- Jonathan Amos, Rebecca Morelle e Alison Francis
- Role,BBC Science News
Como seria conhecer um dos nossos parentes humanos mais próximos de 75 mil anos atrás em carne e osso?
Cientistas produziram uma reconstrução notável de como seria a aparência de uma mulher neandertal quando estava viva.
Ela é baseada em restos mortais esmagados e estilhaçados de um crânio cujos ossos estavam tão moles quando foram escavados que tinham a consistência de “um biscoito bem molhado”.
Os pesquisadores tiveram que fortalecer os fragmentos primeiro antes de remontar o crânio.
Na sequência, paleoartistas especializados criaram o modelo em 3D.
A representação aparece em um novo documentário da BBC Studios para a Netflix chamado Os Segredos dos Neandertais, que analisa o que sabemos sobre os nossos primos evolutivos há muito tempo perdidos, que foram extintos há cerca de 40 mil anos.
A escultura coloca uma cara nesta espécie de hominídeo.
“Acho que ela pode nos ajudar a nos conectar com quem eles eram”, diz Emma Pomeroy, paleoantropóloga da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que participa do projeto.
“É extremamente emocionante e um enorme privilégio poder trabalhar com os restos mortais de qualquer indivíduo, mas especialmente de alguém tão especial como ela”, acrescenta a especialista à BBC News.
O crânio em que o modelo se baseia foi encontrado na Caverna Shanidar, no Curdistão iraquiano. É um lugar icônico, onde foram escavados os restos mortais de pelo menos 10 homens, mulheres e crianças neandertais na década de 1950.
Quando um grupo britânico foi convidado a voltar lá pelas autoridades curdas em 2015, eles logo encontraram por acaso com um novo esqueleto — apelidado de Shanidar Z —, que compreendia grande parte da seção superior do corpo de um indivíduo, incluindo a coluna, ombros, braços e mãos.
O crânio também estava quase todo presente, mas esmagado — com uma camada de 2 cm de espessura —, provavelmente por uma rocha que caiu do teto da caverna em algum momento no passado distante.
“O crânio estava basicamente tão plano quanto uma pizza”, diz Graeme Barker, professor da Universidade de Cambridge que lidera as novas escavações em Shanidar.
“É uma jornada impressionante ir disso (o crânio esmagado) até o que você vê agora. Como arqueólogo, às vezes você pode ficar meio blasé em relação ao que está fazendo. Mas, de vez em quando, você é surpreendido pelo fato de estar tocando o passado. Simplesmente esquecemos que isso é algo extraordinário.”
Com permissão do departamento local de antiguidades, os fragmentos do crânio foram levados em blocos de sedimentos para o Reino Unido, onde começou o meticuloso processo de retirá-los, estabilizá-los e depois montá-los novamente.
O intrincado quebra-cabeça levou mais de um ano para ser concluído por um especialista em conservação arqueológica.
O crânio reconstruído teve então sua superfície digitalizada — e uma impressão 3D foi entregue aos artistas holandeses Adrie e Alfons Kennis, que são conhecidos por sua habilidade em criar representações anatomicamente fiéis de povos antigos a partir de seus ossos e restos fósseis.
Mas por mais intrigante que a escultura seja , com sua expressão bastante contemplativa, é o esqueleto original que contém o real valor.
A equipe tem certeza de que “ela é uma mulher”.
Os ossos pélvicos ajudariam a determinar isso, mas não foram recuperados com a parte superior do corpo.
Em vez disso, os pesquisadores se basearam então em certas proteínas dominantes encontradas no esmalte do dente que estão associadas à genética feminina. A pequena estatura do esqueleto também respalda esta interpretação.
E qual era a idade? Ela provavelmente morreu com 40 e poucos anos, o que também é indicado pelos dentes desgastados quase até a raiz.
“Quando os dentes ficam tão desgastados, a mastigação não é tão eficaz quanto deveria — então ela não consegue comer da mesma maneira”, explica Pomeroy.
“Temos alguns outros indícios de problemas de saúde bucal — algumas infecções, algumas doenças gengivais também. Naquela época, acho que ela estava chegando ao fim natural da vida.”
Durante muito tempo, os cientistas consideraram os neandertais brutos e pouco sofisticados em comparação com a nossa espécie.
Mas esta visão mudou desde as descobertas em Shanidar.
A caverna é famosa por apresentar o que parece ser algum tipo de prática funerária. Os corpos foram cuidadosamente colocados em uma depressão próxima a um alto pilar de pedra. Todos os mortos compartilhavam uma posição semelhante, na forma como estavam dispostos.
O pólen espalhado por um esqueleto levou algumas pessoas a argumentar que estes neandertais poderiam ter sido enterrados com flores, sugerindo talvez um despertar espiritual, até mesmo religioso.
Mas a equipe britânica acredita que é mais provável que o pólen tenha sido deixado mais tarde por abelhas escavadoras, ou talvez por galhos floridos que foram colocados em cima dos corpos.
“Não (teriam colocado ali) por causa das flores nos galhos, mas porque os galhos em si poderiam impedir que espécies como hienas chegassem aos corpos”, explica Chris Hunt, da Universidade John Moores, em Liverpool, no Reino Unido.
“Eu hesitaria em usar a palavra ‘sepultamento’; acho que usaria a palavra ‘colocação’ para fugir da ideia de um vigário e da igreja. Mas não há dúvida de que eles mantiveram uma tradição de que ‘é aqui que você coloca a vovó’.”
Os Segredos dos Neandertais estreia globalmente na Netflix nesta quinta-feira (2/5).
*Reportagem adicional de Gwyndaf Hughes.
Fonte: BBC Brasil / BBC STUDIOS/JAMIE SIMONDS