PL quer modificar o Código Penal para, entre outras mudanças, tornar ilegal o aborto em casos de estupro acima de 22 semanas, equiparando-o a homicídio simples
Sábado, 15 de junho de 2024
O Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais (Condege), encaminhou para o presidente da Câmara dos Deputados no Congresso Nacional, Artur Lira, uma nota técnica detalhada sobre o Projeto de Lei 1.904/2024 quer modificar o Código Penal para, entre outras mudanças, tornar ilegal o aborto em casos de estupro acima de 22 semanas, equiparando-o a homicídio simples.
Segundo a nota, “a criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas, rompendo com os valores democráticos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos Tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado brasileiro, em flagrante retrocesso à todos os direitos conquistados por mulheres e meninas ao longo da história”. Segue, na integra, a nota técnica:
Assunto: Da ilegalidade, inconstitucionalidade e inconvencionalidade do Projeto de Lei 1.904 de 2024, que modifica o Código Penal Brasileiro para, dentre outras disposições, afastar a excludente de ilicitude prevista no artigo 128, II, nos casos de gravidez resultante de estupro em gestações acima de 22 semanas, equiparando o aborto nesses casos ao crime de homicídio simples.
O Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais- CONDEGE vem apresentar NOTA TÉCNICA sobre o assunto acima qualificado, nos termos a seguir descritos.
1. DO OBJETO DA PRESENTE NOTA TÉCNICA
O Projeto de Lei n.º 1.904/2024, de lavra do Deputado Federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) e assinado por outros 32 parlamentares, pretende acrescer dois parágrafos ao artigo 124, um parágrafo único ao artigo 125, um segundo parágrafo ao artigo 126 e um parágrafo único ao artigo 128, todos do Código Penal Brasileiro, e dá outras providências. Em resumo, o Projeto equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas – quando se presumiria a viabilidade fetal – ao crime de homicídio, previsto no artigo 121, do Código Penal.
O texto do PL está assim disposto:
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Esta Lei altera o Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a fim de acrescer dois parágrafos ao artigo 124, um parágrafo único ao artigo 125, acrescer um segundo parágrafo ao artigo 126, e acrescentar um parágrafo único ao artigo 128 do mesmo diploma legal.
Art.2º O art.124 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar acrescido dos seguintes parágrafos:
“Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: ……………………………………………………………………………….”
“§ 1 Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.
“§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.”
Art. 3º O art.125 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
…………………………………………………………………………….”
Parágrafo único. Quando houver viabilidade fetal, presumida gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.
Art. 4º Renumere-se o parágrafo único do art.126 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, como parágrafo primeiro e acrescente-se o seguinte parágrafo segundo:
“Art. 126 ……………………………………………………..”.
“§ 1º …………………………………………………………….”
“§ 2º Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.
Art. 5º O art.128 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: ……………………………………………………………. …………”
“Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo. ”
Art. 6º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
A primeira alteração proposta é a inserção de um parágrafo aos artigos 124, 125 e 126, todos do Código Penal, com a seguinte redação: “Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código.” Ao texto do atual artigo 128, que prevê uma excludente de punibilidade ao profissional médico (“Não se pune o aborto praticado por médico”) o Projeto pretende inserir parágrafo com a seguinte redação: “Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo.”
Na justificativa apresentada, o proponente destaca o histórico do tratamento dado ao aborto no país ao longo dos anos, menciona normas técnicas expedidas pelo Ministério da Saúde, inclusive já revogadas ou alteradas, realizando interpretação desapartada da redação do próprio Código Penal e do arcabouço legislativo nacional e internacional que rege a temática, e afirma que a indefinição de limite legal de idade gestacional para a realização de interrupção da gestação abriria precedente para a sua realização em qualquer período, o que seria uma afronta ao princípio de preservação da vida. Menciona, ainda, dois casos mais recentes, um do ano de 2020 e um do ano de 2022, nos quais crianças, que contavam com menos de doze anos de idade, precisaram recorrer aos serviços de saúde para realização de aborto decorrente de estupro após 22 semanas de gestação, sem considerar, entretanto, as razões impostas pela realidade fática destas meninas, que levaram o fato a chegar tão tardiamente ao conhecimento do Estado.
Porém, restará demonstrada adiante a inconstitucionalidade, inconvencionalidade, desproporcionalidade e o retrocesso que a aprovação de tal projeto representa, pois a prática do aborto com a idade gestacional avançada, especialmente nos casos que envolvem contexto de violência sexual, somente existem em razão da desproteção estatal, da absoluta incapacidade do Estado em acolher meninas e mulheres vítimas de estupro de forma eficaz, efetiva e célere. A equiparação ao crime de homicídio, que torna a punição da vítima superior a punição do algoz, é absolutamente desproporcional, desumana, revitimizadora e violadora da dignidade humana.
