O escândalo contábil de R$ 20 bilhões no balanço da Americanas, denunciado pelo seu ex-presidente, Sergio Rial, no último dia 11, deixou várias perguntas em aberto. Sabe-se que a operação que deu origem a este montante é comum no varejo, chamada de “adiantamento a fornecedores”. Mas ainda é desconhecida a maneira como essa operação entrou no balanço financeiro de forma diferente da que deveria (ou se ela deixou de entrar).
A Folha ouviu especialistas e consultores em varejo para entender como funciona o adiantamento a fornecedores, por que ele é fundamental para o varejo e o que pode ter acontecido na operação envolvendo a Americanas. A reportagem também entrou em contato com a varejista para esclarecer estes pontos, mas a empresa não quis se pronunciar.
“O varejo brasileiro é muito dependente de crédito, para tudo. Até para produtos semiduráveis, como vestuário: não se vende roupa a crédito no mundo, em seis vezes, como fazemos aqui”, diz o consultor Alberto Serrentino, sócio da Varese Retail. A necessidade de “financiar o cliente” torna a demanda de capital de giro no varejo muito pesada, afirma.
“Mas não dá para pedir para a indústria fornecedora financiar a venda dela na mesma proporção que o varejista financia o cliente, embora o varejo exerça, sim, muita pressão por prazos mais longos. Mas, principalmente, quando se trata de pequenos fornecedores, eles não têm fôlego para isso”, diz Serrentino.
Ocorre, então, a triangulação: um agente financeiro antecipa o pagamento ao fornecedor, cobrando um juro por isso. “O varejo compra um produto por R$ 10, dentro de um prazo negociado com o fornecedor. Mas o fornecedor quer antecipar o pagamento e negocia com um banco: acaba recebendo R$ 9 pela mercadoria. O banco fica com a diferença”, diz ele.
Na outra ponta, o banco alonga o prazo para receber do varejo. “Se o varejista ficou de pagar os R$ 10 ao fornecedor em 60 ou 90 dias, ele pede ao banco 120 ou 150 dias, o que lhe dá folga no capital de giro, é um fôlego financeiro”, afirma Serrentino. “Para isso, claro, o banco vai cobrar R$ 11, por exemplo”.
A diferença entre os R$ 9 que o banco pagou para o fornecedor e os R$ 11 que ele recebeu do varejo é o seu spread financeiro.
VAREJISTA NEGOCIA ATÉ SEIS MESES PARA PAGAR MERCADORIAS
“Mas a Americanas sempre foi muito agressiva na negociação com os fornecedores –talvez agressiva até demais, fora de qualquer padrão do mercado”, diz André Pimentel, sócio da consultoria Performa Partners, que trabalhou na reestruturação da Americanas no fim dos anos 1990, quando estava na Galeazzi & Associados e, antes disso, atuou na PwC, atual auditoria da Americanas.
Segundo ele, os prazos de pagamento negociados pela Americanas com fornecedores sempre foram muito longos, mais do que a média. “Enquanto o varejo trabalha com um pagamento de 30, 60 ou no máximo 90 dias, a Americanas adota até 180 dias para pagamento aos fornecedores. Mas a maior parte deles são pequenas e médias empresas, que não têm como lidar, no seu fluxo de caixa, com um prazo tão longo de recebimento”, diz Pimentel.
Neste momento, entra a capacidade de negociação da varejista, que conta com crédito no mercado financeiro: elas contratam os bancos para que paguem adiantado aos fornecedores, que arcam com um desconto financeiro sobre o valor a receber. “Eventualmente, até um desconto muito grande”, diz Pimentel. A Americanas assume a responsabilidade de pagar o banco dentro do prazo combinado com o fornecedor.
Para explicar o fato de que R$ 20 bilhões não apareceram no balanço, André Pimentel tem uma teoria.
“Quando a varejista deve ao fornecedor, essa dívida fica na coluna de contas a pagar. À medida que o banco antecipa e quita o valor com o fornecedor, e a Americanas assume com o banco a responsabilidade de devolver o dinheiro a ele, isso passa a ser uma dívida financeira”, diz Pimentel. “Do ponto de vista contábil, seria uma dívida de curto prazo, por ser inferior a 12 meses, e iria para o passivo circulante.”
Mas quando a Americanas fazia esta operação, em vez de transferir o montante da coluna ‘contas a pagar’ para a de ‘dívida financeira’, a empresa deixava o valor na coluna ‘contas a pagar’, até a data de quitar o valor com o banco, afirma.
“Ela devia ao fornecedor, o banco quitava. Lá no vencimento original, quando ela deveria pagar o banco, ela compensava a saída de caixa com a baixa do contas a pagar”, diz.
Segundo ele, quem via a operação de fora, apenas acompanhando os grandes números, não percebia que a dívida com o fornecedor virou uma dívida com o banco, porque o valor foi pago.
“Mas se você começa a conciliar isso com a movimentação financeira da varejista, você percebe que a operação está errada. Por que em vez de ser feito um depósito na conta do fornecedor, era feito na conta do banco”, diz.
QUANTO MAIOR A DESPESA FINANCEIRA, MENOR O LUCRO
Mas há um indício de que algo não bate: os custos financeiros da operação, o juro que a varejista precisa pagar ao banco. “Uma vez que o banco adiantou o pagamento ao fornecedor, e a Americanas passou a dever ao banco, a empresa tinha uma despesa financeira. Ela tinha que pagar o valor da mercadoria mais o juro”, diz Pimentel.
