Por Gabriel Brito
Eleições para o Conselho Federal de Medicina se aproximam, e com a disputa acirrada fica claro que os interesses vão além dos ideais alinhados à ultradireita. Há poder e recursos em jogo. Sinais da mediocridade que tomou o órgão
As eleições do Conselho Federal de Medicina (CFM) acontecem na próxima semana, e a polarização ideológica forçada por setores conservadores que se apoderaram do órgão transbordou as disputas da categoria. Pouco familiarizada com as eleições que aparentemente representam a mera distribuição de cargos burocráticos de uma autarquia fiscalizadora do exercício profissional, a sociedade civil aos poucos toma conhecimento da envergadura dos interesses em jogo.
“As chapas de oposição são formadas por colegas muito idealistas, que não têm a dimensão do que acontece no Conselho. Atacam o discurso negacionista e antivacina por uma questão científica. Mas o Conselho atual tornou-se antivacina porque isso deu dinheiro. Tem a ver com ideologia, mas também com o ‘dólar’”, disse uma fonte médica ao Outra Saúde, que pediu anonimato para evitar retaliações.
Para se ter ideia, de acordo com o próprio balanço financeiro publicado em sua página, o Conselho Federal de Medicina movimentou mais de R$ 700 milhões apenas em 2023. Não há salário para o cargo de conselheiro, mas diversas formas de pagamento e reembolso por participação em eventos oficiais, debates e reuniões. Compensações e indenizações, isentas de imposto de renda, conforme norma defendida pelo órgão há pelo menos 18 anos.
Mauro Ribeiro, ex-presidente do CFM indiciado no relatório final da CPI da Pandemia por defender tratamentos não baseados na ciência e deixar correr solto as mentiras anticientíficas, é um exemplo. Suas atividades em 2020 geraram mais de 1 milhão de reais em gastos relativos a viagens, jetons e reembolsos, valor incompatível com a tabela oficial de tais despesas, o que levou a Câmara dos Deputados a desconfiar de que tais atividades se tornaram uma forma de remuneração não assumida. “Ser conselheiro virou profissão”, resume a fonte ao Outra Saúde.
Antes, Ribeiro foi investigado pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul por recebimento de plantões não realizados entre 2013 e 2015, além de ter consumido outros R$ 500 mil reais de reembolso por passagens e participações em reuniões quando já eleito para o conselho federal pelo estado. Na investigação, o MP-MS também considera que houve acobertamento do mesmo expediente em favor de outros nove médicos.
Fratricídio entre as direitas
Ao colocar esse panorama, talvez fique mais fácil compreender por que a eleição para o Conselho Federal pelas duas cadeiras do Rio de Janeiro tenha quatro chapas de direita/extrema-direita. Do privatismo neoliberal clássico apoiado pelo deputado doutor Luizinho, ventilado para tomar o cargo de Nísia Trindade pelo “Centrão”, a chapas de fanáticos como o atual conselheiro, Rafael Parente, secretário de Atenção Primária à Saúde na criminosa gestão da pandemia pelo Ministério da Saúde, os interesses pelos privilégios do cargo atraem agentes políticos sem relação nenhuma com a elaboração de políticas públicas ou de carreira do setor.
A entrada de Carla Zambelli e Valdemar Costa Neto na campanha de Armando Lobato e movimentações de bastidores de Nikolas Ferreira e Carlos Bolsonaro por outras chapas sinalizam que há algo mais do que o mero exercício da medicina em jogo. Já em SP, Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan e também indiciado na CPI da Pandemia, declara apoio à chapa 2 e propagandeia a mesma “autonomia médica” que embasou o respaldo do órgão a prescrição de tratamentos ineficazes e até nocivos para covid-19. Vale destacar que o empresário autorizou o uso de cloroquina no tratamento de sua própria mãe, que não resistiu à doença.
Na visão de Silvia Uehara, candidata ao conselho pelo Mato Grosso do Sul, o CFM não se interessa pela defesa do SUS, muito menos pelo direito à saúde de todos os brasileiros. “Saúde é direito, não é favor prestado por organizações sociais, por ONGs, que vai ser prestado para pessoas que não têm direito. Todos os brasileiros, todos os cidadãos pagam o imposto. Penso que uma das principais bases da saída do CFM das instâncias de representação social é essa tendência à privatização”, analisou.
Para as chapas da oposição, o órgão não só se deixou politizar pelos interesses diversos de uma direita anti-SUS como abandonou os próprios interesses da categoria que alega representar. Questões de carreira foram abandonadas pelos dirigentes do órgão e médicos de todo o Brasil vivem um processo de precarização e sobrecarga laboral, o que em última instância remete à lógica de contenção de investimentos públicos ditada pelos dogmas neoliberais na gestão do Estado.
“Os recursos públicos de saúde têm de ser investidos às instituições públicas, nas carreiras públicas da saúde. O investimento público não deve ser destinado, em sua maioria, como é atualmente, às empresas terceirizadas, às contratualizadas. Se tem alguma coisa que não funciona, alguma prestação de serviço que não funciona atualmente no SUS é o sistema terceirizado”, completou Uehara.