Cumpre destacar, oportunamente, a fala de Débora Diniz, pesquisadora e integrante do GT de Bioética da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco): “Diferente do passado recente, até uns 30 anos atrás, a gente poderia estar discutindo convicções, questões relacionadas a uma ética privada das pessoas. Hoje é um nicho de operação e movimentação de um ecossistema de ódio. E aí se ignora o impacto de saúde pública, se ignora que estamos falando de meninas e mulheres que sofrem violência.”
Ademais da inadequação quanto ao mérito da matéria, há que se registrar, também, a inconstitucionalidade e ilegalidade da forma como o regime de urgência foi votado na sessão de ontem na Câmara Federal, com evidente violação ao processo legislativo que pressupõe o respeito aos princípios da publicidade, moralidade, impessoalidade e eficiência.
A votação relâmpago que ora se impugna não registrou nem verbalmente, nem no painel a matéria que estava sendo levada a votação, não foi devidamente anunciada pelo presidente da Câmara de que se tratava o projeto de lei ao qual estava sendo aplicado o regime de urgência, enfim, se a ideia era conseguir aprovação sem a menor publicidade e discussão da matéria, o intento foi alcançado.
2. DA ANÁLISE JURÍDICA DA QUESTÃO POSTA
Das Diretrizes da Organização Mundial de Saúde e do impacto da criminalização para crianças e adolescentes.
As atuais diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre cuidados no aborto (2022) recomendam a descriminalização total do aborto e desaconselham leis e outras regulamentações que restrinjam ou proíbam o aborto com base, dentre outros, nos limites de idade gestacional.
O documento atual reafirma que o acesso ao aborto seguro é parte crucial da assistência médica, reconhecendo também que a maioria das mortes e complicações ocorrem em regiões mais empobrecidas do mundo.
Aponta que os limites gestacionais não têm base científica e estão ligados ao aumento da mortalidade materna e a maus resultados de saúde. Este documento afirma, dentre outros aspectos, que “embora os métodos de aborto possam variar conforme a idade gestacional, a gravidez pode ser interrompida com segurança independentemente da idade gestacional”.
No mesmo sentido, o documento “Tendências na mortalidade materna 2000-2020”, da Organização das Nações Unidas, ratifica que as mortes maternas estão amplamente concentradas nas áreas mais pobres do mundo, sendo o aborto inseguro uma das principais causas dessas mortes. Assim, apesar do avanço científico atualmente disponível, houve grande retrocesso no cuidado materno e efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
No âmbito regional americano, Informe produzido pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Mecanismo de Seguimiento de la Convención de Belém do Pará (MESECVI) estima que meninas menores de 16 anos correm risco de morte materna quatro vezes maior que o das mulheres entre 20 e 30 anos. O documento enfatiza, ainda, que a gravidez forçada perpetua a violência sexual sofrida e expõe a criança ou a adolescente a novas e reiteradas formas de violência e violação de seus direitos humanos, vulnerabilizando sua integridade pessoal, sua condição de criança ou adolescente e suas possibilidades de futuro.
No Brasil, estima-se que o aborto seja a quarta causa de mortalidade materna, de modo que as restrições impostas ao exercício do direito ao aborto legal contribuem para a realização de abortos inseguros, o que coloca em risco a vida e a saúde de mulheres e meninas.
Apesar de ser um direito garantido expressamente no Código Penal desde 1940, nos casos de gravidez com risco para gestante e gravidez decorrente de violência sexual, e desde 2012, no caso de fetos anencéfalos, após decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 54, o acesso ao aborto no Brasil ainda é burocrático, extremamente desgastante e violento para as mulheres, meninas e pessoas que gestam. Tal realidade se mostra ainda mais preocupante quando estamos diante de pessoas que engravidam em decorrência de estupro e se encontram em situação de acentuada vulnerabilidade social.
Segundo o artigo “Como a normatização sobre o serviço de aborto em gravidez decorrente de estupro afeta sua oferta nos municípios?”, “mesmo mais de 20 anos após a primeira normatização da oferta pelo Sistema Único de Saúde de aborto em gestações decorrentes de estupro, são apenas 55 municípios (de um total 5570 existentes) com Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei cadastrados e com capacidade instalada de realizar o aborto nessas situações. Nesses 55 municípios viviam mais de 1⁄4 da população do sexo feminino em idade fértil do país, indicando a concentração do serviço em municípios de maior porte populacional. Quatro Unidades da Federação não apresentaram qualquer estabelecimento no cenário.”
