Domingo, 2 de abril de 2023
Se você está usando um software da Microsoft para ler esta reportagem, saiba que o criador da empresa, Bill Gates, declarou ter uma variação do autismo, conhecida como síndrome de Asperger. Caso aprecie as inovações tecnológicas da Tesla ou da SpaceX, vale lembrar que Elon Musk também revelou ter o transtorno do espectro autista (TEA). Se é fã de cinema, talvez goste dos filmes dirigidos por Tim Burton ou estrelados por Anthony Hopkins — ambos autistas.
Gates, Musk, Burton, Hopkins e mais 70 milhões de indivíduos no mundo — aproximadamente 2 milhões no Brasil, segundo o Conselho Nacional de Saúde — têm autismo ou alguma das suas variações, e grande parte deles leva a vida de modo normal, quando não de maneira extraordinária.
Na verdade, o que mais prejudica a normalidade da vida das pessoas autistas são os sucessivos episódios de preconceito que elas ainda enfrentam diariamente. Para diminuir a discriminação, espalhar conhecimentos e estimular o diagnóstico precoce, as Nações Unidas escolheram 2 de abril para ser o Dia Mundial de Conscientização do Autismo.
Em 2023, o tema da campanha é “mais informação, menos preconceito”. Unindo-se aos esforços para ampliar o debate sobre a questão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vai iluminar a sua fachada de azul na noite deste domingo — a exemplo de muitos outros prédios ao redor do mundo.
Ao ler, nesta reportagem especial, as histórias de pessoas que são autistas (ou têm uma relação especial com autistas), você vai perceber que elas podem estar ao seu lado no trabalho, fazer parte do seu círculo social ou, até mesmo, julgar o seu processo na Justiça.
O juiz que se descobriu autista e se encaixou no mundo
Luís Ricardo Fulgoni, juiz na cidade de Bela Vista do Paraíso, no norte do Paraná, foi diagnosticado com TEA enquanto estudava para a magistratura, em meio à pandemia da Covid-19.
De origem humilde, Luís Ricardo nasceu na periferia de Volta Redonda (RJ) e estudou em escola pública. Na infância, tinha dificuldade de se relacionar com o “mundo exterior”. Foi com a ajuda da irmã mais nova que conseguiu melhorar seu grau de interação com as pessoas e até a aprender tarefas aparentemente simples, como amarrar os cadarços, aos 16 anos.
Apesar das dificuldades, tornou-se servidor do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) aos 18 anos. No entanto, uma tragédia foi decisiva para mudar sua percepção do mundo: sua irmã foi vítima de feminicídio, e ele sentiu, naquele momento, não apenas a dor da perda, mas também o descaso da burocracia estatal.
Aquele momento difícil virou força para seguir estudando, levando-o a se tornar oficial de justiça e, depois, a entrar na magistratura.
Diagnóstico proporcionou autoconhecimento e aceitação
Quando estudava para se tornar juiz, a quebra de rotina causada pela pandemia fez Luís Ricardo ter crises que, para ele, estariam associadas a uma possível depressão. Ao fazer uma avaliação neuropsicológica, entretanto, ele recebeu o diagnóstico de TEA.
“O diagnóstico mudou minha percepção sobre mim mesmo. Por mais que eu tivesse uma boa compreensão de como deveria lidar profissionalmente, sempre me senti um estranho no mundo. Quando veio esse resultado, passei a me entender e a perceber como eu me encaixava no mundo”, revelou.
Segundo ele, suas atividades profissionais são exercidas da mesma forma que por qualquer juiz, mantendo-se as adaptações que são peculiares de cada autista. No seu caso, ele contou que evita manter contatos por telefone, pois isso lhe dá um cansaço fora do comum. Por causa de algumas dificuldades como essa, rejeita qualquer tipo de mistificação referente ao autismo e enfatiza que suas conquistas são fruto de dedicação pessoal.