“Esses juros são uma despesa financeira, que acaba reduzindo o resultado da companhia. Então, em vez de colocar esses juros como despesa financeira –o que poderia suscitar dúvidas sobre a origem da operação, levando à descoberta de um volume muito maior de pagamento de juros–, a Americanas contabilizava este juro em uma conta que não impactava o resultado”, afirma.
Ou seja, segundo a teoria de Pimentel, artificialmente, durante um longo período, o resultado da Americanas foi apresentado maior do que era na realidade. “Se pensarmos no volume de operações da Americanas que, ao longo dos últimos anos, envolveram muitos adiantamentos, e sobre eles a empresa pagou uma despesa financeira –que pode ter sido muito alta, a depender dos juros–, e o valor for corrigido até a data de hoje, é possível chegar aos R$ 20 bilhões”, diz.
Por isso, afirma Pimentel, a correção dos R$ 20 bilhões no balanço da varejista não deve vir na linha da dívida, mas na do resultado.
“A correção terá que ser feita quando tiverem que assumir prejuízo não contabilizado. Isso vai trazer um problema para o patrimônio líquido da companhia. Os acionistas terão que capitalizar a empresa, para que ela não fique insolvente”, diz ele.
RIAL JÁ SABIA PARA QUE FOI CHAMADO?
André Pimentel, que assistiu na manhã de quinta-feira (12) a apresentação de Sergio Rial a investidores da Americanas, afirma que o executivo deu algumas “pistas” do que deve acontecer com a empresa. “Ele mencionou a necessidade de uma reestruturação operacional, disse que a companhia tinha que melhorar a sua administração de estoques, que estavam muito altos, e que esse tipo de varejo está em um momento em que talvez consolidações sejam interessantes.”
Segundo ele, a contratação de Rial, um ‘banqueiro’ e não um ‘varejista’, anunciada em agosto do ano passado, já indicaria uma estratégia da Americanas para lidar com uma situação de crise, incluindo a comunicação com o mercado e a falta de credibilidade que a companhia deve enfrentar a partir de agora.
A Folha entrou em contato com Rial para esclarecer estas questões, mas o executivo não retornou até o fechamento deste texto.
Vale lembrar que Rial permanece no negócio como assessor dos principais acionistas, formado pelo trio de sócios do 3G Capital (os bilionários brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira).
Pimentel teve o primeiro contato com a Americanas em 1999, quando a varejista passou pela sua primeira reestruturação, sob o comando do consultor Claudio Galeazzi, chamado pelo 3G para comandar a companhia.
“Pelo que acompanho da Americanas e da sua operação de comércio eletrônico, confesso que nunca entendi como o negócio parava em pé do ponto de vista de rentabilidade”, afirma.
VAREJO PRECISA DISCUTIR SE MODELO É SUSTENTÁVEL
Os aportes feitos nos últimos anos pelos principais acionistas, da ordem de R$ 8 bilhões, segundo Pimentel, chamam a atenção. “A operação de e-commerce, de maneira geral, consome muito capital e é pouco rentável, principalmente quando se tem concorrentes de peso e é preciso crescer muito, para que o mercado faça uma boa análise da empresa”, diz.
“Isso sempre fez com que os resultados da Americanas fossem discutíveis. Mas como a companhia tem o 3G por trás, formado por empresários com uma reputação muito boa, com negócios de sucesso globais, as pessoas ficam até constrangidas em criticar a operação”, afirma.
A Folha já demonstrou, inclusive, que mais da metade da receita de três das maiores varejistas do país –Americanas, Magalu e Via– vêm do comércio eletrônico.
Recentemente, o mercado vem analisando de maneira mais criteriosa, no entanto, as grandes varejistas que trabalham com e-commerce, diz.
“No auge do mercado de capitais, houve uma valorização excessiva das varejistas, mas as ações começaram a cair com força. Porque ninguém enxerga operações rentáveis nessas empresas, capazes de se sustentar no longo prazo. Este é o grande questionamento que precisa ser feito, passados os impactos desse meteoro que foi o escândalo contábil na Americanas”, diz.
Na opinião do consultor Eugênio Foganholo, sócio da Mixxer Desenvolvimento Empresarial, o 3G Capital é conhecido por não fundar empresas. “Ele compra oportunidades”, diz, referindo-se a negócios com potencial de geração de valor maior do que apresentam no momento.
“O 3G chega com a tesoura para cortar custos, o que gera lucro no curto prazo. Porém, depois, a companhia fica estagnada, porque em geral se trata de empresas maduras, não são startups”, diz. Daí a necessidade de, muitas vezes, ganhar no mercado financeiro.
RAIO-X AMERICANAS S.A
(dados referentes ao 3º trimestre de 2022)
Fundação: 1929, no Rio de Janeiro
Receita líquida: R$ 5,4 bilhões
Ebitda: R$ 582,3 milhões
Prejuízo líquido: R$ 211,6 milhões
Lojas: 3.601
Funcionários: cerca de 40 mil
Principais concorrentes: Via (Casas Bahia e Ponto), Magazine Luiza
Fonte: empresa
Daniele Madureira/Folhapress