Nos casos de abortos em gestações avançadas, notadamente acima de 22 semanas, a situação se torna ainda mais dramática, eis que apenas 3 serviços prestam esse atendimento atualmente no Brasil.
Assim, a oferta do aborto em gestações decorrentes de estupro é extremamente limitada no Brasil, restrita a poucos estabelecimentos e concentrada em grandes centros urbanos. A imposição de barreiras geográficas em razão do reduzidíssimo número de serviços, aliada à dificuldade em reconhecer os sinais da gravidez entre as crianças, ao desconhecimento sobre as previsões legais do aborto, à descoberta de diagnósticos de malformações que geralmente são realizados após a primeira metade da gravidez, bem como à imposição de barreiras pelo próprio sistema de saúde (objeção de consciência, exigência de boletim de ocorrência ou autorização judicial, dentre outros) constituem as principais razões para a procura pelo aborto após a 20ª semana de gravidez.
Além disso, desigualdades relacionadas à renda, educação, informação, raça ou etnia e territorialidade aumentam ainda mais os riscos para mulheres e meninas grávidas.
A pesquisa desenvolvida no âmbito do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), junto ao Grupo Curumim – Gestão e Parto e Ipas Brasil, intitulada “BARREIRAS DE ACESSO AO ABORTO LEGAL NA BAHIA NO PERÍODO DA PANDEMIA DA COVID-19: 2020 E 2021” ratifica as principais dificuldades enfrentadas pelas meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestar para acessar o direito ao aborto:
a) falta de informação e pouca visibilidade externa dos serviços, inclusive internamente nas próprias unidades;
b) deficiência da estrutura física dos hospitais, que não contam com áreas específicas para mulheres em situação de abortamento, obrigando-as ao compartilhamento do mesmo espaço com parturientes e seus recém-nascidos, o que representa uma falha no acolhimento adequado;
c) predominância da curetagem como principal método de esvaziamento uterino, em detrimento da Aspiração Manual intrauterina (AMIU) e o aborto farmacológico, ambos métodos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), por serem mais seguros;
d) estabelecimento de limites de tempo gestacional para realização da interrupção a despeito da inexistência de previsão legal neste sentido e da recomendação da OMS de se eliminar o prazo gestacional com vistas a garantir o acesso para meninas, mulheres e pessoas que gestam e estão no segundo trimestre de gestação, bem como aquelas que residem em áreas remotas;
e) persistência de atitudes de recusas de atendimento por parte dos profissionais de saúde e objeção de consciência por médicos, fundamentadas em valores éticos, religiosos, sobretudo em casos de gravidez pós estupro, diante da desconfiança na palavra das vítimas. Tais recusas demonstram despreparo, formação insuficiente, falta de sensibilização e capacitação sobre a atenção ao aborto, causando desnecessário sofrimento às pacientes, em um momento de extrema fragilidade emocional.
Destaca-se também que segundo o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o ano de 2022 alcançou o maior número de registros de estupro e estupro de vulnerável da história, com 74.940 vítimas. A imensa maioria das vítimas (61,4%) tinha no máximo 13 anos, sendo que 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade. 56,8% delas eram pretas ou pardas. A situação é ainda mais dramática se considerarmos a subnotificação desse tipo de crime: conforme estudo publicado em março de 2023 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a subnotificação de casos de estupro seria da ordem de 91,5%, podendo-se estimar que ocorram no Brasil 822 mil estupros por ano, o que equivale a dois por minuto. Mais da metade dessas violências ocorre durante a vida reprodutiva das mulheres – boa parte delas meninas e adolescentes, cujos aparelhos reprodutivos ainda estão em desenvolvimento.
Levantamento recente elaborado pela Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos (RFS), utilizando dados dos Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), ambos do DataSUS, identificou que 252.786 meninas foram mães num período de dez anos no Brasil (2010-2019). De acordo com a pesquisa, uma criança é mãe a cada 20 minutos no Brasil, mais de 70 partos são realizados em meninas por dia e cerca de 20 mil meninas engravidam em decorrência de estupro por ano.
Além das consequências a médio e longo prazo na vida dessas crianças e adolescentes em fase de desenvolvimento, sujeitas – ainda que em teoria – à proteção integral do Estado, a pesquisa da RFS demonstrou que a gestação nos corpos de crianças e adolescentes representa risco às suas vidas.
