Componentes genéticos e ambientais: trauma e estresse na gestação podem aumentar chance de autismo nos filhos

Ciências saúde

Trabalho inédito entrevistou mais de dois mil brasileiros relacionando fatores genéticos e ambientais. Outros estudos ainda são necessários para explorar resultados sugeridos pela pesquisa

  Publicado: 20/04/2023

Texto: Fabiana Mariz
Arte: Carolina Borin Garcia

O autismo é um distúrbio do neurodesenvolvimento cuja etiologia ainda é desconhecida. Pesquisas mostram que não há um fator único, mas sim a interação de componentes genéticos e ambientais. 

Uma pesquisa da USP cruzou dados de pacientes e mostrou que a exposição da gestante a fatores ambientais e psicossociais (como estresse, exposição a produtos químicos e perda de um ente querido, por exemplo) pode aumentar a possibilidade do desenvolvimento do autismo nos filhos.

O doutorado, realizado pela neurocientista Anita Brito, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, em parceria com a Plataforma Científica Pasteur (SSPU) da USP – recentemente transformada em Institut Pasteur de São Paulo –  e com o Instituto de Psiquiatria (IPq) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), investigou, pela primeira vez, a relação entre fatores genéticos e ambientais e o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Um artigo na revista científica BMC Psychiatry descreve os resultados.

Anita, que atualmente faz pós-doutorado no Institut Pasteur de São Paulo, entrevistou 2.141 brasileiros com TEA por meio de um questionário on-line, contendo 132 perguntas sobre os mais variados assuntos, como histórico familiar (casos de doenças psiquiátricas e neurológicas em parentes consanguíneos – pais, tios e tias, avós e primos de primeiro grau), perfil socioeconômico e possíveis fatores estressores durante a gestação. 

“Olhamos para o período gestacional porque é o momento em que o sistema nervoso está sendo gerado, e que pode sofrer alterações”, explica Patrícia Beltrão Braga, professora do ICB, pesquisadora da SPPU e também autora do artigo. “E durante os nove meses, qualquer estresse que a mulher passe pode produzir fatores que podem desencadear mudanças epigenéticas.” Epigenética é um campo de pesquisa que investiga como os estímulos ambientais podem ativar determinados genes e silenciar outros. 

A maioria dos respondentes era do sexo masculino (81%), com idade mínima de 2 anos para homens e mulheres (as informações sobre as crianças foram fornecidas pelos pais ou responsáveis) e idade máxima de 41 anos para homens e de 54 para mulheres. 54% de toda a amostra residiam na região Sudeste e 74% foram diagnosticados entre um e quatro anos. Além disso, 47% alegaram ter autismo de nível 1 e 36% disseram estar no nível 2 de suporte.

Assumindo que os indivíduos são expostos a mais de um fator ambiental, foram realizadas análises de bioinformática para encontrar o que os pesquisadores chamaram de “dimensões de vulnerabilidade”. A ideia era investigar quais condições agrupadas poderiam contribuir para a possibilidade de desenvolver autismo. “O maior desafio foi compreender o que cada coisa quer dizer para buscar as ferramentas adequadas na tabulação dos dados”, afirma Helena Brentani, psiquiatra do IPq e coordenadora do Protea – Programa do Transtorno do Espectro Autista.

Patrícia Braga disse ao Jornal da USP que se surpreendeu ao perceber que os fatores ambientais tiveram tamanha relevância. “Como neurobióloga, eu estava muito mais preocupada com o que a mãe bebeu, usou ou comeu, se ela foi infectada com algum vírus ou bactéria, ou seja, coisas mais palpáveis.” 

Os fatores sociais foram definidos como estresses emocionais (incluindo depressão e ansiedade), agressão (física, social ou emocional) e situações causadoras de esgotamento (perda de emprego, morte de uma pessoa próxima, vizinhança violenta), entre outros.

Patrícia Beltrão Braga – Foto: Agência Brasil/Reprodução

“Vimos também que a esquizofrenia, considerada um transtorno psiquiátrico, no nosso trabalho foi direcionada para a dimensão neurológica”, surpreende-se Anita.  

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento com alta prevalência – segundo informações da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), estima-se que, em todo o mundo, uma em cada 160 crianças tenha transtorno do espectro autista. É caracterizado por déficits na comunicação e na interação social, associados a padrões de comportamentos repetitivos e restritos. Indivíduos com autismo apresentam uma vasta heterogeneidade clínica e podem apresentar várias comorbidades associadas, tais como síndromes, transtornos psiquiátricos, neurológicos, questões sensoriais, entre outras.

Embora algumas pessoas com transtorno do espectro autista possam viver de forma independente, outras têm graves incapacidades e necessitam de cuidados e apoio ao longo da vida. O TEA é dividido em três níveis: 1, popularmente conhecido como “leve”, ou seja, quando o indivíduo precisa de pouco suporte; 2, o nível “moderado”, cujo grau de suporte necessário é razoável; e 3, conhecido como autismo severo, quando o indivíduo necessita de muito suporte.

“O TEA continua sendo uma ‘caixa de pandora’: sabemos que a genética é soberana, mas algumas vezes não encontramos uma causa hereditária”, explica Patrícia Braga. “Pegamos aquele baú de coisas que, de acordo com a literatura, poderiam estar relacionadas com o TEA e criamos um questionário para tentar entender quais situações estariam envolvidas ali que poderiam ter ajudado a ter aquele desfecho.”

