Kristina Reymann-Schneider – Quinta, 1 de fevereiro de 2024
Subcultura de extrema direita nas comunidades de jogos online tenta atrair jogadores e torná-los radicalizados através de estratégias que visam normalizar retóricas antissemitas e racistas.
Aderir a uma organização terrorista islamista dentro de um jogo com o objetivo matar o maior número possível de soldados israelenses e libertar os territórios palestinos aos gritos de Allahu akbar (“Deus é grande”) é algo possível em um jogo de propaganda ideológica vendido na plataforma de games Steam.
O jogo, criado por um desenvolvedor brasileiro-palestino em 2021, ganhou nova popularidade após os ataques do grupo extremista Hamas em Israel em 7 de outubro de 2023. O produto, que acabou sendo retirado da loja online da Steam na Alemanha, mas ainda pode ser baixado em outros países, não é o único criado para disseminar conteúdos antissemitas e anti-Israel a ser vendido nas principais plataformas de games do mundo.
A comunidade gamer é gigantesca. Mais de três bilhões de pessoas em todo o mundo jogam regularmente. Isso faz com que sejam criado vínculos entre pessoas que jamais conseguiriam se encontrar não fosse através da internet e por compartilharem o mesmo hobby.
A chamada “nova direita” se beneficia disso. Uma subcultura pequena, porém radicalmente extremista, emergiu dentro da cena gamer, na qual pessoas que pensam da mesma forma se unem para incitar o ódio e disseminar ideologias misantrópicas. Isso tudo é parte da estratégia chamada de metapolítica.
O objetivo é ocupar e influenciar áreas da sociedade que a princípio não têm a ver com política. Estas podem ser, por exemplo, associações esportivas, instituições culturais ou plataformas de games, no intuito de fazer com que o pensamento radical de extrema direita se torne aceitável na sociedade.
Estratégia midiática radical
O que e como a direita se comunica nas plataformas de games é delineado por uma estratégia de mídia também utilizada nas redes sociais, chamada de “apito de cachorro”. Eles compartilham conteúdos como memes satíricos que parecem inofensivos à primeira vista.
Essas postagens, no entanto, contem códigos antissemitas e racistas que mudam constantemente e são com frequência compreendidos apenas pelos seguidores, explica Mick Prinz, da Fundação Amadeu Antonio, da Alemanha, que realiza campanhas contra o extremismo de direita e o antissemitismo.
Uma vez que expressões ou narrativas conspiratórias são lançadas ao mundo e constantemente repetidas, elas acabam sendo normalizadas. O resultado é que o limite do que pode ser dito acaba sendo deslocado para a direita e os termos utilizados pela militância da extrema direita são adotados sem que haja uma reflexão por parte da sociedade. O exemplo mais recente é o termo “remigração”, escolhido como a “despalavra do ano” de 2024 na Alemanha.
Antissemitismo nas plataformas de games
Os ultradireitistas têm ferramentas para glorificar a era nazista de maneira relativamente irrestrita nas maiores plataformas de jogos, por exemplo, ao aderirem a grupos de admiradores da Wehrmacht – o Exército nazista – e compartilharem suas visões de mundo. Isso ocorre, por um lado, pelo fato de trabalharem com códigos e, por outro, em razão de os fóruns de discussão praticamente não terem nenhum tipo de moderação, e pelas discussões migrarem para os grupos de chat.
Apesar de haver a opção de as pessoas denunciarem conteúdos ou usuários problemáticos, isso não necessariamente significa que eles serão imediatamente removidos.
Os jogos de propaganda política também são programados por neonazistas para neonazistas. Um grupo de desenvolvedores de extrema direita da Áustria afirma querer “transmitir valores patrióticos” com seus jogos, quando tem, na verdade, o intuito de disseminar narrativas conspiratórias. No primeiro jogo desenvolvido pelo grupo, que foi retirado da Steam após denúncias de usuários, os jogadores passam por fases em cores exuberantes na pele do líder da extrema direita austríaca Martin Sellner– que recentemente apresentou na Alemanha um plano para deportar milhões de imigrantes e “cidadãos não-assimilados”, sucitando protestos com centenas de milhares de pessoas em todo o país.
Sellner é um dos principais estrategistas da chamada “nova direita” na Europa. Na Alemanha, o jogo não pode ser exibido em anúncios ou vendido para crianças e jovens. Mesmo assim, segundo os próprios desenvolvedores, ele foi baixado 50 mil vezes. Embora esses números não possam ser verificados, está claro que o público-alvo do jogo é bastante amplo.