O relatório da pesquisa demonstrou que, em todos os indicadores de saúde aferidos, os piores dados correspondiam às gestações nos corpos das meninas quando comparados com as gestações nas demais faixas etárias: i. a razão de mortalidade materna para as meninas mães foi de 62,57 por 100 mil nascidos vivos, em comparação aos 57,27 na média de todas as faixas etárias; ii. os óbitos fetais representaram uma taxa de 13,64 natimortos por mil nascidos vivos, enquanto a taxa geral foi de 10,72; iii. maior prematuridade fetal na razão de 16,8% comparada com 13,2%, em outras faixas etárias; iv. elevadas taxas de cesarianas na razão de 38% das meninas mães, quando comparada à recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de cerca de 15% de cesarianas; v. baixo peso dos fetos com coeficiente de 13%, comparado com 9,65% nas demais faixas etárias.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) emitiu nota informativa, em junho de 2022, por meio da qual também conclui que:
Os limites estabelecidos em manuais ou normas técnicas do Ministério da Saúde são infralegais e devem ser superados a partir das evidências científicas e recomendações das sociedades da especialidade. A FEBRASGO, em seus documentos técnicos, como o Protocolo nº 69 “Interrupções da gravidez com fundamento e amparo legais”, a exemplo das diretrizes da FIGO e a Organização Mundial da Saúde, não limita a assistência a meninas e mulheres em situação de aborto legal à idade gestacional. Há, inclusive, orientações sobre a dose do tratamento adequado para o aborto induzido em idades gestacionais mais avançadas;
Destaque-se que a referida nota reforça o alerta para o fato de que crianças e adolescentes apresentam riscos mais elevados de complicações obstétricas durante a gravidez em razão da condição de imaturidade biológica (tais como anemia, pré-eclâmpsia e eclâmpsia, diabetes gestacional, parto prematuro e partos distócicos), citando estudos que atestam que as taxas de mortalidade entre gestantes menores de 14 anos podem ser até 5 vezes maiores do que a de mulheres adultas entre 20-24 anos.
Na verdade, o que se extrai das evidências científicas é que, mesmo nas idades gestacionais mais avançadas, a realização do aborto será mais segura que a realização do parto, consoante ensinam os médicos Helena Paro e Cristião Rosas em obra referenciada pela pesquisadora e promotora de justiça Mirella Monteiro:
Apesar dos riscos relacionados ao aborto aumentarem com a idade gestacional, o risco de morte entre abortos acima de 21 semanas de gravidez é bastante incomum (8,9 óbitos a cada 100.000 procedimentos) e representa ¼ do risco de óbito relacionado à gravidez no termo (BARTLETT et al., 2004; HARRIS; GROSSMAN, 2011). Ou seja, o aborto, mesmo nas idades gestacionais mais avançadas, é marcadamente mais seguro que o parto.
Assim, a criminalização pretendida é particularmente grave porque afeta especialmente as meninas e mulheres mais vulneráveis, principalmente social e economicamente. Meninas vítimas de violência sexual são as que demoram mais a identificar e conseguir pedir socorro em situações de violência, a perceber uma gravidez decorrente de violência e a chegar aos serviços de saúde. É a elas- principalmente- que será vedado o exercício do direito previsto em lei com a proibição do procedimento, com consequências graves à sua saúde e à sua vida.
Muito pouco se avançou em relação ao debate do aborto no Brasil, sendo que PL sub examine visa retroceder, ignorando a conjuntura brasileira e as vidas que serão verdadeiramente impactadas.
Das Violações ao Sistema Internacional de Direitos Humanos
O Brasil é signatário do mais importante tratado internacional de promoção dos direitos das mulheres, a Convenção das Nações Unidas para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), de 1979.
O documento traz diretrizes para que os Estados-parte promovam a igualdade entre homens e mulheres e eliminem todas as formas de discriminação contra as mulheres em suas legislações, serviços e políticas públicas, inclusive na esfera dos cuidados médicos e do acesso à saúde (art. 12). Nesse aspecto, a CEDAW determina aos Estados-parte que forneçam às mulheres serviços apropriados relacionados à gravidez, parto e período pós-natal, assim como nutrição adequada durante a gravidez e o aleitamento.
Especificando ainda mais as obrigações dos Estados no que tange à saúde das mulheres, a Recomendação n. 24 do Comitê CEDAW aponta que deve ser assegurado às mulheres nos serviços de saúde treinamento sensível ao gênero, acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva e respeito aos seus direitos humanos, incluindo autonomia, privacidade, confidencialidade, consentimento informado e escolha. De acordo com a recomendação, o desrespeito à confidencialidade pode dissuadir as mulheres de procurarem aconselhamento e tratamento, o que pode afetar negativamente a sua saúde e bem-estar, principalmente em casos relacionados a doenças do trato genital, contracepção, aborto e violência sexual.
A Recomendação nº 35 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) trata a gravidez forçada, a criminalização do aborto e a negação ou o atraso no aborto seguro e de cuidados pós-aborto como formas de violência de gênero e de violações à saúde sexual e reprodutiva das mulheres, equiparando-as à tortura.
