As tecnologias digitais para a saúde, nas mãos do capital, utilizam-se dos dados para enriquecer os gestores da ordem. Não é papel de um governo de esquerda geri-los. Mas sim apropriar-se deles para que fortaleçam o SUS, com base em seus princípios
Por Leandro Modolo, em sua coluna no Outra Saúde
Um passo atrás. É preciso reforçar a pertinência – política e econômica – das cooperativas de plataforma como meio tático de enfrentamento à plataformização corporativa pelo qual passa o Estado brasileiro e o SUS.
Para Trebor Scholz, um dos pioneiros da ideia de cooperativas de plataforma, a plataformização corporativa tem linhagem em Reagan e Thatcher, “que, na década de 1980, (…) limaram a crença na habilidade dos sindicados de assistir os trabalhadorxs; enfraqueceram a crença na possibilidade da solidariedade e criaram uma moldura em que a reestruturação do trabalho, os cortes nas garantias de bem-estar e o descasamento da produtividade com a renda se tornaram mais plausíveis.” Diagnóstico que, depois de 2008, tornou-se ainda mais evidente. Hoje, as Big Techs dominaram a internet e, como nunca, a transformaram em um grande mercadão, recrudesceram os processos de financeirização, aceleraram a mercantilização e privatização das infraestruturas e serviços públicos, exponenciaram as formas de subjetividade neoliberal e, com frequência, fazem o serviço de caixa de ressonância do neofascismo.
Não deveria ser papel da esquerda, portanto, gerir a plataformização corporativa do Estado e seus serviços públicos. Na verdade, parafraseando o saudoso Milton Santos, deveríamos lutar por uma outra plataformização.
É neste sentido que as cooperativas de plataformas tem sido encaradas por diversos ativistas e intelectuais mundo afora. A ideia que a subjaz é a união dos princípios do cooperativismo com o potencial inédito das tecnologias digitais, adaptando os desenhos institucionais às finalidades e escopos dos diversos setores da economia, inclusive da saúde. O ponto decisivo é aproveitar as condições de possibilidade trazidas pela intermediação digital das relações de oferta e demanda, para criarmos arranjos alternativos à concentração e acúmulo de poder econômico e político no mundo corporativo; fortalecendo mecanismos de democracia direta e planejamento econômico. E assim, quem sabe, reconquistar corações e mentes para um projeto nacional pós-capitalista.
Um dos grandes desafios das experiências socialistas do século passado girou em torno da viabilidade, ou não, de construir um modelo econômico político que fosse capaz de combinar planejamento e democracia. Afeito a isso, Evgeny Morozov vem tentando recuperar a importância e urgência do tema. Para ele o “planejamento automatizado” com base nos “circuitos de retroalimentação digital” – a partir do big data, da IA, passando pelos mini-computadores de uso pessoal – abriu condições de possibilidades inéditas para os cidadãos participarem direta e democraticamente do controle e coordenação social de produtos e serviços públicos, garantido planejamento sem silenciamento democrático.
Sabemos que no campo do plenajemento em saúde, o nome Carlos Matus é muito importante. Pois, curiosamente ele também foi – ainda que de modo relativamente crítico – uma das mentes que contribuiu nos esforços do ciberneticista Stafforfd Beer para o Projeto Synco ou Cybersyn sob a direção de Salvador Allende e Fernando Flores. A imagem-objetivo do socialismo cibernético de Allende era, a grosso modo, casar o conhecimento da cibernética e a sinergia dos saberes e informações vindas desde baixo dos trabalhadores e trabalhadoras; tudo materializado em algo como um sistema nervoso eletrônico com unidades interconectadas, que deveriam se comportar de forma coordenada e, ao mesmo tempo, descentralizada, antiburocrática e com participação popular.
É verdade que o cenário era bem diferente do atual, e os sonhos pós-capitalistas não atravessavam apenas corações e mentes de uns poucos políticos e militantes, era também o ethos de cientistas, acadêmicos, médicas, sanitaristas… O certo, contudo, é que já se intuía, vale dizer, que a combinação de planificação e democracia requereriam tecnologias de vanguarda. A ironia foi que quem kackeou, a seu favor, as intenções do “socialismo digital” foram as corporações capitalistas.
