Entrega das águas de SP exige adesão da capital. Mas eleições levam a Câmara a adiar decisão e prefeito Ricardo Nunes, às voltas com apagões de energia, mantém-se calado. Vazio abre brecha para ação dos movimentos sociais
Por Igor Carvalho, no Brasil de Fato – Segunda, 12 de fevereiro de 2024
Começou, na última terça-feira (6), o ano legislativo para os vereadores de São Paulo. Faltou cadeira no oitavo andar da Câmara Municipal, na Sala Tiradentes, com capacidade para 70 pessoas. Dezenas de pessoas ficaram em pé para acompanhar a reunião do Colégio de Líderes, na qual o presidente da Casa, Milton Leite (União), determinaria a agenda dos parlamentares para as próximas semanas.
O que a plateia do Colégio de Líderes queria saber era a posição de Leite sobre a CPI das ONGs, que investigará o padre Julio Lancellotti e que monopolizou o debate durante mais de uma hora.
Após tratarem da investigação do clérigo, o presidente da Câmara informou rapidamente, quase desapercebido, que a Comissão Especial de Estudos Relativos ao Processo de Privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), instalada no final de outubro de 2023 na Casa, foi prorrogada por mais 60 dias e deve entregar seu relatório final até abril deste ano.
Foi o único momento em que a privatização da Sabesp foi tratada. Para a parte da Câmara Municipal favorável à venda, tratar do tema em um ano eleitoral é indigesto, pois significa explicar à sua base que concordou em entregar à iniciativa privada o fornecimento de água e a manutenção do saneamento básico na cidade.
O “lindão”
À frente do processo está Milton Leite, que já anunciou que não será candidato à reeleição em 2024, após sete mandatos como vereador. O presidente da Câmara pretende sair do holofote e trabalhar nos bastidores, como o principal articulador político do União Brasil em São Paulo. Para isso, quer recuperar o prestígio que acumulava no governo municipal e estadual.
Desde que chegou na Câmara Municipal, o assunto sobre a venda do controle acionário da Sabesp à iniciativa privada foi manipulado por Leite com fins políticos. O projeto é uma promessa de campanha do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), mas esbarra na cláusula antiprivatização, prevista no contrato da Sabesp com alguns municípios e que exige a aprovação de legislações específicas dos vereadores dessas cidades.
A Sabesp mantém contrato com 375 municípios, dos 645 do estado de São Paulo. A negociação com a maioria deles deve ser tranquila. Porém, a capital paulista terá um papel decisivo no futuro da privatização da empresa.
Isso porque a cidade de São Paulo é responsável por 45% do faturamento da Sabesp e, se não houver acordo com o município, a chance de uma empresa adquirir o controle acionário da estatal reduz drasticamente.
Em São Paulo, o humor de Milton Leite tem variado em relação ao tema. Em 2023, o parlamentar, que controla a maioria dos vereadores da Câmara, mostrava pouca disposição em colaborar com a pressa de Tarcísio de Freitas para privatizar a Sabesp.
Em setembro de 2023, durante evento da TV Cultura, Leite deu sinais de que colocaria barreiras para que a privatização ocorresse e lembrou da venda da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae), cujo leilão está previsto para o primeiro semestre deste ano.
“A gente está vendendo a Emae para uma empresa. E estamos vendendo a Sabesp, pelo menos pelo que consigo entender, para uma outra empresa. Veja o antagonismo que nós temos”, disse Leite, que complementou: “o setor empresarial vai ficar maluco com essa situação. Nós não estamos jogando água no chope deles, mas nós não vamos abrir mão dos direitos da cidade de São Paulo”.
A acidez com o governo paulista tinha motivação conhecida e alardeada nos bastidores da política paulista. Nas eleições para o governo de São Paulo, em 2022, Leite apoiou o ex-governador Rodrigo Garcia (PSDB), que não conseguiu sequer chegar ao segundo turno, disputado por Freitas e Fernando Haddad (PT).
Vencedor, Tarcísio de Freitas montou sua equipe e levou Gilberto Kassab (PSD) para chefiar seu governo. Leite, que era influente nas gestões de Garcia e do ex-governador João Doria (PSDB), perdeu espaço no Palácio dos Bandeirantes e deixou de controlar a pasta que há anos pertence ao seu grupo político, Logística e Transportes.
A onda de privatizações em São Paulo é uma aposta de Tarcísio de Freitas para agradar o eleitor órfão do PSDB, mas avesso à truculência do bolsonarismo, berço político do governador paulista. De olho na reeleição em 2026, o atual mandatário do estado tem irritado Jair Bolsonaro com a flexibilidade ideológica de seu gabinete, controlado por Kassab.
