Pesquisador explica por que o consumo irrefreado de substâncias como o fentanil ainda não se espalhou no país. Mas alerta: a falta de testes pode estar nos deixando no escuro – e qualificar os profissionais de saúde será crucial para evitar tragédias
Francisco Inácio Bastos, em entrevista a Gabriela Leite
Desde ao menos 2014, os Estados Unidos vêm registrando recordes de mortes por overdose causadas pelo consumo de opioides – principalmente o fentanil. Trata-se de uma medicação contra a dor extremamente potente que, utilizada com outras drogas, também serve como forte anestésico. É feita para o uso restrito aos hospitais, pois produz depressão respiratória aguda.
O fentanil é o causador da chamada “quarta onda” da crise de opioides norte-americana – que foi iniciada nos anos 1990 com remédios altamente viciantes utilizados com prescrição médica. Mais de 111 mil norte-americanos morreram de overdose nos 12 meses até abril de 2023, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA. É mais que o dobro de todos os óbitos por homicídio e por desastres de automóvel, somados.
Quais condições permitiram que, até agora, essa crise não tenha chegado ao Brasil? Um artigo do site The Conversation, assinado por Francisco Inácio Bastos, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), busca explicar alguns dos motivos. Ele também conversou com Outra Saúde para explicar suas observações em detalhes.
Francisco acredita que há alguns motivos principais para não ter acontecido uma crise semelhante, por aqui. Em primeiro lugar, não houve a propaganda maciça de remédios para a dor, em especial da oxicodona, como ocorreu nos Estados Unidos. Esse foi um dos casos mais dramáticos de manipulação da indústria farmacêutica. Além da propaganda e do incentivo a médicos para que receitassem sua droga, a fabricante – Purdue – conseguiu subornar a agência reguladora estadunidense para aprovar uma bula que dizia que ele não provocava vício.
A indústria legal, portanto, foi a grande responsável pela epidemia de opioides que hoje chega ao auge nos EUA. Outro motivo para o baixo uso desse tipo de substância no Brasil, é o baixo poder de compra da população, comenta Francisco. Essa também é uma das razões para a heroína, opioide ilegal, não ser consumida em larga escala por aqui. Essas drogas costumam ser muito caras – e, se não há mercado, o tráfico não tem interesse em vendê-las.
Mas há um mérito brasileiro no controle da entrada do fentanil no país. “Em abril de 2023, a apreensão de frascos do farmaco no estado do Espírito Santo provocou sérias preocupações entre as autoridades brasileiras, especialmente porque havia, até então, poucos registros de uso ilegal desta substância no país”, escreve Francisco em seu artigo. Rapidamente, segundo ele, as autoridades tomaram providências.
“A Anvisa exerce um controle sobre a entrada dos precursores utilizados na fabricação do fentanil no Brasil, um procedimento mais rigoroso em comparação com as práticas adotadas nos Estados Unidos e na Europa”, continua o texto. Até agora, essa medida tem se mostrado aparentemente eficaz.
Mas há um problema sério, comenta Francisco: estamos no escuro. Fora alguns centros de referência e poucos centros toxicológicos da Polícia Federal, não há teste para identificar a presença de fentanil no país. O Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox), da Unicamp, identificou recentemente a presença da substância no sangue de pessoas que não sabiam que a tinham ingerido. Ela pode ter sido misturada a outras drogas, como a cocaína e o K2 (formulação geralmente produzida com canabinoides sintéticos para burlar a fiscalização).
Francisco teme, portanto, que o fentanil esteja muito mais disseminado do que se tem conhecimento. Mas afirma que, até o momento, não há qualquer notícia de entrada do psicoativo por rotas ilegais. O que se registra são possíveis roubos de carga ou de estoque de postos de saúde, explica.
Por isso, o pesquisador acredita que é preciso equipar “os estabelecimentos de saúde, as emergências e os Institutos Médicos Legais com testes”. Nos Estados Unidos há testes rápidos de fácil utilização, inclusive como redução de danos, para identificar o fentanil. “Similares aos testes rápidos adquiridos em farmácias, tiras de papel são capazes de detectar a presença da substância em suas diferentes formas – comprimidos, pó ou injetáveis –, e em diversos tipos de droga, como a cocaína”, escreve ele.
