Estudo faz uma radiografia das políticas de saúde em municípios rurais distantes. Faltam ações que compreendam as particularidades de cada região. Mas outras medidas são essenciais, como qualificar a Enfermagem e incorporar a participação popular
A complexidade brasileira pode ser observada também em seus municípios rurais mais isolados – e embora o SUS se faça presente neles, faltam políticas específicas para essas regiões. Essa é uma das conclusões a que chegou um estudo realizado por um grupo de pesquisadores, professores e estudantes de programas de pós-graduação de Saúde Coletiva e gestores do SUS. A pesquisa foi coordenada pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e organizou dados importantes para a compreensão de como o SUS se faz presente em municípios remotos.
Os pesquisadores caracterizaram as cidades remotas a partir da classificação do IBGE, mas foram além, agrupando-as em seis clusters regionais, onde encontram-se 97% delas. São eles: o Matopiba, que engloba certas regiões do cerrado do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e é caracterizado por uma expansão recente do agronegócio. O Semiárido nordestino, que abrange uma vasta área dos estados da região, e onde a seca é um problema constante e crescente. O norte de Minas Gerais, onde está o Vale do Jequitinhonha, cujas características sociais e geográficas fazem-no se assemelhar ao semiárido do Nordeste – inclusive com algumas das mesmas carências como a escassez hídrica. O vetor Centro-Oeste, outra área de intensa atividade do agronegócio. Na região Norte, os pesquisadores caracterizaram dois grupos de municípios: um que diz respeito às áreas onde o acesso se dá essencialmente pela água, e o outro de cidades que foram construídas no contexto de grandes projetos nacionais e construção de rodovias.
Como se intui na própria descrição de cada região, cada um desses clusters têm fragilidades e necessidades específicas, que estão sendo negligenciadas pelo ministério da Saúde ao enviar recursos para o SUS. “Os municípios rurais remotos dos clusters Norte Água e Norte Estrada são os mais populosos, mais extensos e distam milhares de quilômetros de centros urbanos, enquanto os do Norte de Minas e do Semiárido têm áreas menores com distância de cerca de 200 km. Por outro lado, os municípios rurais remotos do vetor Centro-Oeste se diferem por uma economia dinâmica, inserida no circuito econômico mundial devido à presença do agronegócio”, expõe um dos estudos apresentados pelos pesquisadores.
Alguns dados organizados na pesquisa corroboram para que fique clara essa diferença entre as regiões. É no vetor Centro-Oeste – onde estão os municípios com menor densidade demográfica e maior PIB per capita – que a mortalidade infantil e os óbitos por causas mal definidas têm o menor índice entre os clusters. Já no Norte, tanto em municípios ligados às águas quanto às estradas, a cobertura pela Estratégia da Saúde da Família está bem abaixo das outras regiões, com menos de 80%. É ali também que há mais indígenas na população; que a mortalidade infantil tem os piores números – e também onde se demora mais tempo para chegar aos centros regionais onde há acesso a melhores serviços de saúde.
“Os serviços que chegam a essas áreas mais distantes são cuidados pontuais. Existe, nessas localidades, uma barreira geográfica muito importante para configurar o acesso, pois as pessoas precisam se deslocar para a sede [do município] para chegar aos serviços de saúde e, muitas vezes, fazem a opção de não buscar o cuidado, dadas as barreiras que enfrentam, sejam geográficas, financeiras ou de organização do próprio serviço” conta Márcia Fausto, uma das coordenadoras do estudo.
Ligia Giovanella, outra pesquisadora que coordenou a pesquisa, aponta medidas que poderiam minimizar as barreiras geográficas e sociais ao sistema de saúde: aumentar e regularizar a frequência de visitas de serviços de saúde itinerantes, manter a mesma equipe que faz os atendimentos, garantir a oferta de insumos e ampliar o contato com os pacientes, seja por telessaúde ou contato por whatsapp.
Mas os resultados da pesquisa apontam para necessidades mais amplas, para que seja garantido o acesso a serviços de saúde por moradores de municípios remotos. Um dos nós principais é a falta de médicos que queiram habitar essas regiões, e a alta rotatividade de profissionais. Programas como o Mais Médicos, desmontado por questões ideológicas dos governos Temer e Bolsonaro, buscavam diminuir esse déficit. Mas há outras saídas, e uma delas é a qualificação dos profissionais da enfermagem, mostra o estudo.
Os enfermeiros, diferente dos médicos, são profissionais que vêm dessas mesmas regiões, e por isso nutrem uma relação afetiva e familiar com esses municípios. “A ampliação das funções de enfermagem tem sido difundida e incentivada no âmbito internacional”, explica Lígia. “Enfermeiras já exercem práticas ampliadas na Estratégia Saúde da Família – por exemplo, na atenção pré-natal e puericultura, e podem ampliar o cuidado aos usuários com problemas crônicos e em ações preventivas, que necessitam de grande empatia e competência educativa. Claro que, para isso, é necessária formação, educação permanente específica.”
Tecnologias da Informação também podem ser grandes auxiliares ao acesso à Atenção Primária, e para isso é preciso investir em infraestrutura. Mas é possível fazer mudanças iniciais desde já: “outras coisas mais simples poderiam ser incorporadas, como marcação de consulta por telefone, para tirar dúvidas sobre sintomas ou uso de medicamento. Isso evitaria deslocamentos necessários ou adiamento de busca por serviço de saúde”, explica Márcia.
Mas há outro fator fundamental para que a Atenção Primária chegue da maneira correta às populações de áreas rurais remotas: a participação popular para a organização dos serviços. “Conselhos locais de saúde de cada UBS devem integrar lideranças comunitárias e representantes ou profissionais de outros setores de políticas públicas e serviços sociais, como escolas e assistência social que atuam no território, e fazer a interlocução com secretaria de obras, saneamento e transporte, para mediar ações intersetoriais necessárias para a disponibilidade e melhoria dos serviços públicos nos territórios”, sugere Ligia.
Fonte: Outra Saúde