Se permanecer limitado pelo financismo, o resgate da Reforma Sanitária nunca se completará. Diante de um governo bem intencionado, mas contraditório e limitado, cabe aos movimentos sociais imaginar – e ir além dos limites que nos querem impor
por Jairnilson Paim – Domingo, 8 de dezembro de 2024
Com os anúncios de cortes e mudanças tributárias feitos pelo ministro Fernando Haddad, na semana passada, as disputas em torno da política econômica do país tomam as ruas, manchetes e gabinetes. Inevitavelmente, elas se cruzam com os debates em torno dos rumos do SUS. Há paralisia no governo, frente à crescente hegemonia do financismo multinacional e a aceitação de amarras extremamente limitantes ao orçamento da saúde pública. O risco é de afastá-la ainda mais dos grandes objetivos da reforma sanitária, de “um SUS do tamanho do povo brasileiro”, a despeito das boas intenções do projeto de reconstrução.
O texto que publicamos hoje foi produzido a partir do debate “O SUS e a conjuntura nacional: qual é a nossa agenda?”, promovido como mesa final do 5º Congresso de Política, Planejamento e Gestão de Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) – realizado em Fortaleza (CE) entre os dias 3 e 6 de novembro de 2024. Embora as novas mudanças do governo ainda não tivessem sido anunciadas naquele momento, o debate já se aproximava de muitas maneiras dessas questões.
A intervenção do sanitarista, professor e fundador do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, Jairnilson Paim, propõe instigantes caminhos para a compreensão e o enfrentamento do problema, no sentido das linhas acima. Sua fala, editada e revisada por Outra Saúde junto do autor, pode ser lida a seguir. Bom proveito! (G. L. & G. A.)
Há algum tempo, em discussões como a de hoje sobre os desafios do SUS, busco chamar atenção para qual é o SUS que tanto discutimos. Parto da seguinte disjuntiva: queremos o SUS legal, ou formal, da Constituição Federal de 1988; ou o SUS real – fazendo um trocadilho entre realidade e o real da moeda.
Esse último tem como referência não a saúde das pessoas, mas a saúde “da moeda”. Ele é um SUS real também no sentido de estar submetido ao clientelismo político, ao uso da saúde como moeda de troca, algo que faz muito parte da nossa experiência política no Brasil. Das duas, uma: ou é um SUS com um financiamento minguado, exclusivamente voltado para uma intervenção focalizada para os pobres – no que depender das elites brasileiras, para os pobres, qualquer coisa serve. Ou é o SUS democrático, elaborado pelo movimento da Reforma Sanitária Brasileira.
Uma parte desse SUS democrático, da Reforma, foi absorvida e incorporada pela Constituição e pelas leis posteriores, mas não podemos esquecer que outra parte ficou muito distante. De alguma forma, esse SUS que foi formulado e organizado na 8ª Conferência Nacional de Saúde não foi completamente resgatado do ponto de vista legal. Considerando que o tema que nos provoca aqui hoje é qual é a nossa agenda, é necessário pensar sobre isso.
Nos últimos tempos, sobretudo de 2016 para cá, tenho chamado isso que nós temos de arremedo de SUS ou simulacro de SUS – tem cabelos de SUS, nariz de SUS, boca de SUS, barba de SUS, mas não é SUS, e engana muitas pessoas. Mais recentemente, tenho chamado também de SUS reduzido, tão reduzido que teve dificuldades de enfrentar a situação da pandemia do covid-19. Mesmo encolhido, vale lembrar que ele conseguiu mobilizar forças e movimentos sociais distintos, como a Frente Pela Vida e determinados governadores do Nordeste – que criaram diversas possibilidades para se confrontar com as políticas do Ministério da Saúde do governo Bolsonaro. Ainda assim, é um SUS reduzido.
Hoje, nós estamos vislumbrando a possibilidade de um SUS em reconstrução. É uma reconstrução problemática, como vamos examinar um pouco mais adiante, mas ao menos hoje podemos dizer que os dirigentes do Ministério da Saúde, a equipe da pasta e as forças aliadas têm um compromisso histórico com o Sistema Único de Saúde.