Além disso, os profissionais de saúde precisam ser capacitados para reconhecer e saber como agir em cada caso de abuso de drogas. Para Francisco, essa é a medida mais importante. “Se você não sabe com o que está lidando, fica apenas nas medidas básicas: hidratar, fornecer oxigênio… Mas, se for fentanil, por exemplo, e você não usar a naloxona, o quadro não se reverte. Se o paciente tiver uma arritmia com cocaína, é uma conduta. Se tiver uma arritmia com cetamina, é outra conduta”, explica ele.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.
Fale um pouco sobre a crise do fentanil nos Estados Unidos.
Fentanil é uma droga que deveria ser de uso apenas hospitalar, porque como é um analgésico muito potente, ele deprime o sistema respiratório em minutos. É feito exatamente para entubar, principalmente em UTI e em centro cirúrgico. Você precisa manter o paciente monitorado o tempo todo. Na época da covid, foi o anestésico líder, porque é muito rápido para entubar. Quando chegava um paciente muito grave, que precisava ser entubado rápido, ele funcionava muito bem.
O problema da droga de rua é que não há monitoramento nenhum. Então a pessoa, dependendo da dose, produz uma depressão respiratória aguda, muito rápida, em minutos. Se não injetar Narcan [naloxona, droga que serve de antídoto para opioides], a pessoa morre na hora.
No seu artigo no The Conversation você fala que no Brasil o uso do fentanil aparece sem o conhecimento dos usuários, geralmente misturado em outras substâncias.
Na verdade, nós nunca tivemos um mercado de heroína. Também a oxicodona, que causou a primeira onda dos opioides nos Estados Unidos, foi registrada por aqui, mas felizmente o uso foi bastante mais restrito.
Fui recentemente aos Estados Unidos e fiquei impressionado, porque só em Baltimore, que é uma cidade muito menor do que o Rio de Janeiro, por exemplo, são registradas cinco mortes por overdose de fentanil por dia.
Os norte-americanos utilizam oxicodona como se fosse aspirina, é um negócio meio louco. Agora estão realmente apertando muito a fiscalização, mas foi durante muito tempo um analgésico que, dizia-se, não causava dependência.
Em seguida, vieram as chamadas segunda e terceira ondas, com opioides intermediários. O fentanil causou a chamada quarta onda. Muita gente que já vinha dependente de opioides passou a usar o fentanil – que chega a ser 50 vezes mais forte que um opioide de primeira linha, como o tramal, por exemplo.
No Brasil, o que está acontecendo, é que o fentanil está sendo adicionado a outras substâncias, quase sempre sem que as pessoas saibam.
Em que substâncias? Por aqui há registro do aumento do uso das drogas K. Há alguma relação?
A droga K é outra confusão, porque é um mar de drogas sintéticas que levam esse nome que não quer dizer nada. Começou como uma brincadeira de mau gosto: nos Estados Unidos, aqueles cães farejadores são chamados de K9 [em inglês, a sigla soa exatamente como a palavra “canine”, que significa “canino”]. Então, como essa droga é manipulada para escapar do cachorro, começou como K9 – só que depois inventaram a K4 e outras. Agora é um saco de gatos que ninguém entende.
No ano passado, em Campinas, no Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) da Unicamp, descobriram o fentanil em várias amostras de sangue de usuários que tinham usado outras drogas. No Brasil, não há teste para identificar o fentanil quase em lugar nenhum, a não ser em centros de referência, alguma toxicologia da Polícia Federal, esse centro de Campinas.
Você também fala no artigo que o fentanil usado nas ruas do Brasil costuma vir de cargas roubadas.
Assim que começou a aparecer o problema do fentanil, a Anvisa tomou a decisão correta de bloquear a importação e venda de dois produtos para a síntese da droga. Então a via de síntese ilegal principal está completamente bloqueada.
Toda informação que temos publicada oficialmente é de fentanil desviado de cargas ou de postos de saúde. Não há rotas de síntese inovadoras. Mas o fato é que nos Estados Unidos, também existe o fentanil desviado, mas tem a rota de síntese de fentanil, que eles chamam “fentanil sujo”, feito em laboratórios clandestinos.
Mas o fentanil chegou a ser receitado por médicos para pessoas tomarem em casa, nos Estados Unidos?
Não. Esse foi o caso da oxicodona. Esse remédio tem uso ambulatorial grande, mas o fentanil veio para substituir outros opioides. É possível tratar a dor com opioides mais fracos como o Tramal. É uma substância 100 vezes mais fraca do que o fentanil.
O caso da oxicodona aconteceu porque a farmacêutica, que se chamava Purdue Pharma, conseguiu, subornando a fiscalização, fazer uma bula inteiramente errada. Foi um erro gravíssimo da agência reguladora. O caso levou à maior multa da história contemporânea da indústria, de 11 bilhões de dólares. Eles afirmavam na bula que a oxicodona não criava dependência.
