Como se desmonta a Saúde Indígena

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Cortes do governo ameaçam desarticular programas concebidos na Constituição de 1988 para respeitar saberes e ritos dos povos ancestrais. Conhecê-los a fundo pode ser decisivo para resgatá-los, num projeto de reconstrução nacional

Por Alessandra Monterastelli – Sexta, 23 de setembro de 2022

A três semanas das eleições presidenciais, o governo de Jair Bolsonaro entregou o Orçamento da União para 2023 ao Congresso, com a proposta de cortar em 60% as verbas destinadas ao programa Farmácia Popular. Na mesma toada, o governo sugere o corte de 59% dos investimentos destinados à saúde indígena, que de R$ 1,64 bilhão passaria a contar com R$ 664,6 milhões

Logo após a notícia dos planos de Bolsonaro para 2023, um levantamento elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que, em apenas 8 meses, 16 crianças indígenas morreram de diarréia no interior do Acre. Segundo a pesquisa, uma criança indígena tem 14 vezes mais chances de morrer pela doença quando comparada a uma criança branca. 

“Achei essa porcentagem até branda”, diz Marcos Sabarú, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Somos mais vulneráveis. Não é só desnutrição e diarreia, estamos morrendo de tuberculose, febre amarela, chicungunha. O índice de mortalidade é grande”, desabafa. Sabarú pertence à etnia Tingui-Botó, do Baixo São Francisco, em Alagoas. Ele conta que doenças ligadas à falta de água tratada, como a diarréia, são comuns em grande parte das terras indígenas: “hoje os rios não são limpos como antigamente”, lembra. 

Soma-se à falta de saneamento básico a falta de alimento, sintoma não apenas da desigualdade, mas da falta de demarcação das áreas indígenas. O aumento do desmatamento e das queimadas, ambos ligados à ação do garimpo e da extração ilegal de madeira, vem causando um duro impacto na fauna e flora regionais, o que, segundo Sabaru, impede que comunidades sigam vivendo da caça e da pesca. O desequilíbrio ambiental leva ao consumo de produtos industrializados encontrados nos mercados e, diante da falta de recursos, à desnutrição.  

O fornecimento de água potável, junto do atendimento às comunidades indígenas, é responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao ministério da Saúde e que pode ter seu orçamento cortado em 2023, caso Bolsonaro seja reeleito. Desde 2010, quando pela primeira vez passou a existir um órgão responsável unicamente pela saúde indígena, a Sesai passou a coordenar os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), que promovem o atendimento de casos simples – quando trata-se de um caso complexo, o paciente é encaminhado aos hospitais regionais e entra na rede SUS. 

A descentralização do atendimento, que veio com a chamada Lei Arouca, em 1999, representou um avanço. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável por administrar a saúde indígena pelo SUS até aquele ano, era alvo de denúncias de corrupção e desvio de recursos. A saúde pensada para os povos indígenas era recente: foi apenas na Constituição de 1988 que passaram a existir políticas públicas voltadas para os povos originários – não enquanto indivíduos tutelados pelo Estado, mas como cidadãos

Ainda assim, os problemas são múltiplos. Apesar da criação dos distritos ser um marco positivo, não há uma diferenciação clara entre os planos de ação em cada um deles, necessária pelas demandas de cada território. “Um está precisando de ambulância, de carro, o outro de caminhonete, em uma região o problema é a malária, em outra não tem essa doença”, exemplifica Sabarú. A incidência de doenças como a malária, tuberculose e Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) vem avançando sobre os povos indígenas de diferentes regiões do país, revelando dificuldades no atendimento e a decadência da infraestrutura disponível. 

“Deveria ter médico, mas raramente tem”, explica Ana Lúcia Pontes, pesquisadora da Fiocruz e coordenadora de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Ela explica que os distritos dispõem de equipes multidisciplinares, formadas principalmente por enfermeiros e técnicos de enfermagem e agentes indígenas de saúde – moradores indicados pelas próprias comunidades ou pessoas que passam por processos seletivos específicos, mas que não são regularizados. “São trabalhadores extremamente desvalorizados, precarizados, sem carreira, qualificação e supervisão adequada. 

Essas equipes precisam percorrer os territórios, em geral áreas grandes, dispersas e de difícil acesso, com alto custo de transporte”, explica Pontes. As equipes de locomoção são terceirizadas, visto que a gestão dos recursos é transferida pelos distritos a empresas conveniadas – alvos de inúmeras denúncias por parte dos indígenas: ocultamento de dados, atraso de pagamentos e da compra de medicamentos e má organização do transporte são alguns dos problemas mais relatados. 

Após as viagens empreendidas pelas equipes até as aldeias, que podem durar horas ou dias – e que têm frequência irregular – raramente é realizado apenas o atendimento primário. “Eles acabam por fazer emergência e casos graves. Esse é o primeiro atendimento; caso necessário, o paciente é encaminhado para a cidade”, explica Pontes. O transporte dos pacientes das áreas de difícil acesso até as cidades é caro, e, segundo conta Sabarú, as empresas responsáveis por vezes têm valores de combustíveis definidos em contrato com o distrito e que não podem ser ultrapassados. O mesmo problema de custos ocorre com as horas de voo, quando não é possível fazer o transporte de barco ou ambulância. 

Ao chegarem nas cidades, os pacientes entram no fluxo do SUS. Entre os direitos garantidos pela Constituinte, a atenção diferenciada à saúde foi um destaque – o reconhecimento, pelo SUS, da diversidade sociocultural e linguística dos povos indígenas junto de seus sistemas médicos, práticas e especialistas próprios. “A atenção diferenciada implica em qualificar adequadamente os profissionais de saúde, formar mais indígenas e construir protocolos”, argumenta Ana Pontes. “Tem cidades de maioria indigena que deveriam garantir uma atenção primária sensível, mas isso não acontece. Na área urbana, em geral, os gestores não querem se responsabilizar”, conclui. 

“Quando acontece um parto, a família tem que assistir. O pajé tem que rezar. Tem povos que não aceitam o toque na barriga da mulher antes do nascimento. Tem médico que se recusa a fazer o atendimento quando as pessoas estão pintadas de urucum”, conta Sabarú. A realização da diretriz que propõe a articulação entre as chamadas medicinas e práticas tradicionais segue um desafio. Somada às dificuldades já existentes, a crescente invasão de terras indígenas por garimpeiros vem criando um clima de medo nos territórios e, por vezes, impedindo o atendimento. Nessa semana, a Hutukara Associação Yanomami denunciou que garimpeiros estão impedindo equipes de chegarem às aldeias por meio de ameaças. Sabarú conta que situações do tipo não são casos isolados. Ele fala que, em grupos de Whatsapp das associações ligadas a Apib, é comum chegarem áudios com denúncias feitas pelos indígenas sobre ataques contra postos de saúde. “Tudo passa pelo território”, conclui.

Fonte: outraspalavras.net

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