Esse é um ponto sobre o qual nós também precisamos refletir, porque o Governo tem uma agenda na área da Saúde, mas o movimento da reforma sanitária também tem. Como estamos em um congresso da Abrasco, possivelmente também precisamos explicitar mais qual é a agenda que apresentamos aqui. Para isso, nós precisamos trazer alguns conceitos teóricos, com o objetivo de conseguir examinar a realidade. Precisamos discutir a conjuntura – isto é, pôr em consideração um conjunto de fatos da política, da economia, da comunicação, etc. –, mas também ir além daquilo que é mais visível.
Elementos conjunturais: que SUS temos hoje?
Ao olhar para tudo isso, nós precisamos entender quais são os determinantes conjunturais e os determinantes estruturais dessa situação. Nesse esforço, nosso desafio é sempre ir além daquilo que é aparente. Para apresentar esse método, eu tenho uma tática de não ficar discutindo epistemologia com os alunos. Eu apelo para os poetas, e nesse caso, para um poeta que é o príncipe do samba, o Paulinho da Viola: ele diz que “a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber”.
Agora, vou trazer aqui alguns dos elementos do que se vê – mas, friso mais uma vez, também há os que não vemos claramente. Em especial quando as ferramentas que usamos não são suficientes para ir além do que os epistemólogos chamam de fenomênico, como diz o Karel Kosik em sua Dialética do Concreto.
Sendo muito sintético, podemos dizer que um sistema de saúde – e particularmente o SUS – tem uma dimensão visível, que é a sua infraestrutura: os hospitais, as unidades de saúde e as pessoas que trabalham nele. Existe também o ângulo do financiamento, que é o grande debate colocado no momento. Há ainda a organização do sistema – hoje, chegamos a ouvir que, sem nenhuma regionalização, não é possível trabalhar com o SUS. É uma reflexão possível. Existe também a questão da gestão, que cada vez mais é uma gestão privatizada, apesar de na aparência ser do SUS.
Nós temos também o modelo de atenção, que é o que mais interessa às pessoas que usam o SUS e são atendidas por ele. Esse é um espaço em que a população tem muito o que nos dizer. Se por um lado nós comemoramos várias e imensas vitórias dos SUS nesses últimos 30 anos, nós também ainda temos muitos problemas, como quando a população se sente humilhada em determinados tipos de atenção ofertados pelo SUS. Nós desenvolvemos um certo modelo de “desatenção”, que se expressa em uma alta taxa de maus-tratos. Se queremos ter o apoio necessário para avançar em relação a esse sistema, nós efetivamente precisamos prestar atenção a isso.
Determinantes estruturais: oligopolização e financeirização
Todos esses elementos que citei traduzem aquilo que eu chamei de determinantes conjunturais. Já na economia, podemos encontrar aquilo que nós da área da Saúde muitas vezes não conhecemos – os determinantes estruturais.
Por exemplo: recentemente, foi divulgado que, quando consideradas as operações financeiras e o controle acionário, as empresas de saúde ficam em terceiro lugar entre os maiores conglomerados do Brasil, só perdendo para a energia e as finanças. São as chamadas “Sete Irmãs da Saúde”, grandes oligopólios em que vários bilionários do país têm uma participação acionária expressiva.
Esse é um dado objetivo que nos dá a dimensão do peso político e econômico que o setor privado adquiriu nos últimos tempos. Com as fusões e aquisições, vão sendo formados oligopólios, e o CADE [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] praticamente se omite.
Tudo isso não está acontecendo somente no “mercado”. Isso se introduz no âmbito do SUS, com o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (ProadiSUS). Nele, muitas das atividades que deveriam ser feitas pelo sistema público estão sendo terceirizadas para outras empresas, que têm muitas aproximações com as “sete irmãs”.
Existe também uma outra dimensão da determinação estrutural, que não é só uma palavra, é uma categoria de análise: a financeirização. Ela não é apenas um fenômeno do capitalismo contemporâneo. Essa categoria nos ajuda a entender um conjunto de intervenções feitas nas mais amplas esferas sociais: na velhice, no cuidado, na habitação, na educação superior, na agricultura, no câmbio e, claro, na saúde.
Todas essas dimensões estão sendo invadidas por algo que nos parece invisível, mas que é preciso trazer para a discussão. Um esforço importante está em um livro recentemente lançado que se chama Financeirização, coordenado pela professora Lena Lavinas e com contribuições da Lígia Bahia, do Carlos Ocké-Reis, entre outros, que vai mapeando essas dimensões.
Que governo temos? Como agir frente a ele?
