Em entrevista, Carlos Saldanha, criador e coprodutor da nova série brasileira da Netflix, fala sobre o sucesso da produção e os desafios de adaptar lendas do folclore do Brasil para um público internacional.
- Data 01.04.2021
- Autoria Isabela Martel
De acordo com DW, Cuca, Saci-pererê, Iara, Curupira. Esses são personagens que acompanham muitos brasileiros desde a infância, seja por influência da escola, dos pais, dos livros, séries televisivas ou desenhos animados. São clássicos do folclore brasileiro e motivo de orgulho para muitos no país. Agora, essas lendas também fazem parte da série adulta Cidade Invisível, que estreou em fevereiro na plataforma de streaming Netflix.
A produção – protagonizada por Marco Pigossi e Alessandra Negrini – mistura suspense, drama, fantasia e investigação. Desde a sua estreia, a série figurou por pelo menos um dia entre os conteúdos mais assistidos da Netflix em mais de 40 países, e o sucesso levou à confirmação de uma segunda temporada.
A trama conta a história de Eric (Marco Pigossi), um policial ambiental no Rio de Janeiro que decide investigar a misteriosa morte da esposa (Julia Konrad). Enquanto segue as pistas, o protagonista se depara com entidades do folclore brasileiro e se dá conta de que tudo está conectado. São sete episódios com, em média, 35 minutos cada.
A série nacional é assinada pelo brasileiro Carlos Saldanha, diretor conhecido no mundo das animações. Ele esteve à frente, por exemplo, das franquias A Era do Gelo e Rio, além de O Touro Ferdinando, indicado ao Oscar. Cidade Invisível é o primeiro projeto de live action de Saldanha.
Em entrevista à DW Brasil, ele falou sobre a importância de trazer elementos da cultura brasileira a projetos audiovisuais: “Se as pessoas conseguem fazer sobre China, sobre França, sobre outros países, por que não do Brasil?”, questiona.
“A gente é tão bombardeado com coisas negativas [sobre o Brasil], que acaba esquecendo as positivas. […] São essas coisas, essas memórias, essas histórias, que para a gente são tão ricas e tão legais, que a gente não pode deixar morrer”, diz. “Só porque as coisas às vezes não acontecem do jeito que a gente gostaria que fossem, não significa que as coisas positivas não estejam aí para serem mostradas também.”
O diretor comentou ainda as críticas de alguns ativistas indígenas sobre a falta de representatividade desses grupos na trama: “Eu concordo. Acho que a gente poderia trazer um pouco mais de representatividade indígena na história.”
Saldanha também abordou os desafios de apresentar os personagens tipicamente brasileiros ao público estrangeiro. “Eu quis passar as coisas básicas: o Curupira protege a floresta. Ele quer salvar a floresta. A Cuca é uma bruxa misteriosa. Ela é má ou é boa? A gente não sabe. Eu tentei passar essas questões com as quais, no Brasil, a pessoa que conhece as entidades, esse folclore, já tem uma conexão […] Para mim, no final, ficou um ‘vamos passar a emoção que a gente está querendo passar com cada personagem, e vamos tentar explicar menos’.”
DW Brasil: De onde surgiu a ideia de fazer uma série adulta – com elementos de suspense, drama, fantasia e investigação – tendo os personagens folclóricos como protagonistas?
Carlos Saldanha: Eu já vinha há algum tempo querendo criar histórias que não sejam só para crianças. Os meus filmes são mais família, para um público talvez mais infantil, mas eu sempre quis buscar histórias de outras áreas. Eu queria muito fazer uma coisa com live action, com atores de verdade, cenário. Tinha muita vontade de fazer projetos no Brasil. Aí eu comecei naquela busca de qual seria um projeto […] Eu tinha umas ideias de curtas com temáticas mitológicas, de fantasia. Aí eu falei: por que não criar uma série? Talvez um thriller policial, uma coisa um pouco mais adulta, mas usar uma temática brasileira para isso. Na época estava tendo muitas séries de fantasia. Tinha American Gods, Grimm, Vikings… Umas coisas tão estrangeiras […] Na minha cabeça veio: “Como é que a gente nunca fez uma coisa assim com o Brasil?” A gente tem tantas mitologias, entidades, folclore e elementos tão mais interessantes e visualmente diferentes. Por que não abordar isso? Aí eu fui juntando essas ideias e fui montando.
Para você, qual é a importância de abordar a cultura brasileira em grandes produções audiovisuais?