Não existe opióide que não gere dependência. Varia de acordo com a dose, depende do uso. Mas isso enganou muita gente, muitos médicos, muitos pacientes. Estava escrito na bula que ela não causava dependência, mas era mentira.
E quais são as características, nos Estados Unidos, que fizeram essa crise de opióides começar?
A propaganda foi maciça. Além disso, os Estados Unidos têm um mercado consumidor com um poder de compra absurdo. E para quem paga as melhores seguradoras de saúde, as medicações também são cobertas integralmente. Houve esse caso da oxicodona com a bula errada. E por razões mercadológicas, lá não se vende Novalgina [dipirona], só Tylenol [paracetamol] e Aspirina [ácido acetilsalicílico].
Então, eles começaram a entrar com oxicodona como se fosse açúcar, qualquer pessoa com uma dor perfeitamente controlável por não-opióide usava o medicamento. Agora isso está mudando, estão entrando com uma fiscalização muito dura.
Mas foi algo absurdo. O controle norte-americano é muito descentralizado, feito estado a estado, município a município. As pessoas montavam clínicas que fraudavam prescrição. A fiscalização brasileira, por incrível que pareça, é melhor, porque é muito mais centralizada, muito mais federalizada.
E existe muita gente foi para a rua. São Francisco está cheia de gente vivendo nas ruas. A Cracolândia de São Paulo, perto da Opiolândia de São Francisco, é quase que uma brincadeira de criança. Eles calculam um tamanho que é mais ou menos quatro a cinco vezes maior que a Cracolândia de São Paulo. Você imagina um mundo de pessoas em situação de rua usando opioides, o que é muito pior que crack?
A situação está bem grave mesmo. Agora que está melhorando, houve transferência de muita gente. Realocação. Não é um problema só médico, não adianta tratar apenas o vício porque a pessoa volta para a rua e começa tudo de novo. Ela não tem para onde ir.
E você acha que o uso de opioides pode crescer no Brasil?
O Brasil é um gigante, e as unidades são totalmente heterogêneas. Existe esse risco, sim. Principalmente em locais mais distantes. A primeira apreensão de fentanil foi em Cariacica, no Espírito Santo. Cariacica não é um hub demográfico, nem comercial. Provavelmente aconteceu porque não foi feita uma fiscalização adequada.
E o que pode ser feito para impedir?
Eu acho que a gente, basicamente, tem que insistir em três pontos. Primeiro, não se pode afrouxar a vigilância. Por enquanto estamos indo bem, não se pode afrouxar. Segundo, não adianta fazer só apreensão se não for feita a análise toxicológica. A apreensão é apreensão de quê? Como saber?
O terceiro ponto importante seria qualificar os estabelecimentos de saúde, as emergências, os Institutos Médicos Legais com testes. Porque sem isso a gente não vai sair nunca do lugar. Morre alguém e a pessoa só é testada para álcool, cocaína. Como é que você vai saber se tinha fentanil? Nunca vai saber.
E, para mim, o quarto lugar, e talvez até mais importante, é a educação continuada do profissional de saúde. Eu sempre lembro que eu me formei sem aprender nada, eu não tive uma única aula de manejo de intoxicação. Obviamente, o quadro era outro, eu sou de uma outra geração. Mas pergunto para meus alunos, que são jovens, e eles também não aprenderam na faculdade de medicina, de enfermagem, das faculdades biomédicas.
Temos que reverter essa situação, porque o profissional tem que aprender a lidar com esses quadros. Se você não sabe com o que está lidando, fica apenas nas medidas básicas: hidratar, colocar oxigênio… Mas, se for fentanil, por exemplo, e você não usar a naloxona, o quadro não reverte. Se o paciente tiver uma arritmia com cocaína, é uma conduta. Se tiver uma arritmia com cetamina, é outra conduta.
Então é isso: qualificar, prover de insumos e manter a fiscalização. Senão, tudo que a gente não toma providências, mais cedo ou mais tarde, acaba emergindo. E eu me lembro muito dessa história, porque nos anos 1980, eu ia muito à universidade de Johns Hopkins. E quando eu voltava para o Brasil, todo mundo dizia que o crack nunca iria ser um problema no Brasil. Mas no início da década de 1990, mais ou menos, começou a acontecer em São Paulo e depois virou um fenômeno nacional.
Fonte: Outra saúde