Ontem, nós falávamos aqui do Mario Testa, que acaba de falecer. Ele foi uma grande referência para todos nós nesse esforço de analisar conjunturas, foi capaz de identificar papeis do Estado que nem sempre nós colocávamos em foco. Nós sabemos que o Estado capitalista tem como missão central garantir a acumulação do capital. Para isso, ele tenta conter a luta de classes e as tensões sociais, seja por aparelhos repressivos ou ideológicos. Isso já se sabe há algum tempo.
O Mário, em um texto que não foi publicado, aplicou determinados tipos de construções do seu pensamento estratégico para entender diferentes conjunturas da Argentina. Seja na conjuntura da ditadura assassina, como ele chamava, seja no Raul Alfonsín ou nos Kirchner. Ele examina como é que, em cada uma dessas situações, os papéis do Estado se manifestavam. Um deles era de articulação da classe dominante. Outro era a desarticulação da classe dominada. Hoje, esse fracionamento todo das classes subalternas por diferentes projetos é um ponto para a gente se preocupar. Um terceiro papel do Estado era o de garantir as condições para a reprodução social, e aí se expressam políticas que influenciam na vida das pessoas, nos direitos sociais: habitação, educação, saúde, ambiente, etc.
Em uma conversa com ele, eu estava criticando o governo Lula. E ele dizia: mas, Jairnilson, no governo Lula tem desarticulação da classe dominada? Eu tive dificuldade de dizer que dentro do governo Lula isso acontecesse. Então, refleti: tem espaço, portanto, para desenvolver processos políticos. Acho que aquilo que nós falávamos sobre a primeira década do século atual pode hoje ser importante. Quer dizer, o governo Lula, mesmo com essa frente tão complexa que foi forjada, não tem como pretensão desarticular as classes dominadas. Agora, as classes dominadas ou as classes subalternas, o povo, precisa, de alguma forma, se articular para poder, inclusive, ajudar o Lula nesse enfrentamento.
São conceitos que, aparentemente, podem ser muito abstratos, mas são fundamentais para uma análise de conjuntura. Nós vamos ter, portanto, uma expressão muito importante, que é a disputa do orçamento. A gente pensa que é uma briga de Educação com Saúde, com BPC (Benefício de Prestação Continuada). Mas é uma expressão da luta de classes. Essa disputa dos fundos públicos explicita, portanto, que quem mais paga imposto no Brasil — que são as pessoas mais pobres, do ponto de vista da tributação, que é extremamente regressiva — quando esses recursos chegam ao Estado, não voltam para ela.
Quase 50% do que se arrecada, e que vai depois para o orçamento, é transferido ao mercado financeiro: a dívida remunera aqueles que investiram no nosso fracasso, do ponto de vista da administração pública. O que acontece, então, nesse processo? Uma precarização cada vez maior dos empregos e do trabalho.
Hoje se gera dinheiro e capital sem passar necessariamente pela produção industrial. O povo, a classe trabalhadora, para esse capital financeiro, é descartável, é dispensável. Uma das funções da saúde, que era contribuir com a reprodução da força de trabalho, é secundária para este modelo de capitalismo contemporâneo.
Para nós da Saúde Coletiva, isso é central. Esses porta-vozes do capital que lutam pela revisão dos pisos constitucionais têm ressonância no Congresso, contam com a ambiguidade do Judiciário. Uma parte apoia o Lula e outra parte, vamos dizer assim, está muito preocupada com a “fada” da confiança, com a “fada” da credibilidade. Quer dizer, é esta coisa fantasmagórica que vai explicitar qual é a política do Copom (Comitê de Política Monetária). Quais são as evidências que o Copom leva em consideração na hora de definir a taxa de juros? São três ou quatro declarações dessa turma que vão, de alguma forma, bulir com toda a vida da gente.
Hoje, nós da Saúde estamos com uma agenda que, em parte, converge com a do Governo Federal. Lula assumiu uma carta de compromisso no dia 5 de agosto de 2022, na Conferência Nacional, Livre, Popular e Democrática, com todos nós. Mas tem uma outra agenda que filtrou uma parte significativa dessa, a agenda do grupo de transição. E mais uma, que já é a do governo, com os dados de realidade — a que está em curso. Nós temos, sim, um compromisso com a agenda da reconstrução, mas nós não podemos, presidente, rebaixar as nossas demandas. Não podemos rebaixar um conjunto de princípios e de orientações que transcendem governos. Esse movimento histórico que construiu o SUS em uma parte da Reforma Sanitária tem uma agenda que vai além deste governo.