É muito grande, porque é onde eu me conecto mais. São coisas que vêm de dentro. Eu acho que em qualquer história que você conte, é bom quando você se conecta de forma emotiva, tem uma emoção por trás. E o Brasil tem muito isso comigo. Apesar de estar aqui [nos Estados Unidos] há muitos anos […], essa parte ainda é muito forte dentro de mim. Então quando eu fiz Rio foi uma forma de trazer para o mundo da animação uma temática que as pessoas talvez não conhecessem totalmente. É uma coisa que para mim era muito importante, gerava um sentimento de orgulho, de querer mostrar. Se as pessoas conseguem fazer sobre China, sobre França, sobre outros países, por que não do Brasil? Eu sempre tive essa cabeça. Mesma coisa com o folclore. Para mim, é buscar o que nós temos de melhor no Brasil e que é pouco explorado. A gente é tão bombardeado com coisas negativas [sobre o Brasil], que acaba esquecendo as positivas. Eu tento focar no positivo: o que me faz ainda estar preso ao Brasil emocionalmente? São essas coisas, essas memórias, essas histórias que para a gente são tão ricas e tão legais, que a gente não pode deixar morrer. Só porque as coisas às vezes não acontecem do jeito que a gente gostaria que fossem, não significa que as coisas positivas não estejam aí para serem mostradas também.
A série tem o desafio de apresentar a um público muito amplo, internacional, lendas típicas do folclore brasileiro. Como tem sido a resposta fora do Brasil?
Tem sido incrível. As pessoas estão super curiosas e interessadas em saber mais. Eu acho que trouxe um frescor paras as temáticas de mitologia, de fantasia, desse estilo de produção […] Eu fiz um produto para Brasil, que tem um elemento Brasil nele, mas é um produto para o mundo também. Eu fiz a história de uma forma que tenha elementos com que as pessoas possam se conectar. No final, todo mundo é muito parecido. Todo mundo tem os mesmos sentimentos, o que muda é a roupagem, como você conta essa história, e nesse ponto a gente trouxe muita brasilidade.
A resposta foi mais forte em algum lugar ou região do mundo?
Na época que foi lançado, logo no segundo dia, a gente já ficou em primeiro lugar no Brasil, e ficamos por um bom tempo. Aí eu vi nos dados que começou a ficar entre os 5 do mundo, com muitos países vendo. Eu tive umas surpresas… Apesar de serem mercados pequenos e novos, a gente teve muita penetração na África, em países que estão começando agora a ter Netflix. A gente também foi super bem na França. Na Europa em geral, eu acho que teve uma boa aceitação. Acho que, aos pouquinhos, a gente foi conquistando um espaço aqui e ali, dentro desse público que também é um público meio nicho, de fantasia. Mas a gente conseguiu realmente gerar esse interesse internacional, que foi uma surpresa boa.
Quais foram os desafios de adaptar – em termos de roteiro – esses personagens para um público internacional que nunca ouviu falar deles?
A gente tinha uma linha muito tênue do quanto explicar, do quão didática a série tem que ser […] Para mim, no final, ficou um “vamos passar a emoção que a gente está querendo passar com cada personagem, e vamos tentar explicar menos”. Tentar fazer com que as pessoas, com a curiosidade, busquem saber mais. […] Eu quis passar as coisas básicas: o Curupira protege a floresta. Ele quer salvar a floresta. A Cuca é uma bruxa misteriosa. Ela é má ou é boa? A gente não sabe. Eu tentei passar essas questões com as quais, no Brasil, a pessoa que conhece as entidades, esse folclore, já tem uma conexão. Você vê o Saci e você sabe o que é. Muitos brasileiros sabem, mas o gringo talvez não saiba o que seja. Mas ele vai saber que é um garoto brincalhão, que ele se transforma em vento, ele acaba sabendo um pouco da história sem eu ter que explicar: “Ah, você pega o gorro dele e ele tem que fazer a sua vontade”. […] Foi uma aposta que a gente fez, e eu acho que deu certo, que as pessoas ficaram curiosas. Se ficasse muito explicativo, poderia ficar muito maçante.
Até porque os episódios são curtos, né?
São curtos, e o pessoal se interessa em quem está ajudando quem, quem é bom, quem é mau. O medo de perder os personagens é uma coisa de que a gente não teve pena, de eliminar um personagem de que você goste, para dar mais força para a história. Porque, na verdade, a premissa é a seguinte: se eles são verdade, se eles estão entre nós, então como seria isso? Eles seriam vulneráveis, teriam conflitos, seriam humanos. Então acho que isso faz as pessoas se conectarem com eles.
Os personagens do folclore aparecem em um ambiente urbano, bastante marginalizado. O que isso simboliza?
Quando eu comecei a ler folclore, o que me interessava é o seguinte: são histórias orais, que passam de geração em geração. E o folclore pode morrer. Como o folclore morre? Quando ele é esquecido, quando as histórias não são mais contadas. […] Eu sentia essa dor de saber que os meus filhos não estavam conhecendo essas histórias que eu ouvia quando era criança, ou que as pessoas estão perdendo o interesse por essas histórias. Então, eu quis justamente representar isso neles. Por isso que é Cidade Invisível. Ficaram personagens invisíveis, que se perderam e, com isso, caíram nas suas próprias mazelas, nesse esquecimento, de que não eram mais importantes […] Eles fazem parte do que é o Brasil, das nossas histórias, do nosso povo.
A questão ambiental também é central no enredo. Isso tem relação com o momento que o Brasil e o mundo vivem hoje no que diz respeito ao meio ambiente?
