Especialistas da USP traçam um painel na atual situação educacional do País e o que precisa ser feito para, mais do que se educar, se formar cidadãos
Quinta, 14 de abril de 2022
Texto: Marcello Rollemberg
Diante de tantos desafios que o Brasil tem enfrentado nos últimos anos – pandemia e a discussão sobre vacinas, retorno da inflação, governo errático, para ficarmos só com alguns –, talvez a educação seja o maior deles. Porque a crise na educação brasileira não é recente, não é de hoje, apesar de ter sido exponenciada nos últimos anos – e o País ter cinco ministros da área em menos de quatro anos talvez seja a síntese da crise educacional pela qual o Brasil enveredou. Não vale falar aqui de questões pastorais, disputa de influências e pedidos e propostas canhestras. Tudo isso é mais consequência do que causa. O fato é que a educação brasileira é como um grande e pesado avião que tem tido vários percalços em sua viagem rumo ao futuro. Só que, diferentemente das viagens dos aviões de carreira, a turbulência intermitente é a regra, não a exceção. E o destino ainda parece incerto.
No livro A Escola Pública em Crise, resultado de um seminário internacional realizado em 2019 na Faculdade de Educação da USP (FE-USP), é dito na apresentação: “Entendemos que o campo da educação e a escola pública mais especificamente vivem uma crise histórica”. Mas, afinal, que crise é essa que tem na escola pública seu ponto de partida mas não se resume a ela? “Naquele momento, entendíamos que havia uma crise estrutural, que tinha a ver já com um governo federal que assumiu o poder desprovido de qualquer compromisso com uma pauta educacional. Entendíamos que o Brasil estava sem projeto e sem rumo no tocante às políticas educativas. Acreditamos que o cenário que visualizávamos naquele ano de 2019 apenas se aprofundou”, explica a professora e pesquisadora da FE Carlota Boto, uma das organizadoras do volume.
“Nos últimos anos, nós tivemos sucessivas trocas de ministros da Educação, sem que houvesse uma diretriz sobre qual é a orientação a ser dada para a melhoria do ensino público. Se nós perguntarmos quais são as prioridades das políticas públicas no campo da educação, não saberemos responder a essa pergunta”, avalia ela. Já para Bernardete Gatti, conselheira da Câmara de Educação Superior e integrante do Comitê Consultivo da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, o desafio é “privilegiar o bem comum, o bem público, o respeito à diversidade, mantendo princípios éticos e sociais, sem desesperançar”. “O panorama hoje se nos apresenta repleto de dilemas desorientadores”, afirmou ela em recente entrevista ao Jornal da USP.
Entre esses dilemas parece estar a inescapável questão tecnológica e o chamado letramento digital – tanto solução quanto problema quando o quadro a ser compreendido é o da educação. Para o professor sênior do Instituto de Física da USP (IF) e coordenador acadêmico da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do IEA, Luís Carlos de Menezes, se os anos de pandemia “escancararam e aprofundaram as desigualdades do País, especialmente na educação”, eles também tiveram outro condão: “difundir recursos tecnológicos de informação e comunicação que se mostraram importantes para o ensino”, afirmou ele recentemente ao Jornal da USP. E aí talvez residam o problema e o dilema tecnológico. O pesquisador e professor da Faculdade de Educação Ocimar Alavarse comenta que os dados indicam uma defasagem na leitura e resolução de problemas matemáticos por parte dos alunos. “Essas duas competências são muito importantes”, diz. “A capacidade de leitura interfere no aproveitamento de todas as disciplinas da escola, assim como na resolução de problemas, que, embora associada à matemática, diz respeito à lógica e ao raciocínio”, afirmou ele, em entrevista à Rádio USP, sobre a mudança no Ensino Médio.
Sem planejamento, sem futuro?