Não se olvide, ainda, que muito recentemente, em 03 de junho de 2024, o Comitê CEDAW das Nações Unidas – que monitora o cumprimento das obrigações decorrentes da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – recomendou ao Brasil a descriminalização do aborto em todos os casos, garantindo a mulheres e meninas o acesso ao aborto seguro e aos serviços de pós-abortamento, a fim de assegurar a plena realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia de fazer escolhas livres sobre seus direitos sexuais e reprodutivos.
O Projeto viola, ainda, outros Tratados de Direitos Humanos incorporados pelo Estado Brasileiro, dentre os quais, destaca-se: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).
No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Convenção de Belém do Pará define o que se entende por violência contra a mulher em seus artigos 1 e 2:
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica. a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras turmas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b) ocorrida na comunidade e comedida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
Da análise da referida Convenção, convém ressaltar a previsão no que tange à violência tolerada pelo Estado (violência institucional), sobretudo aquela decorrente do mau funcionamento do sistema de saúde pública em razão de suas omissões estruturais. Dessa dimensão, é possível concluir que a inação do Poder Público, manifestada, por exemplo, pelo descumprimento sistemático da lei que garante a interrupção da gestação em caso de estupro, configura grave violação de direitos humanos das mulheres.
Frise-se ainda, que, em situação análoga, a Corte Interamericana de Direitos Humanos aplicou a Convenção de Belém do Pará condenando a Bolívia no caso Senhora I.V. vs. Bolívia, em 2016, estabelecendo importante precedente que também passa a ser violado pelo Projeto de Lei 1904/2004:
243. A Corte reconhece que a liberdade e a autonomia das mulheres em matéria de saúde sexual e reprodutiva tem sido historicamente limitada, restringida ou anulada com base em estereótipos de gênero negativos e prejudiciais(…). Isso se deve a que social e culturalmente os homens tenham assumido um papel preponderante na adoção de decisões sobre o corpo das mulheres e que as mulheres são vistas como o ser reprodutivo por excelência. (…)
246. (…) A Corte reconheceu que determinados grupos de mulheres sofrem discriminação ao longo da sua vida com base em mais de um fator combinado com o seu gênero, o qual aumenta o risco de sofrer atos de violência e outras violações dos seus direitos humanos (…)
250. A Convenção de Belém do Pará estabeleceu parâmetros para identificar quando um ato constitui violência e define no seu artigo 1° que “deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. Da mesma forma, a Corte afirmou que a violência baseada no sexo, “abrange atos que infringem danos ou sofrimentos de caráter física, mental ou sexual, ameaças de cometer esses atos, coação e outras formas de privação da liberdade. (…)
262. (…) a comunidade internacional foi reconhecendo de forma progressiva que a tortura e outros tratamentos inumanos também podem acontecer em outros contextos de custódia, domínio ou controle nos quais a vítima está indefesa, tais como no âmbito dos serviços de saúde e especificamente da saúde reprodutiva. Nessa linha, a Corte destaca o papel transcendental que ocupa a discriminação ao analisar a adequação das violações dos direitos humanos das mulheres à figura da tortura e os maus tratos desde uma perspectiva de gênero.
Por fim, destaca-se o caso submetido ao Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas em 2020 e julgado em maio de 2023, conhecido como “Camila vs. Peru”. Na ocasião, o Comitê reconheceu a responsabilidade do Estado peruano em situação na qual uma adolescente de 13 anos foi submetida à gestação forçada após violência sexual, ignorando-se todos os riscos à saúde física e mental decorrentes da manutenção da gravidez indesejada.
Extrai-se do documento:
8.5 El Comité considera que, en el caso de niñas embarazadas, debe valorarse la afectación especial y diferenciada de la salud física y mental que supone el embarazo en la niñez, así como el riesgo particularmente importante para la vida de las niñas —derivado de posibles complicaciones en el embarazo y el parto— y la afectación potencialmente grave en su desarrollo y proyecto de vida. Dicha afectación de la salud y vida vendrá determinada en función de la edad y madurez física y psicológica de la niña gestante, su sistema de apoyo familiar y comunitario, así como de otros factores que puedan repercutir en su salud mental, incluidos el hecho de ser víctima de violación sexual, incesto, o factores de vulnerabilidad socioeconómicos y culturales […].