Dimensões

Anita Brito – Foto: LinkedIn/Reprodução

Anita Brito é formada em Letras e, por ter um filho autista, passou a ter interesse no assunto. Ela, o filho e o marido já ministraram diversas palestras sobre o tema e, durante esses encontros, faziam perguntas despretensiosas para os participantes. “A principal dúvida era: será que quando tem caso de autismo na família, existem pessoas com outros transtornos do neurodesenvolvimento?”, relata a pesquisadora. “Comecei a perceber que muita gente tinha um primo que ficava trancado em casa, uma tia que ninguém falava ou um tio mais tímido, por exemplo.”

Já existem estudos epidemiológicos – e de herdabilidade – que mostraram a relevância dos fatores genéticos no desenvolvimento do TEA. A literatura também já deu indícios de que o ambiente a que a mãe foi exposta durante a gestação (doenças metabólicas e inflamatórias, como diabete, eclâmpsia, ganho de peso, além da poluição, drogas ilícitas, metais pesados, violência) também pode aumentar as chances de desenvolver o transtorno.

A pesquisadora recrutou os pacientes durante as conferências que realizava no Brasil, pelas redes sociais e por e-mail, direcionados a famílias que doaram dentes de leite de crianças autistas para a ONG Projeto Fada do Dente. 

Os primeiros resultados, coletados de acordo com sexo, idade, grau de severidade do TEA e localização geográfica, apontaram para uma frequência de 4 homens para 1 mulher, informação esta que bate com a literatura disponível. A maioria dos respondentes nasceu de 2005 em diante, e os níveis 1 e 2 de autismo foram os mais prevalentes nesta amostra. 

Dos 2.141 respondentes, 359 foram desconsiderados das análises de fatores ambientais. Já para as investigações de histórico familiar (HF), a amostra final foi composta de 904 pessoas. 

O trabalho foi dividido em quatro objetivos principais. O primeiro explorou como os diversos tipos de exposição ambiental (psicopatologias da mãe, exposição a produtos tóxicos na gravidez, fatores sociais, além de estresse e violência) contribuem para o que os pesquisadores chamaram de “dimensões ambientais” do transtorno do espectro autista.

As variáveis relacionadas aos fatores ambientais mostraram que as duas dimensões (genética e ambiental) eram, na verdade, um gradiente de vulnerabilidade e de estresse psicológico. Assim como o status econômico e outros assuntos sociais, mulheres grávidas podem ter experiências insalubres e ambientes inapropriados provocados por problemas financeiros, o que pode aumentar a chance de desenvolver autismo. 

O segundo objetivo investigou se o histórico neurológico e psiquiátrico em uma mesma família poderia ter relação com o autismo. Duas dimensões relacionadas aos pacientes com TEA foram observadas: uma referindo-se mais a transtornos psiquiátricos e a outra mais a doenças neurológicas.

A figura mostra os resultados das análises considerando as variáveis “histórico familiar” e “fatores ambientais” – Foto: BMC Psychiatry/Reprodução

Para quase todos os transtornos do neurodesenvolvimento, o histórico familiar contribuiu para ambas as dimensões. “Curiosamente, a esquizofrenia, que é considerada um transtorno psiquiátrico, ficou mais próxima da dimensão dos transtornos neurológicos”, diz Anita Brito.

A próxima etapa do trabalho juntou todas as variáveis e explorou a contribuição delas para a dimensão de vulnerabilidade ao TEA. Era esperado que as análises mostrassem uma primeira dimensão associada ao histórico familiar psiquiátrico e a segunda, a condições ambientais.

A escolaridade do pai e da mãe foi vista como um dos agentes mais relevantes na relação com o TEA. “Por causa disso, a família pode ter um acompanhamento de pré-natal insatisfatório”, explica Anita. 

Como último objetivo, os cientistas decidiram explorar a relação das dimensões de vulnerabilidade e a formação de subgrupos de TEA. Foi revelado posteriormente que as diferentes composições de suscetibilidade são representadas como um espectro, assim como ocorre hoje. 

Limitações

De acordo com Patrícia Braga, no trabalho não foi possível observar a associação entre o contato biológico (principalmente infecções na gestação) e o autismo. “Como as pessoas respondem a um questionário, temos que contar com a memória delas sobre determinada ocorrência”, explica ela. “Se foi um evento muito significativo há mais chances dela se lembrar, e isso foi um fator limitante para nós.”

Helena Brentani – Foto: IPq/Reprodução

Por isso, acredita a pesquisadora, outros estudos devem ser feitos para apurar esses e outros dados. “Seria interessante seguir um grupo de gestantes por cinco anos, por exemplo, e investigar se existe relação entre infecções e algum transtorno que possa surgir no caminho.”

Helena Brentani concorda que esse tipo de estudo epidemiológico seria essencial para trazer outras informações. “Teríamos como avaliar medidas mais objetivas (como componentes genéticos e possíveis efeitos da exposição ambiental com marcadores biológicos) do que informações provenientes de questionários”.

Mais informações: e-mail [email protected], com Anita Brito; e-mail [email protected], com Patrícia Beltrão Braga

Fonte: Jornal USP

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