Políticas públicas: talvez essas sejam as palavras mágicas que poderiam abrir as portas para um futuro mais promissor da educação no Brasil – e para todos os envolvidos, não só na escola básica, mas em todos os níveis. Mas essas palavras parecem esquecidas, em um mutismo governamental que não vem necessariamente de hoje. E isso, ao se falar de um Ministério da Educação que tem uma verba de quase R$ 160 bilhões. Mas o problema, aparentemente, não é falta de dinheiro. “O problema da educação no Brasil é um problema que envolve, sim, o financiamento. Mas envolve também o uso da verba. A impressão que dá é a de que o MEC hoje não sabe onde aplicar seus recursos. Não há projetos, não há diretriz, não há orientação. Falta interesse em investir na educação pública”, analisa Carlota Boto. “Esse atual governo federal não tem projeto para a educação. Aquilo que foi desenhado pelos últimos governos também não ajuda. A BNCC do Ensino Médio, por exemplo, desmontou com as disciplinas clássicas dessa etapa de ensino. Assim, pode-se perguntar como se dará a formação de um jovem, se essa formação não contempla uma sólida base de História, de Filosofia e de Geografia, para citar somente três exemplos”, afirma a professora da Faculdade de Educação, se referindo à Base Nacional Comum Curricular, o instrumento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação.
Nessa falta crônica de planejamento – que coloca em risco um futuro mais tangível para milhões de brasileiros – acaba-se, também, se perdendo aquilo que foi conquistado. É o caso do Inep, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. O instituto – que leva o nome de um dos principais educadores da história brasileira, ao lado de nomes como Paulo Freire e Darcy Ribeiro, que não encontraram sucessores do mesmo nível em um passado recente – fornece a base de dados para a realização de levantamentos estatísticos e avaliações em todos os níveis e modalidades de ensino, como o Enem. Mas a recente crise no Inep, no final do ano passado, quando um grupo de servidores do instituto – às vésperas do Enem – solicitou afastamento alegando “falta de comando técnico” e “clima de insegurança e medo”, colocou todo o trabalho em risco.
“O Banco de Dados do Inep, construído ao longo dos governos de Fernando Henrique, Lula e Dilma, permitiu uma avaliação, tanto dos estudantes como das escolas. O MEC criou, ao longo destes anos, condições para um bom diagnóstico. Quem deve dizer para onde vai o dinheiro da Educação é um banco de dados transparente para a sociedade, bem construído do ponto de vista técnico, idealizado por estatísticos especializados na área, analisado por especialistas em educação de países pobres e com distribuição de renda desigual. O Brasil não é os Estados Unidos, nem a Coreia e, muito menos, a França”, contextualiza a pesquisadora Janice Theodoro. “Dessa forma, era possível fazer políticas públicas independente dos interesses imediatos. E, apesar de todas as dificuldades, foi um norte, permitia a análise fina da educação no Brasil. Mas o que assistimos agora é à quebra desse banco de dados para sabermos como está a educação brasileira. E quando se perde o banco de dados, não é possível fazer o diagnóstico”, afirma ela. “A impressão que dá é a de que há uma paralisia, por um lado, e um proposital desmonte da instituição. Houve demissões coletivas de funcionários de carreira. E, a meu ver, o próprio futuro da instituição está comprometido. Com um Inep fraco e desarticulado perde-se o norte da educação no Brasil”, complementa a professora Carlota Boto.
Nesse contexto, é importante se refletir sobre alguns pontos essenciais que poderiam pavimentar uma melhor estrutura educacional no País. Um deles é o que alguns analistas afirmam ter sido um importante primeiro passo, que foi a universalização do acesso ao ensino primário, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Mas os passos seguintes não aconteceram. Caso típico de falta de planejamento? Pode ser. Um outro ponto é que falar de educação no Brasil é uma coisa, fazer é outra bem diferente. Ou seja: a questão da educação no Brasil é mais retórica do que traduzida em ações e planejamentos substantivos.
“Eu diria que nós incorporamos todas as crianças e jovens na escola. Cumprimos, portanto, a primeira geração de direitos educacionais. Falta enfrentarmos a segunda geração – com vistas à qualidade de ensino – e a terceira geração, que postula o descentramento do currículo. Além disso, é preciso que não nos esqueçamos de que o currículo tem uma dimensão de aprendizado da convivência. Não há mundo individual sem uma dimensão coletiva”, afirma Carlota Boto. “Sendo assim, há que se proporcionar, para além da dimensão cognitiva do aprendizado de saberes e conhecimentos, a habilidade da convivência com o outro, com o diferente, com o diverso. Mudar o foco da educação em prol do coletivo requer, antes de tudo, vontade política. É preciso interpretar esse mundo coletivo. E proporcionar condições para que os alunos também o façam”, acredita ela.