8.7 Teniendo en consideración los hechos descritos anteriormente y, en particular, el riesgo que el embarazo conllevaba para la vida y la salud de la autora, por razón de su edad (13 años al momento de los hechos), el Comité considera que tanto el hecho de no haber facilitado a la autora información sobre los servicios de interrupción voluntaria del embarazo como no haberle proporcionado el acceso efectivo a dichos servicios la expusieron a un riesgo real, personal y previsible de mortalidad, que la forzó a llevar el embarazo a término, con riesgos claros y previsibles para su vida, desarrollo y salud, y que desencadenó una emergencia obstétrica. A ello se sumó su condición de víctima de violación sexual por parte de su padre, lo cual agravó aún más las consecuencias del embarazo sobre su salud mental. El Comité concluye que los hechos descritos revelan una violación de los derechos de la autora reconocidos en los artículos 6 y 24 de la Convención. Asimismo, la falta de consideración a las reiteradas solicitudes de la autora de poner término al embarazo violó su derecho a que se tuviera debidamente en cuenta su opinión en un asunto que la afectaba tan directamente, como es el embarazo, en violación del artículo 12, párrafo 1, de la Convención, leído conjuntamente con los artículos 6 y 24.
8.8 El Comité toma nota de la afirmación de la autora sobre las afectaciones que la violencia sexual, el embarazo forzado y la judicialización del aborto espontáneo tuvieron sobre su salud mental, como fue reflejado en los episodios de llanto descontrolado e ideas suicidas durante sus visitas prenatales. A pesar de ello, y del diagnóstico de depresión infantil y estrés postraumático, la autora no recibió atención psicológica adecuada y las sesiones de psicoterapia, que tuvieron lugar solamente tras el aborto espontáneo, fueron interrumpidas tras tres sesiones, a pesar de que la autora requería tratamiento continuado.
[…].
9. Como consecuencia, el Estado parte debe otorgar una reparación efectiva a la autora por las violaciones sufridas, que incluya una indemnización adecuada por el daño sufrido y un apoyo para recomponer su vida, entre otros aspectos para proseguir sus estudios. Asimismo, el Estado parte debe facilitar a la autora el acceso a servicios de salud mental. Finalmente, el Estado parte tiene la obligación de evitar que se cometan violaciones similares en el futuro. En este sentido, el Estado parte debe: a) despenalizar el aborto en todos los supuestos de embarazo infantil; b) asegurar el acceso a servicios de aborto seguro y cuidados postaborto para las niñas gestantes, en particular en los casos de riesgo a la vida y salud de la madre, violación o incesto; c) modificar la normativa reguladora del acceso al aborto terapéutico (Guía Técnica) para prever su aplicación específica en las niñas y asegurar, en particular, la debida consideración al especial riesgo para la salud y la vida que entraña el embarazo infantil; d) establecer un recurso claro y expedito en caso de incumplimiento del procedimiento de la Guía Técnica relativo al acceso a la interrupción voluntaria del embarazo, y asegurar la rendición de cuentas por dicho incumplimiento; e) dar instrucciones claras y brindar capacitación al personal de salud y judicial, incluida la Fiscalía, en los derechos amparados por la Convención y sobre la aplicación e interpretación de la legislación relativa al aborto terapéutico; f) proporcionar una educación adecuada en materia de salud sexual y reproductiva, y accesible a todos los niños y niñas; g) asegurar la disponibilidad y el acceso efectivo de los niños y las niñas a la información y los servicios de salud sexual y reproductiva, incluida la información y acceso a métodos anticonceptivos, y h) establecer un mecanismo intersectorial para evitar la retraumatización del niño o niña víctima de abuso sexual infantil y asegurar intervenciones terapéuticas rápidas y apropiadas.
Com efeito, é evidente que a aprovação do projeto de lei em questão, na medida em que dificulta o acesso de mulheres e, principalmente, de meninas à interrupção legal da gestação, pode levar à responsabilização internacional do Brasil, por descumprimento das obrigações assumidas perante a comunidade internacional.
Das Violações aos Princípios Constitucionais da dignidade da pessoa Humana, da vedação à tortura ou ao tratamento desumano ou degradante, da razoabilidade e da vedação ao retrocesso
Como já exaustivamente mencionado, a violência sexual causa nas mulheres e meninas abalo psicológico considerável e dano à saúde mental, de modo que exigir que uma mulher gere filho/a fruto da violência sexual, desconsiderando a sua autonomia, é conduta atentatória à dignidade humana, sendo a manutenção de uma gravidez forçada nessa hipótese prática assemelhada à tortura ou ao tratamento desumano ou degradante, além de afronta ao direito de planejamento familiar (art. 5º, caput, e incisos I, III; art. 226, § 7º, todos da Constituição Federal).
Além disso, ao igualar ao homicídio simples o aborto praticado após a 22ª semana de gestação, a pena a ser aplicada será a de reclusão de 06 a 20 anos, conforme o art. 121 do Código Penal.