Os desenvolvedores já trabalham no sucessor do game, que vem sendo anunciado na Steam. Eles pertencem ao Movimento Identitário, de extrema direita e, segundo a Fundação Amadeu Antonio, são apoiados com dinheiro e publicidade por políticos do partido ultradireitista alemão Alternativa para a Alemanha (AfD).
Adaptação de jogos conhecidos
Há também vários jogos menos conhecidos na plataforma, que não obtiveram sucesso comercial, mas que podem ser extremamente problemáticos, explica Mick Prinz. Ele se refere aos games nos quais as pessoas vivenciam a experiência da Segunda Guerra Mundial como membros da Wehrmacht, além de extensões não oficiais de jogos já existentes criadas para glorificar o nazismo, os chamados mods.
Cada jogador pode, a princípio, criar esses níveis adicionais, carregá-los nas plataformas e compartilhar com outros jogadores.
“Aonde quer que seja possível aos usuários a criação de conteúdo, os extremistas de direita vão tentar usar essa brecha. É aí que surgem os mods racistas e antissemitas”, diz Prinz.
O ataque à sinagoga da cidade alemã de Halle, onde um extremista de direita tentou invadir o local no intuito de assassinar o maior número possível de judeus, podia ser replicado no game Roblox. Esse mod, porém, já foi apagado.
Jogos infantis glorificam nazismo
O Roblox é um jogo online bastante popular no mundo inteiro, especialmente entre crianças e jovens, que pode ser descrito como um tipo de jogo de Lego digital. Os jogadores podem montar seu próprio mundo e adentrar nos mundos de outros jogadores.
Isso possibilita que extremistas de direita criem jogos que glorifiquem o nazismo. Saudações nazistas, uniformes, bandeiras com suásticas, campos de concentração, câmaras de gás – tudo isso podia ser encontrado no jogo infantil até que o conteúdo fosse denunciado e removido.
Em outubro de 2023, jogadores adolescentes de Roblox realizaram um protesto pró-Palestina. Segundo o jornal britânico Jewish News, não se tratava somente de manifestações pacíficas. O jornal divulgou imagens e capturas de tela de uma bandeira israelense em chamas e de avatares que faziam comentários anti-Israel nas mensagens de texto.
Apesar de a propaganda nazista, o antissemitismo e o racismo serem oficialmente proibidos no jogo, periodicamente esse conteúdo ressurge, já que mais de 70 milhões de usuários utilizam o Roblox todos os dias criando mais conteúdo.
Toxicidade dos jogos online
A Liga Antidifamação (ADL) – uma organização americana que combate a discriminação contra o povo judeu – concluiu em um relatório de 2022 que 77% dos gamers online relataram ter sido alvo de insultos ou de assédio moral por parte de outros jogadores.
O estudo, que pesquisou quase 100 milhões de americanos, relatou que 34% dos jogadores judeus disseram ter sido alvo de abusos em razão de sua identidade judaica. O levantamento também demonstrou que 20% dos gamers já se depararam com o termo “supremacia branca”.
“Extremistas de direita são uma minoria barulhenta, mas se sentem bastante confortáveis nas comunidades de gamers quando declarações capacitistas, sexistas ou racistas são normalizadas. Em algumas áreas da cultura gamer, esse ódio é parte da vida cotidiana.Há simplesmente uma toxicidade no ambiente gamer que não pode ser negada”, comenta Prinz.
“Mas, seria errado afirmar que o extremismo de direita é um problema do mundo dos gamers. O extremismo de direita é um problema da sociedade”, acrescenta.
Cultura da memória
O desenvolvedor de jogos Yaar Harell tenta se contrapor ao crescimento do populismo de direita na Alemanha, refletido nas pesquisas de opinião em favor da AfD, assim como aos games e mods de mau gosto e antissemitas.
“Tenho a sensação de que um terremoto atravessou o cenário da mídia e da política e que agora entendemos que são necessárias novas formas de contar histórias, assim como a cultura da memória”, diz Harell.
Ele trabalha atualmente no game Enquanto Deus dorme, no qual os jogadores assumem dois papéis bem diferentes: o de uma menina judia de dez anos de idade que, juntamente com seu irmão mais novo, luta pela sobrevivência na Cracóvia em 1939, e o de um oficial da SS nazista.
Esta é uma abordagem também defendida pelo desenvolvedor Luc Bernard, que criou no ano passado um museu virtual do Holocausto para o game de combates armados Fortnite.
Ele diz que talvez a melhor forma de combater o antissemitismo nos games seja através da remoção consistente de conteúdo de extrema direita e de glorificação do nazismo nas plataformas, além de uma ampla oferta de jogos com modificações que lidem com a emoção e aumentem a conscientização sobre antissemitismo, mantendo viva a memória do Holocausto.
Fonte: DW