revolução, o bandido ou o herói, o caubói ou o chinês, o revólver ou o coqueiro.
OUTRAS PALAVRAS: SEIS VEZES CAETANO
Quando: Lançamento em 8 de agosto
Preço: R$ 69,90 (308 páginas)
Autor: Tom Cardoso
Editora: Record
Fonte: Notícias ao Minuto