O atual Código Penal tipifica o crime de aborto em seus artigos 124 a 128, estabelecendo penas que variam entre 1 a 3 anos, para a mulher que provoca um aborto em si mesma ou permite que outra pessoa realize o procedimento. Quando não há consentimento da gestante, a pena varia de 3 a 10 anos. Já com o consentimento da gestante, a pena varia de 1 a 4 anos. Para os casos em que a gestante sofre lesão corporal de natureza grave, a pena é duplicada, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
Ocorre que, com a alteração desses artigos, que equipara o crime de aborto ao crime de homicídio simples, a pena passará a ser de 06 a 20 anos. Assim, o aborto sai de uma pena de 1 a 3 anos ou de 1 a 4 anos para uma pena de 06 a 20 anos de reclusão.
As vítimas de estupro, dessa forma, estarão sujeitas a sofrer sanções mais severas do que a aplicada para o estuprador, já que a pena para o crime de estupro é de 6 a 10 anos, restando evidente a violação ao princípio da proporcionalidade/razoabilidade.
Há evidente desproporção também em relação à pena cominada ao crime de infanticídio (artigo 123, CP – pena de 02 a 06 anos). Ora, sob o ponto de vista do bem jurídico, o aborto consentido não pode ter pena superior àquela cominada para o infanticídio, em que a vítima nasceu com vida.
Para exemplificar ainda mais a ausência de proporcionalidade entre a modificação legislativa que se pretende e todo o sistema jurídico penal já existente é de se registrar que ao agressor que provoca lesões corporais que resultam em aborto a pena varia de 02 a 08 anos( artigo 129, §2º, V, CP).
Tais constatações evidenciam a absoluta desproporcionalidade e falta de razoabilidade da proposição legislativa em questão, além de perversas misoginia e racismo.
Corroborando este entendimento, vale destacar o Caso Manuela vs. El Salvador, julgado no ano de 2021 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, determinado que El Salvador corrigisse a pena aplicada e que, enquanto isso não ocorresse, os juízes realizassem o controle de convencionalidade e se recusassem a aplicar leis inconvencionais. Tal contexto assemelha-se ao conteúdo do Projeto de Lei em comento, visto que pretende aplicar pena desproporcional ao crime de aborto, o que o torna, para além de destoante da realidade vivenciada por centenas de meninas, mulheres e pessoas que gestam no país, inconstitucional e inconvencional, conforme esmiuçadamete aduzido adiante.
Cabe mencionar também a severa violação ao Princípio da Vedação ao Retrocesso Social, que já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em algumas oportunidades, tendo como referência o julgamento do ARE 639.337, relatado pelo ministro Celso de Mello, cuja ementa se transcreve de forma parcial:
“o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. (…). Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar — mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.”
Sendo assim, em consequência desse princípio, o Estado, após reconhecer direitos, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.
Neste ponto, cumpre mencionar, o Caso Beatriz e outros vs. El Salvador, apresentado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). O caso Beatriz em relação a El Salvador, refere-se à proibição absoluta da interrupção voluntária da gravidez e à responsabilidade internacional do Estado pelas violações dos direitos de Beatriz e sua família devido à proibição absoluta da interrupção voluntária da gravidez, que a impediu de ter acesso a uma interrupção legal e em tempo oportuno e a deixou em uma situação de grave risco à vida, à saúde e à integridade física, e levou à inviabilidade da vida extrauterina do feto. Em seu relatório de mérito, a CIDH considerou, entre outros aspectos, que os danos e riscos aos direitos à vida, à saúde, à integridade física e à privacidade de Beatriz como consequência da falta de acesso à interrupção da gravidez, atingiram a máxima severidade no caso e estabeleceu que a criminalização do aborto, em particular a sua proibição em todas as circunstâncias e sem exceção, pode encorajar as mulheres a recorrer a abortos ilegais e inseguros, colocando em risco sua saúde física e mental e até mesmo sua própria vida. Finalmente, a Comissão concluiu que, dado que o Código Penal anterior de El Salvador tinha uma disposição que excluía da responsabilidade criminal os abortos “terapêuticos, eugênicos e éticos”, a adoção do Código Penal atual que proíbe o aborto em todas as circunstâncias constituiu uma violação da obrigação de abster-se de adotar medidas regressivas, criando um obstáculo legal a um serviço de saúde disponível no país sob certas circunstâncias.
Tais precedentes são importantes, pois embora sejam casos ocorridos em El Salvador, estabelecem estándares para todo sistema Interamericano, do qual o Brasil faz parte.
Do direito à saúde, autonomia e do necessário acesso igualitário aos serviços de saúde (arts. 6º, caput, e art. 196, caput, CF/88; Lei nº 8080/90)
A saúde é direito de todos, que deve ser garantido de forma universal e igualitária pelo Estado (artigo 196 CRFB/88) por meio do Sistema Público de Saúde (artigo 198, II, CRFB/88).