Contrariado com a perda de espaço, o presidente da Câmara elegeu o projeto da Sabesp para pressionar Freitas. Sem um movimento de Leite, o contrato de privatização da empresa de saneamento pode não ser levado ao plenário e há chances do governador ver naufragar sua ambição, principalmente se o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) ganhar a eleição e passar a governar a cidade de São Paulo. O parlamentar já se posicionou contrário à venda da Sabesp.
Após meses vendo a privatização ser questionada pelo presidente da Câmara dos Vereadores, o governador resolveu aproximar-se de Leite. No dia 17 de janeiro deste ano, Leite foi convidado por Freitas para um evento que marcava a entrega da primeira fase de implantação da Usina Fotovoltaica Flutuante Araucária, na Vila Emir, bairro da capital paulista. O vereador foi, mas quis impressionar e levou apoiadores que gritaram seu nome diversas vezes.
Freitas não perdeu a oportunidade de citar o mais novo aliado. “Que o Milton é querido, tudo bem, a gente já sabia. Agora, lindão? Mas é o seguinte: eu estava olhando melhor, Milton. Se é para ganhar o coração do Miltão, é lindão mesmo”, disse o governador. “Vai ficando simpático ao longo do tempo”, encerrou.
Ao Brasil de Fato, no dia 30 de janeiro deste ano, Milton Leite já dava sinais de aproximação com o Palácio dos Bandeirantes. O vereador afirmou que “as tratativas sobre a possível privatização da Sabesp ainda estão acontecendo na Câmara” e que “vários pontos estão sendo discutidos com o governo do Estado, que tem se mostrado sensível”.
Ainda na entrevista, Leite deixou um bode na sala do governador, os mananciais paulistanos. “Existem 46 núcleos na zona sul da cidade de São Paulo que demandam investimentos, são investimentos da ordem de mais de R$ 25 bilhões e a secretária [de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística] Natália Resende está sendo sensível em compreender que nestas regiões aflui esgoto para dentro do produto principal que é a água. Nós temos uma cidade para discutir dentro da zona sul e não tem sentido a Prefeitura de São Paulo investir lá para dar água para a Sabesp vender e ainda não ter a sua remuneração devida. Isso tem que ser mais discutido pela Câmara.”
Dois dias depois, no entanto, Leite fez seu primeiro compromisso público com Freitas sobre a apreciação do projeto pela Câmara Municipal, em entrevista à rádio CBN. “O governo do Estado tem sido sensível com a Câmara e com o Executivo na tratativa dos pontos que estão em discussão. [A conversa] Está indo muito bem. Há um diálogo muito profundo já. Nesse semestre é possível [votar a privatização na Casa], desde que se conclua as tratativas com o Executivo e com a Câmara.”
Eleições 2024
Em São Paulo, Leite está de olho na vaga de vice de Ricardo Nunes. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) decidiu apoiar o atual prefeito no pleito eleitoral e deve ter prioridade na indicação do nome que ocupará essa posição.
Milton Leite sabe que o nome de Bolsonaro terá prioridade, mas trabalha para garantir espaço na campanha e, em caso de vitória, secretarias para o União Brasil. Na manga, o presidente da Câmara Municipal manipula o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil), seu correligionário que sonha em ser candidato a prefeito.
Perder o apoio do União Brasil, que com sete vereadores tem a terceira maior bancada da Câmara Municipal, seria uma tragédia para Nunes. Principalmente se Leite decidir apoiar as candidaturas de Boulos ou da deputada federal Tabata Amaral (PSB), que vive impasse na escolha de seu vice, já que o apresentador José Luis Datenta, favorito ao cargo, ainda não respondeu se topará integrar a chapa.
O projeto e os impasses
Conturbado com o clima eleitoral que afeta a cidade desde 2023, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) evita polêmicas. Enquanto tenta tirar a vantagem de Boulos nas pesquisas eleitorais, é um túmulo sobre o assunto. Quando indagado sobre sua posição a respeito da privatização da Sabesp, evita o tema e foge das perguntas.
Em 16 de agosto de 2023, em segredo e com as portas do Palácio dos Bandeirantes fechadas, Nunes assinou a adesão de São Paulo à Unidade Regional de Serviço de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento Sanitário (Urae) 1.
Para a vereadora Luana Alves (PSOL), que integra a Comissão Especial de Estudos Relativos ao Processo de Privatização da Sabesp, o prefeito já escolheu seu lado. “O silêncio do Ricardo Nunes revela que existe um acordo político do Tarcísio que passa por São Paulo. Na prática, esse silêncio é pior do que parece, ele sabe, assim como toda a Câmara Municipal, o quanto a privatização da Sabesp é ruim para a cidade.”