Dessa forma, entende-se porque o CFM se afastou dos órgãos de elaboração política, como o Conselho Nacional de Saúde, e toma iniciativas que afrontam as próprias diretivas do Ministério da Saúde – para não dizer do próprio código penal, a exemplo de sua ingerência no direito ao aborto legal. Também saiu da Comitê Nacional de Residência Médica, ao se sentir contrariado pela decisão do governo federal de aumentar o número de membros não médicos indicados ao órgão, num contexto onde a falta de vagas para residentes médicos – isto é, profissionais recém-formados – é crônica e frequente alvo de críticas dos profissionais.
“É muita grana. No CFM adquire-se muito poder econômico. Não é só por ideologia, por serem de direita. Por exemplo, o órgão fiscaliza e define cobrança em cima de empresas sobre seu capital social, isto é, quanto grupos privados, de acordo com seu capital social declarado, vão pagar. Um menino sai agora da faculdade paga anuidade de Pessoa Jurídica equivalente a uma clínica abastada, uma grande rede de planos privados. Se ele tem mais de um vínculo de trabalho, paga anuidade por cada um desses vínculos. E quem define isso é o CFM”, completa a fonte não identificada nesta matéria.
Curiosamente, o deputado Nikolas Ferreira, símbolo das pautas de uma direita fanática cujas bandeiras suprimem direitos de “minorias”, protagonizou audiência pública na qual contestava tal decisão do governo sobre o comitê de residência. Outro dado curioso é que o Mais Médicos – programa fundamental na promoção do direito à saúde no governo Dilma destruído por Bolsonaro por ódio ideológico – em sua nova versão tenta compensar o vazio de vagas em residência ao garantir tal progressão na carreira de quem o adere, de maneira a facilitar a obtenção do título de especialista de recém-formados.
No entanto, a iniciativa jamais foi apoiada pela atual direção do CFM. Na verdade, o órgão segue a tentar esvaziar o programa, movimento enfraquecido pela alta adesão de profissionais, além do próprio preenchimento dos imensos vazios assistenciais que a gestão Bolsonaro/Parente promoveram ao destruir o Mais Médicos e fracassar na implantação do Médicos Pelo Brasil. “Quem entrou no Médicos pelo Brasil foi enganado, levou um golpe. Inclusive, em breve veremos movimentações desses profissionais em busca do que lhes foi negado quando aderiram ao programa”, agregou a fonte médica aqui preservada.
Por sua vez, a Frente Pela Vida, rede de movimentos sociais pela saúde, declara apoio às chapas de oposição. A Frente resume suas ideias para renovação em cinco pontos: “apoio incondicional ao Sistema Único de Saúde (SUS) como espaço de promoção da saúde e de realização profissional; defesa da ciência como base do exercício da medicina; valorização do trabalho médico de qualidade, com salário digno e com defesa da carreira única nacional para os médicos e médicas; redefinição de critérios para a abertura de novos cursos de medicina, com critérios epidemiológicos, com pré-requisitos de condições estruturais, de corpo docente e de cumprimento curricular satisfatório para boa formação profissional, com prioridade para as regiões mais carentes de médicos; retorno a instituições democráticas que definem políticas nacionais de saúde”.
Dois conceitos de saúde em choque
Diante disso, para além da capa de polarização entre o que seria um novo round entre “lulismo e bolsonarismo”, as eleições do órgão representam um cenário de disputa em torno da concepção de direito à saúde. Isso para não dizer uma noção do próprio conceito de saúde coletiva, como sugeriram os participantes do Cebes Debate (Centro Brasileiro de Estudos em Saúde), realizado nesta segunda-feira, 29.
“É hora de recriarmos o CFM e colocá-lo a serviço das necessidades de medicina. Por exemplo, temos uma nova política de cuidados paliativos e precisamos de um CFM capaz de orientar o exercício dessa nova especialidade, ajudar os médicos mais jovens. Precisamos tirar o órgão que adotou uma retórica governamental que nunca foi sua, mas de um governo que foi muito nocivo ao Brasil”, afirmou a médica Margareth Dalcolmo.
É certo que o Ministério da Saúde e o governo Lula conseguem implantar uma agenda de políticas públicas que voltou a expandir o SUS e tenta valorizar diversos profissionais de saúde, não apenas os médicos. Mas o CFM e os conselhos regionais são autarquias de Estado e, no final das contas, trocaram suas funções objetivas por interesses privados e, em última instância, contrários ao Estado e à categoria profissional que o financiam e legitimam.
“Tenho vergonha da atual direção do CFM. Houve um apequenamento do órgão e também do perfil de seu conselho, tomado pela mediocridade. É constrangedor pra muitos médicos. O CFM não deve defender interesses de médicos, mas sim da saúde da população, participar do processo de construção de política pública. Mas o órgão só aparece pra criar falsa polêmica e gerar entrave. Deixou de ser interlocutor da sociedade”, atacou o ex-ministro José Gomes Temporão no debate do Cebes.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Créditos: United Nations/Unsplash