Uma em cada cinco espécies corre risco de desaparecer, segundo levantamento publicado na revista Nature. Brasil prepara nova lista de fauna ameaçada, que já nascerá desatualizada
Publicado: 20/05/2022
Autor: Herton Escobar
Arte: Guilherme Castro
Escondido na beira da praia, em meio à vegetação rasteira, o pequeno lagarto caiçara observa a algazarra dos primatas falantes, espalhando suas toalhas e guarda-sóis pela areia do litoral norte de São Paulo. Vira e mexe, uma latinha de cerveja ou palito de sorvete é lançado em sua direção, mas são poucos os que notam a sua presença por ali. Mais conhecido como calango-liso-da-restinga, o Brasiliscincus caissara é uma das 1.829 espécies de répteis reconhecidas como ameaçadas de extinção no mundo, segundo um levantamento global publicado em 27 de abril na revista Nature. Até onde se sabe, ele só existe nessas regiões de baixada do litoral norte paulista, encurralado entre o mar e as montanhas, com estradas, casas, hotéis e indústrias atravessando seu habitat por todos os lados.
Olhando para o leste, em direção ao mar, pode-se contemplar no horizonte os lares de outras duas espécies ameaçadas de extinção da biodiversidade reptiliana brasileira: as ilhas de Alcatrazes e da Queimada Grande, onde vivem, respectiva e exclusivamente, a Bothrops alcatraz (ou jararaca-de-alcatrazes) e a Bothrops insularis (jararaca-ilhoa). Nesse caso, a ameaça não chega por meio de estradas ou empreendimentos imobiliários, mas de raios, traficantes de animais silvestres e qualquer outra perturbação (de origem natural ou humana) que venha a alterar as características ambientais das ilhas. Afinal, quando se vive cercado de água salgada, não há muito para onde rastejar em caso de perigo. Um único incêndio pode reduzir a população dessas espécies a níveis críticos, ou até mesmo exterminá-las.
Olhando para o oeste, continente adentro, avista-se a Serra do Mar, a Serra de Paranapiacaba, o Vale do Ribeira e outras belas paisagens ainda recobertas de Mata Atlântica, historicamente o bioma mais devastado do Brasil e, justamente por isso, lar do maior número de espécies ameaçadas do País atualmente. Entre elas, a Corallus cropanii, uma jiboia de papo amarelo e hábitos arborícolas, que muito raramente é vista serpenteando pelas matas do Vale do Ribeira e sobre a qual ainda se sabe muito pouco.
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A maioria dos répteis ameaçados de extinção no Brasil é, assim, pouco conhecida do público em geral e — em alguns casos — até mesmo da ciência. Vivem um drama silencioso, em comparação com os holofotes que costumam ser lançados sobre o destino incerto de outros bichos considerados mais “carismáticos”. Do ponto de vista científico, porém, os números estão postos: o trabalho publicado na revista Nature avaliou a situação de 10.196 espécies de répteis (cobras, lagartos, crocodilos e tartarugas, entre outros) ao redor do mundo e concluiu que 21% delas (uma em cada cinco) correm risco de extinção. Entre elas, 85 espécies que ocorrem no Brasil — a maioria endêmica; ou seja, que só existem aqui e nenhum outro lugar do mundo.
O estudo é assinado por mais de 50 pesquisadores, de 24 países, incluindo dois pesquisadores do Instituto de Biociências (IB) da USP — Marcio Martins e Cristiano Nogueira — e um da Universidade de Brasília — Guarino Colli.
Foi a primeira vez que cientistas fizeram uma compilação global de répteis ameaçados de extinção, seguindo os critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês), que é a organização de referência para avaliação de espécies ameaçadas no mundo. Levantamentos semelhantes já haviam sido feitos para anfíbios, mamíferos e aves, mas faltavam os répteis para completar a lista dos quatro grandes grupos de vertebrados terrestres. São as informações compiladas nessas análises que alimentam a famosa Lista Vermelha da IUCN, o maior e mais respeitado banco de dados sobre o status de conservação da biodiversidade planetária. Segundo a versão mais atualizada da lista, mais de 40 mil espécies de plantas e animais no mundo estão ameaçadas de extinção, o que corresponde a 28% das mais de 142 mil espécies analisadas cientificamente até agora.