Em 2021, o ex-governador João Doria criou quatro unidades da Urae para adequar o estado ao marco regulatório do saneamento. Com a medida, o governo paulista pretendia criar um conselho único, que reunisse os 375 municípios atendidos pela Sabesp, sem que a empresa necessitasse atender necessidades específicas de cada um.
Na prática, Nunes pode ter entregue a autonomia de São Paulo na relação com a Sabesp em troca do apoio de Freitas para sua reeleição em 2024. Desde então, o prefeito da capital paulista não falou mais sobre o tema.
Desde que as Uraes foram criadas, Nunes e seu antecessor, o ex-prefeito Bruno Covas (PSDB), não quiseram aderir ao conselho criado por Doria. O prazo de assinatura caducou e Freitas teve que publicar um novo decreto, alterando a data de vencimento para que o prefeito de São Paulo pudesse assinar o documento. A manobra do governador chamou a atenção do Tribunal de Contas do Município (TCM), que instalou um grupo de estudos sobre a privatização da Sabesp.
No conselho da Urae, onde as decisões sobre a relação da Sabesp com os municípios devem ser tomadas, o governo paulista terá 37% dos votos. Outros 6% serão distribuídos para representantes da sociedade civil. Os demais, 57%, serão divididos entre as 365 cidades signatárias. São Paulo será detentora de 19%, a maior fatia.
A Câmara e as condições
Quando o contrato for apresentado pelo conselho da Urae, caberá às câmaras municipais analisarem seu conteúdo e aprovarem ou não. Responsável por 45% do faturamento da Sabesp, São Paulo é peça-chave no processo e, por isso, sempre teve condições especiais.
No atual contrato com a Sabesp, está previsto que o município recebe da empresa 7,5% dos seus lucros, que são destinados ao Fundo Municipal de Saneamento Ambiental, administrado pela Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB). Em 2022, a arrecadação desse percentual representou uma entrada de R$ 640 milhões nos cofres da cidade.
Outros 13% do lucro da Sabesp são devolvidos para São Paulo para investimento em obras de infraestrutura. Portanto, no acordo atual, a capital paulista fica com 20,5% do lucro da empresa.
A preocupação da oposição na Câmara é que o município perca seus benefícios e a população arque com os prejuízos, com um eventual aumento na sua conta. “Não tem garantia de melhoria do serviço e nem de melhoria na tarifa, mas temos certeza do prejuízo financeiro, já que a Sabesp deixaria de repassar o valor do faturamento para a operação da cidade”, explica Luana Alves.
Para além dos repasses financeiros, Alves lembra que outros pontos precisam ser discutidos com a empresa que eventualmente conseguir o controle acionário da Sabesp.
“Existe uma dívida da Sabesp com São Paulo de cobranças feitas erroneamente. Tem pontos de atendimento. Nós temos uma tarifa vulnerável de R$ 7 e social de R$ 14, que precisariam ser mantidas”, finaliza a vereadora.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o secretário de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo, Fernando Chucre, garantiu que os repasses serão mantidos. “Isso foi uma premissa que o prefeito estabeleceu, desde a assinatura da Urae. Esse documento estabelece que a condição de São Paulo está vinculada à manutenção de no mínimo, no mínimo, todas as condições vigentes no contrato atual. Ali tem uma cláusula específica fazendo menção à questão dos 7,5% e dos 13%. Isso tá muito claro e foi uma preocupação do prefeito desde o início e tenho segurança que será mantido.”
Chucre explicou que nas negociações entre a Prefeitura de São Paulo e o governo estadual, ficou acertado que “haverá uma redução da tarifa social, esse é o compromisso. Podemos garantir à vereadora (Luana Alves) que em todas as tratativas que fizemos com o estado isso foi falado. Estamos preocupados com isso.”
A preocupação de Amauri Pollachi, especialista em saneamento e conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), divide sua preocupação em dois pontos.
“A privatização da Sabesp é um risco muito grande para a população paulista, os municípios e para a economia do estado. Com a privatização será quebrado um equilíbrio entre a função da empresa e a empresarial, de geração de lucros para a remuneração de acionistas”, conta Pollachi.
“A Sabesp consegue investir em comunidade de baixa renda, onde não há nenhum retorno financeiro, em comunidades com poucas moradias e que vão pagar um preço muito baixo na tarifa. Então, hoje é possível investir valores onde não haverá retorno financeiro”, finaliza o especialista em saneamento.
Fonte: Outras Mídias