Já visitada por quase 80 mil pessoas, exposição da artista e professora da USP fica em cartaz até este domingo, em São Paulo
Durante os julgamentos da Inquisição, mulheres foram queimadas vivas por manipular plantas com fins medicinais e ritualísticos. Essa prática da Igreja Católica contribuiu para demonizar a relação entre mulheres e plantas — associação canonizada na Bíblia com Eva e o “fruto proibido”. Para lembrar essa história, a artista visual e professora da USP Giselle Beiguelman criou imagens e vídeos através da inteligência artificial (IA), que agora são apresentados ao lado de diferentes plantas na exposição Venenosas, Nocivas e Suspeitas. Desde novembro do ano passado, quase 80 mil pessoas já visitaram a mostra, que fica em cartaz gratuitamente até este domingo, dia 20, na Galeria de Fotos do Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo.

Venenosas, Nocivas e Suspeitas surgiu como uma pesquisa sobre as plantas proibidas e estigmatizadas ao longo da história. Beiguelman notou como a trajetória dessas plantas é indissociável do destino das mulheres que dominavam seus usos. “Foi ficando cada vez mais evidente o apagamento ao qual essas cientistas, artistas, bruxas e feiticeiras foram submetidas. Então, quanto saber se perdeu nas fogueiras da Inquisição”, diz Beiguelman, que é docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP. Entre as espécies que foram proibidas, estigmatizadas e banidas, muitas estavam ligadas à saúde feminina, sendo utilizadas em cuidados pós-parto, cólicas menstruais e abortos.
Entre as mulheres naturalistas homenageadas na exposição estão três figuras marcantes da história brasileira: Maria do Carmo Vaughan Bandeira (1902-1992), primeira botânica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Constança Eufrosina Borba Paca (1844-1920), ilustradora que participou das expedições científicas realizadas pelo marido, o botânico João Barbosa Rodrigues (1842-1909), e Luzia Pinta, botânica ex-escravizada que, no século 18, foi denunciada como feiticeira e enviada de Minas Gerais para a Inquisição em Portugal.
A inteligência artificial como recurso artístico
A série de quadros foi desenvolvida ao longo de dois anos com o uso de inteligência artificial generativa — isto é, ferramentas que criam imagens inéditas a partir de bancos de dados virtuais e comandos fornecidos pelo usuário. O processo envolveu tanto conversões de texto em imagem (text-to-image) quanto transformações de imagem em novas imagens (image-to-image), utilizando plataformas como Runway, DALL·E e Kling.
A partir de retratos das mulheres na juventude, ela tentou imaginar como seriam essas mulheres já no fim de suas vidas. Esse comando foge da prática comum da inteligência artificial, pois as imagens tendem a reproduzir o padrão de beleza vigente na sociedade ocidental. Uma das tarefas, por exemplo, foi ensinar a IA a retratar a pele da mulher idosa.
“Me deu muito problema para conseguir fazer com que a inteligência artificial entendesse o que é uma mulher mais velha. A priori, os dados hegemônicos não só são de mulheres brancas, mas de mulheres jovens, e cada vez mais contaminadas por filtros”, afirma Beiguelman. “Quando você está usando a inteligência artificial, você está treinando a máquina. E, conforme você desenvolve um projeto, você alimenta o sistema com uma série de informações.”
Após anos trabalhando com a IA nesse e em outros projetos, a artista afirma não ver a tecnologia como ferramenta de sua arte, mas como espaço crítico. “Algumas formas artísticas têm a tecnologia como seu campo crítico e também como seu meio de problematização estética. Esse é o lugar em que as reflexões acontecem em meu trabalho. E essa autoria não é 100% humana e nem é 100% uma química. Ela é um processo de negociação.”

Plantas carnívoras, manjericão e pimenta-malagueta
Na exposição, é possível conhecer plantas como glória-da-manhã e pimenta-malagueta e plantas carnívoras. Além dessas, plantadas em vasos no salão, também pode-se observar réplicas de orquídeas e cogumelos em plástico.
Entre as espécies plantadas, destaca-se a guiné, definida por Beiguelman como uma planta com uso medicinal e político. “Essa planta tem uma propriedade calmante que pode levar à letargia. Em uma quantidade excessiva, ela leva à morte. Então, era essa planta que os escravizados ministravam para os seus senhores quando organizavam as fugas.” Por isso, recebeu o apelido de “amansa-senhor”, sendo símbolo da resistência de pessoas escravizadas contra a dominação portuguesa.





As folhas de coca, as frutas do guaraná e flores de orquídeas chamam atenção na exposição – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Pés de manjericão também perfumam o salão do Centro Cultural Fiesp. Além do uso culinário, essa planta tem uso medicinal (trata problemas digestivos e respiratórios) e ritualísticos (nas religiões de matriz africana como o candomblé e a umbanda, mães de santo utilizam a planta em banhos e defumações para a purificação espiritual). Na Europa medieval, o manjericão também foi associado à bruxaria, o que levou à perseguição de mulheres que o usavam.
Outra atração é a planta do tabaco. Com usos ritualísticos e recreativos, ela está enraizada em práticas indígenas que integram espiritualidade, medicina e cultura. Entre os guarani, por exemplo, as mulheres são guardiãs desse conhecimento ancestral e utilizam o petygua (cachimbo) em rituais de cura, relacionando o uso do tabaco ao nhandereko — o “jeito de ser” guarani.
Assista neste link ao vídeo Arte e Inteligência Artificial, produzido pela Revista Fapesp Vídeos.
A exposição Venenosas, Nocivas e Suspeitas, de Giselle Beiguelman, está em cartaz até este domingo, dia 20, a partir de terça-feira, das 10h às 20h, na Galeria de Fotos do Centro Cultural Fiesp (Avenida Paulista, 1.313, em São Paulo, próximo à estação Trianon-Masp do metrô). Entrada grátis.
*Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro
Fonte: Jornal da USP / Cada retrato foi desenvolvido em cerca de três meses – Foto: Marcos Santos/USP Imagens