“As coisas que tenho de bom não são do autismo, são minhas. Ele é parte indissociável de mim, mas ele não me resume. Faço coisas boas porque pessoas fazem coisas boas”, afirmou.
Ministro leva aprendizado para o dia a dia da corte
Definindo-se como um voluntário da causa do autismo, o ministro Mauro Campbell Marques considera a história do juiz Luís Ricardo Fulgoni emblemática. “Ele é uma pessoa vitoriosa por completo, não por ser juiz, mas pelo fato de ter rompido paradigmas tão difíceis. Todos os pais e familiares que possuem alguém com o transtorno na família querem isso ordinariamente e não conseguem”, declarou.
TSE
Mauro Campbell é tio de Maria Clara, uma adolescente de 16 anos que transformou a vida de toda a família quando foi diagnosticada com TEA, ainda na infância. De acordo com o ministro, a convivência com a sobrinha passou a influenciar suas atividades na corte, seja por meio de um olhar mais atento ao que acontece na sociedade, seja em pequenos detalhes, como o hábito de utilizar a cor azul em todas as decisões que são publicadas no dia 2 de cada mês — uma referência ao Dia Mundial de Conscientização do Autismo.
Políticas públicas evoluíram, mas ainda há a melhorar
Ao abordar as ações estatais dedicadas às pessoas autistas, o ministro destacou que houve um avanço significativo nos últimos anos, mas ainda faltam políticas direcionadas à população de baixa renda, especialmente nas escolas públicas.
“É necessário que o Estado seja mais cioso com a política pública de aprimoramento dos mediadores. É um direito do autista ter aquele profissional na escola da rede pública, ao seu lado, para que ele consiga se inserir nisso”, alertou.
O ministro também ressaltou a importância da Lei 13.977/2020, que instituiu a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea). “Ela facilita pelo fato de ser um documento público dizendo que seu filho é autista, mas a lei trouxe um prazo muito exíguo, de cinco anos somente”, observou. Para Campbell, o prazo de validade do documento poderia ser de, pelo menos, dez anos.
Decisões do STJ reconhecem direitos às pessoas autistas
Segundo o ministro, a jurisprudência do STJ também tem buscado acolher os temas de importância para as pessoas autistas, a exemplo de precedentes recentes que definiram não ser possível que os planos de saúde imponham limitações de sessões com profissionais como fonoaudiólogos, psicólogos e fisioterapeutas. É o caso, por exemplo, do REsp 1.901.869, julgado pela 3ª Turma.
Mesmo no julgamento da 2ª Seção sobre a natureza da relação de procedimentos e eventos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Mauro Campbell considerou que houve uma preocupação específica do colegiado com as necessidades das pessoas com TEA. Em um dos casos analisados naquele julgamento — o EREsp 1.889.704, em que o autor do processo era autista —, a seção não só reforçou que não há limitação ao número de sessões terapêuticas previstas na lista, mas também enfatizou que as psicoterapias pelo método ABA devem ser contempladas pelos planos de saúde.
“Nos termos do que foi julgado pela Segunda Seção, os planos de saúde fizeram as correções para que o acesso e a manutenção dos tratamentos fossem facilitados”, destacou.
Interesse descoberto na infância virou trabalho para servidor
Servidor da assessoria de Inteligência Artificial do STJ desde janeiro de 2000, Luiz Anísio Vieira Batitucci recebeu o diagnóstico de TEA em 2021. A novidade, entretanto, não representou nenhuma mudança significativa em sua rotina de trabalho. Até aquele momento, ele sabia que tinha transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), o que já exigia alguns cuidados, mas a descoberta do autismo esclareceu por que ele desenvolveu, ao longo da vida, um forte interesse por tecnologia.
“Se não estou trabalhando presencialmente ou de forma remota com nossos projetos do tribunal, estou estudando e buscando aperfeiçoamento para eles. Tecnologia foi um dos meus hiperfocos desde os 9 anos, somado à psicologia, à análise do comportamento e ao autismo, hoje”, explicou.