Convém pontuar que a saúde, de acordo com a OMS, é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças ou enfermidades. Existem condições de saúde que são agravadas pela gravidez, incluindo-se a “angústia psicológica ou o sofrimento mental causado, por exemplo, por atos sexuais coagidos ou forçados […]”. Quando a gestante é criança ou adolescente, o seu desenvolvimento sadio pode ser comprometido em decorrência do estupro e da gestação vivenciada.
A Lei Federal nº 8.080/1990, conhecida como a Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (SUS), regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde. O artigo 2° deste diploma normativo estabelece que a saúde é um direito fundamental do ser humano e que é um dever do Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, garantindo a todas as pessoas o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. O artigo 7º, por sua vez, prevê as diretrizes das ações e dos serviços públicos de saúde e dos serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS, estabelecendo como uma de suas diretrizes, no seu inciso III, a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral.
No que tange ao atendimento em saúde de mulheres e adolescentes em situação de violência doméstica e sexual, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde prevê a necessidade de organização de redes integradas de atenção às mulheres, ações de prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e ações preventivas em relação às violências.
A Lei do Minuto Seguinte (Lei nº 12.845/13) dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral às pessoas em situação de violência sexual, o qual deve ser oferecido, de modo imediato, em todas as unidades de saúde da rede do SUS.
O Decreto nº 7958/2013 traz diretrizes para o atendimento de vítimas de violência sexual pelas(os) profissionais da segurança pública e de saúde, dentre elas o atendimento humanizado, respeitados os princípios da dignidade da pessoa, da não discriminação, do sigilo e da privacidade; a disponibilização de espaço de escuta qualificado e privacidade durante o atendimento; e a informação prévia à vítima, que deve compreender cada etapa do atendimento e ter respeitada sua decisão sobre a realização de qualquer procedimento.
No mesmo sentido, a portaria que trata dos direitos e deveres das usuárias e usuários de saúde (Portaria nº 1820/09) estabelece que toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação (art. 4º).
A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde enfatiza que o atendimento às vítimas de violência sexual deve observar os princípios fundamentais da bioética, quais sejam, (a) a autonomia, entendida como o direito da mulher de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida; (b) a beneficência, ou a obrigação ética de se maximizar o benefício e minimizar o dano; (c) a não maleficência, pois a ação deve sempre causar o menor prejuízo à paciente, reduzindo os efeitos adversos ou indesejáveis; e (d) a justiça ou imparcialidade da(o) profissional de saúde, que deve evitar que aspectos sociais, culturais, religiosos, morais ou outros interfiram na sua relação com a mulher.
Referido documento conceitua “atenção humanizada” como “Promover o acolhimento, a informação, a orientação e o suporte emocional no atendimento favorece a atenção humanizada por meio da interação da equipe com a clientela, o que determina as percepções desta quanto à qualidade da assistência, melhora da relação profissional de saúde/usuária, aumenta a capacidade de resposta do serviço e o grau de satisfação das mulheres com o serviço prestado, assim como influência na decisão pela busca de um futuro atendimento. Nos casos de abortamento por estupro, o profissional deverá atuar como facilitador do processo de tomada de decisão, respeitando-a.”
Portanto, é dever do Estado, por meio do SUS, promover o acesso à saúde de forma universal, integral e igualitária; evitar a revitimização e garantir o mais amplo acesso das vítimas de violência sexual aos serviços de interrupção legal da gestação; e garantir o respeito à autonomia da pessoa atendida, o que engloba a liberdade da escolha de medicamentos e terapêuticas disponíveis.
3. DA CONCLUSÃO
Contrariando o cenário fático e jurídico acima demonstrado, a Câmara Federal aprovou no dia 12 de junho do ano em curso, o regime de urgência para o Projeto de Lei 1.904/2024, o que permite que tal projeto seja votado diretamente no Plenário, sem ser submetido antes às respectivas comissões temáticas da Câmara, bem como sem possibilitar a participação da sociedade civil e de Instituições Públicas nos debates e discussões acerca desta temática. Desta forma, diante de todo o exposto nesta Nota Técnica, bem como diante da inconvencionalidade, inconstitucionalidade e ilegalidade do Projeto de Lei 1.904/2024, referido projeto deve ser arquivado, haja vista que a criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas, rompendo com os valores democráticos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos Tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado brasileiro, em flagrante retrocesso à todos os direitos conquistados por mulheres e meninas ao longo da história.
Oleno Inácio de Matos
Defensor Público Geral do Estado de Roraima
Presidente do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais- CONDEGE