Europa teve seus sistemas de saúde esfacelados pelo neoliberalismo. Agora, busca importar profissionais de países de renda inferior para suprir sua escassez, deixando-os fragilizados. Regulação internacional ainda é débil, denunciam ativistas internacionais
No People’s Health Dispatch | Tradução: Gabriela Leite
A crise global da força de trabalho em saúde não é apenas uma questão de números, mas também uma crise de trabalho decente e equidade, de acordo com Genevieve Gencianos da Public Services International (PSI). Falando na conferência “Care for Care Workers” em 29 de junho em Bruxelas, Gencianos, junto com ativistas, sindicalistas e autoridades de saúde, pediu uma nova abordagem para enfrentar os problemas que afetam os sistemas de saúde pública em todo o mundo, particularmente a retenção e o recrutamento de trabalhadores da saúde.
A conferência foi apoiada por mais de uma dúzia de organizações de toda a região, todas as quais reconhecem a urgência de desenvolver uma estratégia de força de trabalho que beneficie a todos.
“A escassez de 10 milhões de trabalhadores de saúde e cuidados até 2030 é uma crise da redução dos sistemas públicos de saúde e cuidados em nome da agenda neoliberal de extração de lucro às custas dos direitos dos trabalhadores e da saúde das pessoas”, afirmou Gencianos.
O contexto europeu
Nos últimos anos, os países europeus têm se preocupado com a escassez, cada vez mais próxima, de força de trabalho em saúde. Apesar dos antigos avisos de ativistas de saúde e sindicatos, de que medidas de austeridade inevitavelmente reduziriam a acessibilidade e a qualidade dos cuidados, a maioria dos governos optou por soluções rápidas. Essas medidas mantiveram a aparência de sistemas de saúde fortes enquanto cortavam salários, aumentavam cargas de trabalho e expandiam as horas de trabalho, levando ao esgotamento e à saída em massa de trabalhadores de saúde experientes.
“Não há escassez de trabalhadores de saúde qualificados na Europa”, disse Matilde De Cooman da Viva Salud, uma das principais organizadoras da conferência ao lado do Movimento pela Saúde dos Povos (MSP) Europa e da Associação de Médicos Democráticos (vdää*). “Há uma escassez de empregos viáveis, contratos estáveis, bons salários e condições de trabalho saudáveis.”
Em vez de abordar essas questões, os governos europeus priorizaram o recrutamento internacional de trabalhadores de saúde, exacerbando a crise no Sul Global. Dez países de alta renda atualmente concentram 23% do contingente global de médicos, enfermeiros e parteiras, enquanto toda a região africana possui apenas 4%, alertou Gencianos.
Recrutamento internacional como solução rápida
Apesar dessa disparidade, os países de alta renda dependem amplamente do recrutamento internacional ativo de trabalhadores de saúde, justificando-o com acordos bilaterais com países do Sul Global que supostamente estabelecem controles e balanços. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também monitora o recrutamento internacional através de um Código Global de Práticas dedicado.
No entanto, como destacou De Cooman, muitas vezes há um descompasso entre a política e a prática. Países como a Alemanha, um destino muito frequente para trabalhadores de saúde, assinam acordos bilaterais até mesmo com governos cujos sistemas de saúde têm muito menos enfermeiros do que precisam. Isso aconteceu na parceria entre Alemanha e Brasil, disse Karen Spannenkrebs da vdää*.
Quando autoridades de saúde e trabalho alemãs anunciaram a intenção de recrutar enfermeiros brasileiros, supostamente em excesso no país, a vdää* e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) emitiram um alerta conjunto, afirmando que a explicação oficial era enganosa. Não há excesso de enfermeiros no Brasil; a questão é que muitos enfermeiros estão desempregados devido a restrições financeiras que impedem o sistema de saúde de absorvê-los.
Países de alta renda negligenciam exemplos semelhantes ao desenvolver suas estratégias de força de trabalho em saúde. Trabalhadores de saúde migrantes são tratados como mercadorias: uma boa oportunidade para garantir a provisão de saúde e cuidados a uma fração do custo. “Eles pretendem exportar nossos trabalhadores de saúde como se fossem mangas ou bananas”, disse um trabalhador de saúde das Filipinas a De Cooman.
Trabalhadores de saúde de países como Geórgia e Coreia do Sul enfrentam desafios semelhantes. Muitas vezes, são recrutados com promessas de posições bem remunerada, mas enfrentam discriminação, racismo e barreiras burocráticas, impedindo-os de exercer a profissão para a qual foram originalmente treinados. Países de alta renda ignoram esses problemas, intensificando a exploração dos trabalhadores.
Políticas e estruturas internacionais têm um alcance limitado, porque não há, no horizonte, uma mudança no comportamento dos países de alta renda. Mecanismos recentes da OMS Europa avançaram alguns passos, ao reconhecer as necessidades dos trabalhadores de saúde – mas muito mais é necessário, especialmente no que diz respeito à retenção a nível nacional, disse Sulakshana Nandi da Divisão de Políticas e Sistemas de Saúde do Escritório Regional da OMS para a Europa.
A retenção de profissionais será impossível sem uma mudança fundamental na abordagem dos países de alta renda aos sistemas de saúde, enfatizou Gencianos. O mundo precisa de mais recursos para a saúde, melhores condições de trabalho e cancelamento da dívida do Sul Global, a fim de enfrentar efetivamente a crise internacional da força de trabalho em saúde, concluiu a conferência.
Fonte: Outra Saúde / Créditos: Radio Nigeria