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Os dados brasileiros que compõem a lista global não são inéditos — são os mesmos usados para compor a lista nacional de fauna ameaçada de extinção, publicada em 2014, sob a guarida do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Na ocasião, cientistas avaliaram a situação de mais de 12 mil espécies animais, das quais 1.173 (9,6%) foram classificadas como ameaçadas de extinção, segundo os critérios da IUCN, que incluem três categorias de ameaça: “Criticamente em perigo”, “Em perigo”, e “Vulnerável”. (Essa lista nacional está sendo atualizada e uma nova versão deverá ser publicada em breve. Mais informações abaixo.)
O Brasil foi um dos pioneiros nesse tipo de iniciativa, segundo Martins. “São poucos os países que têm suas próprias listas”, destaca ele, apesar de isso ser uma prerrogativa básica para a elaboração de políticas eficazes de conservação da biodiversidade, prevista na Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas.
“O que o Brasil fez foi único”, completa Martins, que coordenou a elaboração da lista brasileira de répteis, em parceria com Nogueira. À época da publicação, em 2014, as 12 mil espécies de fauna avaliadas pelos cientistas brasileiros representavam um terço das espécies avaliadas até então no mundo pela IUCN. “A gente trabalha não só com quem coordena as avaliações, mas também com quem implementa as ações de conservação”, destaca Martins, referindo-se ao ICMBio.
No caso dos répteis, especificamente, foram avaliadas 732 espécies brasileiras, das quais 85 foram consideradas ameaçadas (incluindo cinco serpentes que, até então, não haviam sido formalmente descritas pela ciência). Essas 85 representam apenas 4,6% das espécies ameaçadas de répteis no mundo, segundo a compilação divulgada na Nature, mas isso não significa que não haja motivos para preocupação por aqui.
Uma das surpresas do trabalho foi concluir que a maior parte dos répteis ameaçados de extinção no mundo está em florestas tropicais, e não em ambientes de clima árido (como desertos e savanas), como se esperava. Os fatores por trás dessa ameaça são velhos conhecidos: desmatamento, agropecuária, urbanização e outras atividades humanas (legais ou ilegais) com capacidade para destruir, alterar, isolar ou fragmentar os ecossistemas dos quais essas espécies dependem para sobreviver.
A boa notícia é que, por compartilharem esses habitats florestais com espécies ameaçadas de anfíbios, aves e mamíferos, os répteis acabaram se beneficiando, por tabela, das medidas de conservação já estabelecidas para esses outros grupos ao longo do tempo — ainda que não tenham sido uma motivação inicial para elas. “Ou seja, as ações empregadas para proteger a biodiversidade das florestas já está protegendo uma grande parte dos répteis que vivem nelas, também”, explica Martins.
Estudos como esse são fundamentais para direcionar de forma inteligente “os escassos recursos que a gente tem de conservação”, diz o colega Nogueira, em entrevista ao podcast Ciência USP. “Se você não sabe onde estão os seus organismos, onde estão as suas prioridades, fica difícil trabalhar, e o risco também existe de você colocar esforços em áreas que são redundantes. Então é fundamental que a gente conheça a diversidade dessas espécies, e o nível de ameaça dessas espécies.”
Nova lista brasileira a caminho
Uma nova lista de espécies ameaçadas do Brasil deve ser publicada em breve. Do ponto de vista científico, a lista está pronta e uma primeira versão dela já foi aprovada pela Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) em março; mas ela só se tornará “oficial”, de fato, quando for publicada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) no Diário Oficial da União — e não há prazo para que isso ocorra. (A lista atual, por exemplo, tem como base legal as Portarias 444 e 445 do MMA, que precisarão ser revogadas quando a nova lista for publicada.)
Cientificamente falando, a tendência é que a nova lista já nasça desatualizada. Segundo o Jornal da USP apurou, a relação publicada em março pela Conabio é uma versão preliminar da lista, produzida em meados de 2021, que não inclui as análises e validações mais recentes feitas para vários grupos de animais — entre eles, os das serpentes e de outros répteis.