O hiperfoco citado pelo servidor é uma característica de pessoas autistas que representa um interesse intenso e altamente concentrado em um ou alguns assuntos, podendo durar a vida toda ou mudar com o passar do tempo.
Sociedade deve se preparar para dar o suporte
Luiz Anísio destacou, ainda, a necessidade de iniciativas de conscientização para que a população aprenda as melhores formas de interação com autistas, sem julgamentos ou tentativas equivocadas de interpretar comportamentos não verbais diferentes daqueles aos quais todos estão habituados.
“Cada autista é único, em suas dificuldades, seus níveis de suporte e suas habilidades, como todas as pessoas são únicas. É importante entender que qualquer pessoa pode precisar de adaptação para diversas dificuldades temporárias ou permanentes, e a sociedade precisa estar preparada para ter esse olhar e dar esse suporte”, concluiu.
Conselheiro do CNJ utiliza aprendizado com o filho
Na vida de Mário Goulart Maia, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o tema do autismo bateu à porta com o nascimento do seu filho, há quase sete anos. Após um início de questionamentos e incertezas, o conselheiro e a família superaram vários desafios, mas ainda enxergam na luta contra o preconceito — especialmente aquele velado e silencioso — uma das questões mais sensíveis e importantes para a comunidade autista.
“Surgem com todas essas questões apenas duas possibilidades: vitimizar-se ou encarar e lutar. Eu optei pela segunda e não teria como ser diferente”, afirma.
Segundo o conselheiro, o ordenamento jurídico brasileiro já prevê uma série de direitos para os autistas (enquadrados como pessoas com deficiência para efeitos legais), mas ainda há problemas na aplicação desses direitos — seja por desconhecimento, seja por dificuldades no acesso à Justiça, seja por outras barreiras.
Na opinião de Mário Maia, para contribuir com a superação desses problemas, o Judiciário precisa continuar garantindo direitos já previstos em lei e, quando for necessário, adotar o que define de “postura transgressora”, no sentido de romper com pensamentos anacrônicos sobre o assunto.
“Esse tema faz parte da minha vida e, desde o meu primeiro dia no CNJ, luto e dou voz a quem literalmente não a tem. Tenho proferido palestras para divulgar informações e ampliar a conscientização da sociedade em geral e, principalmente, dos atores do sistema de Justiça, a respeito da inclusão, da necessidade de melhor compreensão e de tolerância em aceitar pessoas e grupos diferentes de nós, pois o que nos torna indivíduos é justamente a capacidade de ser único”, enfatiza.
Coordenadoria do STJ lançou selo de acessibilidade
A inclusão de pessoas com deficiência é um dos objetivos estratégicos do tribunal, previsto no Plano STJ 2021-2026. Desde 2018, entretanto, a corte já tem um setor, a Coordenadoria de Acessibilidade e Inclusão (Acin), que se dedica a garantir direitos e a promover ações que atendam às necessidades dos autistas e das pessoas com deficiência em geral (a Lei 12.764/2021, visando resguardar direitos de pessoas com TEA, definiu que são pessoas com deficiência “para todos os efeitos legais”).
Entre as competências da unidade, estão o mapeamento de produtos, serviços e ambientes físicos e virtuais do tribunal que precisam de acessibilidade; o zelo pelo cumprimento da legislação que garante inclusão social e equidade no tratamento das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, e a condução de ações voltadas à promoção de acessibilidade.
Em 2022, por meio da Acin, foram promovidas iniciativas como o lançamento do Selo de Acessibilidade e Inclusão, o curso de Direitos dos Servidores com Deficiência e a Semana de Promoção da Acessibilidade do STJ.
Além disso, a gestão do STJ está comprometida com a Agenda 2030 das Nações Unidas (ONU) e alinha seus programas e suas ações aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) — e, neste caso, ao ODS 10, que trata da redução das desigualdades. Com informações da assessoria do STJ.
Fonte: Conjur