Esse é um ponto delicado. Ainda que pessoalmente muitos de nós apoiemos o governo, as nossas instituições, as nossas entidades, o nosso movimento vão além dele. Isso não significa oposição a Lula, mas sim uma forma indireta de fortalecê-lo.
A agenda dos privatistas
E tem ainda uma outra agenda, que é a do setor privado. Todos hoje “defendem o SUS”, vocês já notaram? Alguns até dizem que precisamos de uma integração maior do SUS público com o privado ou talvez uma reforma do SUS, mas todos “defendem o sistema de saúde”. É o caso de setores privados e filantrópico-privados, eminentemente financeirizados, como alguns que eu citei em relação ao Proadi-SUS.
Nós não podemos nos enganar com esse canto da sereia. Estamos diante de uma feroz competição política entre o público e o privado por recursos materiais e simbólicos. Forças políticas de centro-direita e empresários do setor de assistência à saúde, sem apoio dos movimentos sociais, oferecem a ampliação de seus mercados como um projeto para o sistema de saúde. A crise política e econômica tem sido entendida por empresários e por outros segmentos sociais como exclusivamente de natureza fiscal. A estratégia integracionista, público-privada, deriva desse frisson especulativo, como ressalta a professora Lígia Bahia.
Porém, as atividades de empresas, planos de saúde, hospitais, farmácias, drogarias e outros ramos de negócios setoriais não resolvem problemas e necessidades de saúde e nem produzem impacto em termos de evolução tecnológica e produtiva. Este alerta revela um olhar mais aprofundado sobre essa articulação público-privada. Não são dois mundos separados, eles se articulam, se reproduzem e nos enganam, para que nós pensemos que estão fazendo SUS – aquilo parece, mas não é SUS.
Reconstrução é insuficiente: projeto que queremos é outro
Em resumo: o governo Lula 3 na Saúde, apesar de todos os esforços para retomar o diálogo, a vacinação, o Farmácia Popular, o programa Mais Médicos, a Rede Cegonha, a redução de filas e assim por diante, faz uma tentativa de voltar ao que tudo isso era há 10 anos. No entanto, o que tínhamos também não era bom. A reconstrução é inteligível, mas é insuficiente.
Acredito que a Abrasco tem um papel fundamental de apontar a ausência de um projeto abrangente, uma fragilidade no desenvolvimento das políticas de saúde, uma baixa regulação da saúde suplementar, enfim, a preservação do processo de privatização.
Nós temos, hoje, pelo menos três projetos em disputa. Primeiro, o projeto mercantilista, que está aí de alguma forma sintetizado. Depois, o projeto da reforma sanitária brasileira, que está quase que submerso — e que está na hora de a gente revisitar. Por fim, aquele que eu chamaria de projeto racionalizador, que tenta realizar alguns programas com esse orçamento restrito que existe hoje. Isso pode satisfazer um governo, mas não pode satisfazer a sociedade brasileira.
Nós teremos, sim, que fazer uma defesa intransigente do SUS — mas um SUS digno. Um SUS do tamanho do povo brasileiro, um SUS com qualidade, que enfrenta efetivamente uma ideologia da fração financeira, da classe capitalista que tem acesso à mídia comercial.
Nós temos que examinar este determinante estrutural, que eu tentei esboçar com o nome de financeirização – o que não significa determinismo econômico. Há sempre um espaço da política, dos sujeitos da História, da práxis política — que vai desde a práxis reformista até mesmo à práxis revolucionária, por que não?
A nossa agenda é a radicalização da reforma sanitária brasileira. A nossa agenda é a refundação do SUS, efetivamente democrático, público, descentralizado, participativo, integral. A nossa agenda tem, sim, uma convergência com a reconstrução do governo Lula. Mas a nossa agenda tem uma preocupação central de reduzir as desigualdades, de defender o direito à saúde, de brigar pela democracia e pela emancipação das pessoas, dos sujeitos e da nossa humanidade — que também está ameaçada com o resultado das eleições dos Estados Unidos.
Muito obrigado.
Fonte: outras palavras / Foto: Roan Nascimento/Abrasco