É uma questão que está sempre aí. […] Eu gosto dessa abordagem ambiental, acho que é muito importante e, ao mesmo tempo, muito central nessas entidades do folclore. […] As origens dessas lendas vêm muito dessa questão ambiental, muitas delas. Essa pegada ambiental é muito contemporânea e há sempre esse dilema de como coexistir, né? É uma questão de coexistência: como o homem coexiste com a floresta, como nós coexistimos com as nossas lendas, nossos medos, nossos anseios.
Houve algumas críticas por parte de setores indígenas com relação à representatividade no elenco, que eles poderiam ter sido consultados sobre as lendas e mais representados. Como você vê isso? O público pode esperar alguma mudança nesse sentido na segunda temporada?
A questão da representatividade, eu concordo. Eu acho que a gente poderia trazer um pouco mais de representatividade indígena na história. Mas, na verdade, o intuito inicial era fazer uma série mais urbana. […] Como o folclore é uma coisa tão variada, quanto mais você lê e vê sobre o folclore, apesar de algumas origens virem dessa parte indígena, ele tem muito da parte europeia, da parte africana. Então o Brasil é isso, uma mistura das coisas. Eu quis criar uma história meio misturada: não identificar tão necessariamente um lado ou o outro, mas criar uma história brasileira no sentido de que cada estado, na verdade, tem uma mitologia. O Saci em São Paulo é diferente do Saci do Amazonas. […] O próprio Curupira tem várias interpretações […] E como eu quis fazer uma coisa centrada em um centro urbano, a gente acabou tendo uma representatividade mais brasileira do que especificamente de um ou de outro. O folclore na verdade é isso, uma coisa que se permeia na população como um todo e inclui, claro, todas as etnias.
Alguns personagens importantes morreram na primeira temporada. O público pode esperar novos personagens do folclore na segunda temporada?
Sim. Estamos pensando nisso. A gente pensa muito nos acertos e erros que a gente fez na primeira temporada, levamos isso muito em consideração. […] A gente começou a pensar em temáticas que foram questionadas pelo próprio público e pensa em criar um ambiente não só mais diverso, mas em continuar a trazer mais ainda os elementos do folclore que talvez não fossem explorados. Eu acho que essa é a diversão de você passar para uma segunda temporada, essa coisa de descobrir quais serão as novas entidades, sem perder o que já tem na anterior. É meio como Game of Thrones, você acaba se apaixonado por um personagem, depois aquele personagem morre: “Caramba! O que eu vou fazer?” Aí você tem que ter outras soluções.
A série foi confirmada para uma segunda temporada. Quais são os planos em termos de gravações, histórias?
Está tudo muito confuso, agora com a situação do Brasil, do mundo, a gente não sabe exatamente. A gente tem vontade de lançar o mais em breve possível, para manter essa curiosidade. A gente também está ansioso para fazer de novo, porque adoramos o processo. Mas vai tudo depender de como estão as coisas… Primeiro a gente tem que começar a escrever os roteiros, como já estamos começando a escrever.
Falando sobre esse momento que estamos vivendo no mundo, como foi finalizar a série e divulgá-la em meio à pandemia de covid-19?
Demos muita sorte, porque as filmagens foram feitas antes da pandemia. A gente começou a programação em julho e entre agosto, setembro e outubro [de 2019], a gente filmou tudo. Depois, começou a pós-produção, porque a série tem muitos efeitos especiais, tem muita coisa para fazer. Os cortes, a edição, a montagem, aquela coisa toda. Aí começou a pandemia […] por sorte, essas partes de efeitos especiais é muito computador: o artista e o computador. A gente conseguiu com que eles fizessem nas casas deles. Eles montaram seus próprios escritórios e, estúdios, e a gente fazia assim, no Zoom, olhando as coisas, mandando online. Acabou dando super certo. Atrasou um pouco, pela logística, mas no geral deu certo. A gente conseguiu fazer tudo o que queria.
Você tem uma carreira sólida com animações. Por que o seu salto das animações para o live action justamente com essa série?
Eu já tinha um interesse muito grande de explorar novas áreas. Mesmo fazendo animação por quase 30 anos, sempre tive curiosidade de cinema. […] Eu já estava nessa busca, desse espaço para contar histórias com live action, com atores. Então foi uma grande oportunidade. Quando apareceu isso, achei que seria uma oportunidade legal. E fazer o meu primeiro projeto em live action no Brasil era um sonho que eu já tinha há um bom tempo. Eu achava que iria ser um lugar seguro para eu fazer, no sentido emocional. Eu iria estar com pessoas que conheço, um grupo de pessoas com quem tenho afinidade. E realmente foi uma prova de batismo, vamos dizer assim, muito legal e que me trouxe muita vontade de continuar a fazer.
Então podemos esperar mais projetos seus de live action no futuro?
Sim, com certeza. Animação vai estar sempre no meu coração, né? Enquanto eu puder fazer animação, vou continuar fazendo. Mas agora tem um espacinho para o live action.