“Os gráficos sobre analfabetismo no Brasil mostram em que país vivemos, hoje, e que Brasil Fernando Henrique, Lula e Dilma receberam e tiveram que administrar e alfabetizar. Cada um à sua maneira tentou enfrentar o problema sem destruir o que já havia sido feito antes. Agora o desafio é outro, imenso, formar de fato o brasileiro. Alfabetizando o que ainda falta e a pandemia da covid ampliou, desenvolvendo habilidades, oferecendo aos estudantes conhecimento para que ele possa sobreviver no mundo contemporâneo”, acrescenta Janice Theodoro.
Já quanto ao binômio retórica x ação, a situação é ainda mais complexa, acredita Janice Theodoro. “Para a educação ser igual para todos, a sociedade deveria evoluir em direção a uma melhor distribuição de renda e de acesso à cultura”, afirma a professora. “Uma vida equilibrada marcada pela ética requer aprendizado, exige modelos de identidade com base no bem comum, convívio social com pouca violência e muita discussão e participação política. Cultura e educação andam coladas. Só juntas permitem ver a proporção das coisas, o tamanho do mundo, ensinando a lidar com a diferença. Não é fácil.”
A professora Carlota Boto vai no mesmo diapasão. “Historicamente, a educação tem sido enfatizada no discurso político, sem que haja um correspondente investimento nas políticas públicas. Porém, nos últimos anos, eu diria que nem isso vem acontecendo. Há um vácuo nas ações e outro vácuo nos discursos. Esse governo federal não fala de educação. Quando fala, menciona questões de ideologia. Sobre as questões do conteúdo, da melhoria da escola pública, não se diz nada”, afirma ela. “E, no entanto, a educação do futuro deverá ser intercultural, engajada com as pautas do ambiente. Deve ser uma pedagogia do respeito, da inclusão, da pertença a um mundo comum, que proporcione padrões de convivência que sejam pautados pela tolerância à diferença. Aliás, é mais do que tolerância com o diferente. Trata-se efetivamente de abraçar a diferença, em nome da valorização de sociedades que, por princípio, são multiculturais e multiétnicas. A convivência com o outro é também por si só um elemento educativo. É preciso levar as escolas a desenvolverem práticas democráticas na interação entre professores e alunos, mas cuidar também para que se ensine os alunos a serem críticos em relação ao próprio conhecimento aprendido. Trata-se de uma postura crítica e analítica diante do mundo: diante das desigualdades, diante das injustiças. Trata-se também de uma nova relação com o conhecimento e com os valores.”
Que cidadãos estamos formando?
Diante dessas questões colocadas, é importante se perguntar: afinal, que cidadãos estão sendo formados? De que forma? É o que a professora Janice Theodoro afirmou há pouco: o desafio é formar o brasileiro, mesmo com uma bolha social a separar estudantes cultural e educacionalmente. E aí nos deparamos com um dilema: por quais caminhos seguir? Tem-se investido em uma formação talvez mais “tecnicista”, de formação, digamos, de “cérebro de obra”, do que de cidadãos?
“Sim, a formação hoje preconizada é tecnicista. Em nome do que se passa a compreender como projeto de vida, circunscreve-se o aluno à sua situação de existência atual, como se ele estivesse destinado à fatalidade de permanecer nesse seu lugar de nascimento. Isso vai acentuar a distância entre os projetos de vida dos jovens de camadas mais abastadas e aqueles pretensamente mais modestos projetos de vida dos jovens mais pobres. É isso que se espera: que os projetos correspondam ao caráter estático da sociedade brasileira, com suas fraturas e desigualdades”, afirma Carlota Boto. “A ação educativa tem alguma autonomia em relação às políticas que a estruturam. Então, pelo empenho, pela dedicação e pela competência de professores em todos os recantos deste País, há sim cidadãos sendo formados. Mas isso é uma formação a contrapelo. Formamos cidadãos críticos e comprometidos com um mundo mais justo apesar da lógica de um modelo político que vai em direção contrária.”
Fonte: Jornal USP