Por exemplo: na lista da Conabio — que deverá ser a adotada legalmente pelo MMA, apesar de desatualizada — a jararaca-de-alcatrazes ainda aparece como “Criticamente em perigo” (classificação de 2014), apesar de as análises mais recentes, já validadas pelo ICMBio, recomendarem a reclassificação da espécie como “Vulnerável”, em função da suspensão dos exercícios de tiro da Marinha na Ilha de Alcatrazes, que eram um dos principais fatores de ameaça ao seu habitat. Comparativamente, a perereca-de-alcatrazes (Scinax alcatraz), outra espécie endêmica da ilha, que também foi considerada como “Criticamente em perigo” em 2014, já aparece na lista da Conabio reclassificada como “Vulnerável”, pelo fato de a validação científica dos anfíbios ter sido concluída antes da dos répteis.
Arquipélago dos Alcatrazes e a jararaca-de-alcatrazes – Foto: Kelen Leite e Fausto Pires de Campos
Nada impede que pesquisadores e o próprio ICMBio utilizem os dados mais atualizados para nortear seus trabalhos de pesquisa e conservação. Do ponto de vista legal e normativo, porém, o que vale para a implementação de políticas públicas é a lista oficial do MMA — por exemplo, para regulamentar atividades de pesca e o licenciamento ambiental de empreendimentos que venham a impactar o habitat dessas espécies.
A jararaca-ilhoa, por sua vez, permanece criticamente ameaçada de extinção, na avaliação dos cientistas. A população da espécie diminuiu pela metade nos últimos 30 anos, de aproximadamente 5 mil serpentes na década de 1990 para cerca de 2,5 mil, atualmente. “Para uma população tão pequena e restrita a uma única ilha, é algo muito grave”, alerta Martins.
Localizada a 32 quilômetros de Peruíbe, no litoral sul de São Paulo, a Ilha da Queimada Grande tem 0,37 quilômetro quadrado de área seca, mas o habitat da Bothrops insularis é ainda menor do que isso: 0,25 km2, que é a área da ilha coberta de vegetação. “O fato de ser uma área muito pequena já representa, por si só, uma situação de ameaça”, diz o herpetólogo Otavio Marques, do Instituto Butantan, que há décadas estuda as cobras insulares do litoral paulista. No caso da jararaca-ilhoa, uma serpente de cor dourada e com fama de “muito venenosa”, a principal ameaça, que cientistas acreditam estar por trás da queda populacional, é a captura ilegal para o tráfico de animais silvestres. A ilha é classificada como Área de Relevante Interessante Ecológico (ARIE) e o desembarque lá é proibido.
O Arquipélago dos Alcatrazes, mais ao norte, é classificado como Refúgio de Vida Silvestre (RVS) desde 2016, e o acesso às ilhas também é controlado pelo ICMBio. A Marinha do Brasil costumava usar a ilha principal do arquipélago como alvo para treinamentos de guerra, incluindo tiros de canhão, que chegaram a causar um grande incêndio em 2004, mas concordou em parar com os exercícios de tiro em 2013. Apesar da suspensão dessa ameaça, cientistas consideram que as espécies endêmicas da ilha continuam vulneráveis à extinção por conta do seu habitat restrito. Há uma alta incidência de raios sobre o arquipélago, que também podem causar incêndios. “Acho que esses bichos vão estar sempre ameaçados”, pondera Marques. “Acho improvável que um dia eles saiam da lista.”
Fora do âmbito científico, a publicação da lista oficial costuma esbarrar em questões políticas e econômicas associadas a espécies que são alvo de alguma atividade comercial. Na lista de 2014, por exemplo, houve muita resistência à publicação da lista de peixes e invertebrados marinhos, já que várias das espécies classificadas como ameaçadas de extinção eram (e continuam sendo) alvos de pesca. Polêmica que tende a se repetir agora: a lista publicada pela Conabio em 2 de março continha seis espécies de tubarões marcadas em negrito que, dois dias depois, foram excluídas do documento, segundo notícia do site Política por Inteiro, que monitora políticas públicas da área ambiental.
Fonte: Jornal USP