Segundo pesquisadores, auditorias realizadas pela Controladoria Geral da União em municípios brasileiros levaram a uma melhora no índice.
- Data 22.10.2020
- Autoria Edison Veiga
Auditorias anticorrupção realizadas em municípios brasileiros entre 2003 e 2015 reduziram a mortalidade infantil. Esta é a principal conclusão de um estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, que relacionou o programa de fiscalização randômico da Controladoria Geral da União (CGU) a uma melhora de índices sociais no país.
Os dados ainda são preliminares e foram disponibilizados em uma plataforma de pré-prints científicos – ou seja, são passíveis de revisão entre os pares –, mas indicam que as auditorias “foram muito importantes para reduzir corrupção e melhorar a alocação de recursos e o uso de recursos públicos nos municípios brasileiros”, afirma à DW Brasil um dos autores do estudo, Antonio Pedro Ramos.
“A novidade do nosso trabalho foi mostrar que essas auditorias também tiveram efeito muito positivo na saúde infanto-maternal, principalmente entre crianças não brancas. De acordo com nossas estimativas, os efeitos são duas vezes maiores para crianças não brancas. As auditorias também aumentaram o número de visitas pré-natais e reduziram o número de nascimentos prematuros”, afirma Ramos, que é psicólogo, estatístico e cientista político, pesquisador na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e professor visitante na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.
Quando os pesquisadores aplicaram um modelo matemático para checar os impactos atribuídos às auditorias realizadas pela CGU no período analisado, constataram que, após as investigações, tais dados tendiam a melhorar nos municípios, o que pode ser entendido como consequência das ações anticorrupção.
O modelo concluiu que, excluindo outras variáveis, os índices tiveram uma redução adicional de 6,7% para a mortalidade neonatal (mortes no primeiro mês de nascimento) em relação aos municípios não auditados; 7,3% para a mortalidade infantil (aqueles que não sobrevivem ao primeiro ano de vida); e 7,3% para a mortalidade de crianças de 1 a 5 anos.
Separando os dados entre brancos e não brancos, a melhoria foi cerca de duas vezes superior no caso dos não brancos: 8,1% contra 3,3% para mortalidade neonatal; 8,2% contra 3,6% para mortalidade infantil; e 8,2% contra 4% no caso de crianças de até cinco anos.
Quanto ao atendimento pré-natal a gestantes, houve uma redução adicional de 12,1% nos casos de grávidas que ficaram sem nenhuma consulta nas localidades que passaram por auditorias em relação às não auditadas. A modelagem matemática também indica que as auditorias contribuíram para uma redução extra de 7,4% os nascimentos prematuros – ou seja, com menos de 37 semanas de gestação.
Os pesquisadores falam em redução adicional, pois o Brasil como um todo apresentou melhora em tais índices desde a década passada. De 2003 a 2015, a mortalidade neonatal caiu de 13 para 10 por cada mil nascidos vivos. Já a mortalidade infantil caiu de 20 para 14 por mil. A mortalidade de crianças de 1 a 5 anos diminuiu de 23 para 17 por mil.
Grupo de controle
O estudo considerou o recorte temporal de 2003 a 2015 porque foi nesse período que tais auditorias da CGU ocorreram nesse formato. Os municípios eram escolhidos por sorteio público, no mesmo sistema das loterias da Caixa Econômica Federal. No total, foram aferidas 1.949 localidades. A partir de então, o programa foi reorganizado, e a seleção das cidades passou a obedecer critérios demográficos e estatísticos.
Ramos acredita que o formato anterior tinha uma abordagem mais correta, do ponto de vista científico. “É importante ressaltar que o fato de haver um sorteio é crucial para avaliarmos o efeito das auditorias. Sem o sorteio, não seria possível fazermos uma análise causal crível. O sorteio automaticamente cria dois grupos: o de tratamento, no caso os municípios auditados, e o grupo de controle, ou seja, os municípios que não foram auditados”, explica.
“Esses grupos são idênticos em todos os aspectos, exceto o tratamento [as auditorias]. É uma situação muito parecida com ensaios clínicos na medicina, que são feitos para avaliar a eficácia de novos remédios.”
“Pandemia oculta”
O estudo usa a expressão “pandemia oculta” para falar sobre como a corrupção interfere em questões de saúde. “A corrupção é uma preocupação premente no Brasil contemporâneo”, enfatiza o texto preliminar, citando como exemplo a operação Lava Jato.
Em seguida, os pesquisadores destacam casos em que desvios de recursos públicos afetaram diretamente o setor da saúde, como no escândalo conhecido como “sanguessugas” – que veio a público em 2006, sobre uma quadrilha que desviava dinheiro destinado à compra de ambulâncias – e investigações em curso de corrupção durante a pandemia de covid-19.
“Não podemos inferir que o único mecanismo [descoberto pelas auditorias] seja a retirada dos recursos da saúde via corrupção, apesar de este ser um importante mecanismo”, diz Ramos. “Há outros possíveis mecanismos: má alocação de recursos por parte dos gestores, ainda que sem a má-fé; ou uma melhora [decorrente das auditorias] na ‘qualidade’ dos políticos que então passariam a adotar políticas públicas mais voltadas para a saúde infanto-maternal.”
Para o pesquisador, um ponto importante é que tais auditorias estimulam a transparência e a responsabilidade de governança das contas públicas por meio dos políticos locais. “No caso da saúde, os resultados corroboram e explicam algo que já suspeitávamos: só enviar recursos para regiões pobres não é efetivo e pode não promover melhorias na saúde.”
Procurado pela DW Brasil para comentar a pesquisa, o jurista Carlos Ary Sundfeld, professor da FGV-Direito e especialista em direito público, explica que a CGU é consequência de sucessivas estruturações realizadas desde os anos 1930 pelo Estado brasileiro com o objetivo de racionalizar a administração, em um esforço em deixar para trás “aquela administração patrimonialista e improvisada”. “Nos municípios e nos estados mais desorganizados, a penetração de problemas de corrupção tendem a ser maiores”, ressalta
“Eles [os auditores] não são xerifes que vão descobrir irregularidades. [As auditorias] são, no fundo, um esforço geral do governo federal de aumentar a qualidade das políticas públicas”, contextualiza o jurista. “Provavelmente temos um conjunto de causas que produzem esse impacto positivo.”
Fonte: DW