Hoje, Morozov e tanto outros – Aaron Benanav, Leigh Phillips, Michael Rozworski, Wendy Liu etc – tem registrado que o modus operandi de empresas como Amazon, Walmart, Apple e cia é, justamente, pautado por planejamento econômico mediante cálculos das infindáveis variáveis e informações das cadeias produtivas e comerciais que correm pela internet, incluindo àquelas referentes às demandas individuais – com seus desejos e interesses. A questão decisiva, como diz a engenheira de software Wendy Liu, é que as plataformas, esse ecossistema digital com seus circuitos de retroalimentação cibernético, estão trancadas dentro de capitais monopolistas, gerando lucro para pouquíssimos, às custas de servir ao bem público; concentrando poder nas mãos de magnatas do Vale do Silício, às custas da obstrução dos seus potenciais democráticos. Então, “é preciso liberar essa tecnologia dos usos para os quais ela está sendo usada atualmente”. É preciso uma outra plataformização.
Plataformizar o Estado e os serviços públicos por meio de cooperativas de natureza popular é, portanto, a abertura para criarmos e fortalecermos condições de possibilidades de colocar o povo em cooperação mediante as plataformas digitais e com vistas o fortalecimento do bem comum. Pois, me parece, que esta é uma das grandes novidades – verdadeiramente “disruptiva” – neste contexto todo: nunca antes na história foi possível a participação social de milhões de cidadãos de modo descentralizado e, ao mesmo tempo, coordenado em torno de planos, projetos, programações de serviços e produtos públicos. Usando os termos e o escopo sanitarista podemos dizer que nunca antes foi tão possível equalizar “demanda espontânea” e “oferta organizada”,“programação”.
Hoje, no Brasil, por exemplo, dezenas de milhões de pessoas utilizam smartphones para monitorarem seu ciclo menstrual, os chamados menstruapps ou “app para menstruação”. Em geral, esses serviços de saúde digital – alguns já aprovados como métodos contraceptivos pelo FDA nos EUA, por exemplo – fazem a vez de atenção primária, fornecendo relatórios periódicos e customizados de saúde a partir dos dados inseridos. Tais relatórios apresentam previsibilidades sobre o ciclo menstrual, oferecem espaços para as usuárias trocarem saberes e experiências, bem como encaminham orientações, conselhos ou sugestões de comportamentos e condutas, seja no tocante às práticas sexuais ou tratamentos médicos e psicológicos, seja voltado para alimentação ou uso de produtos dermatológicos ou de beleza, entre outros.
Como diz a feminista e médica da família Thaís Machado Dias, não podemos desconsiderar o potencial de autocuidado dessas tecnologias, mesmo porque trata-se de uma inovação contraceptiva que permite diminuir, ou mesmo eliminar, o uso das tecnologias hormonais. Algo muito útil e saudável. Mas é preciso um uso crítico das mesmas, pois infelizmente há muito mais em jogo nelas do que as finalidades propagandeadas às usuárias.
Como todo serviço de saúde móvel, embora sejam serviços digitais de assistência individual, devemos ter claro que eles não operam a despeito de “ações coletivas”, na verdade eles dependem delas. Podemos dizer que eles também fazem a vez da “vigilância em saúde” – ao menos partes dela. Acontece que neles o processo contínuo e sistemático de coleta, consolidação, análise de dados da população compõem o chamado “capitalismo de vigilância” ou “colonialismo de dados”. Os dados são coletados e/ou espoliados para fins de publicidade direcionada e manipulação comportamental, e também para alimentarem mercados globais de dados pessoais, sendo utilizados por terceiros e com finalidades que as usuárias do serviço não tem conhecimento – e tampouco dão consentimento.
O que vemos, então, é que nesses serviços de saúde digital ofertados pelas plataformas corporativas, as “ações coletivas” são ações de marketing dedicadas à segmentação de públicos alvos e perfilização de consumidoras, tudo para otimizar a venda de produtos ou outros serviços comerciais, bem como para produzir “insights” e inovações privadas. Dito de outra maneira, neles a demanda espontânea torna-se matéria-prima sob a forma de dados a partir da qual são produzidos os big datas e são treinados as IA para o planejamento estratégico dos negócios corporativos.
Neste momento milhões de usuárias brasileiras já participam diariamente com seus dados pessoais na construção corporativa de ecossistema digitais e seus circuitos de retroalimentação. Dito de outro modo, parte da “vigilância em saúde” e da “atenção primária” voltada à mulher já está plataformizada pelas corporações mediante seus menstruapps. A questão é que isso poderia ser realizado pelo SUS, tais circuitos de retroalimentação poderiam ser integrados aos serviços públicos de assistência e vigilância em saúde pública. Os programas para a saúde da mulher poderiam ter seus próprios menstruapps.
Na verdade, sob aportes públicos e debaixo do guarda-chuva do SUS, os circuitos de retroalimentação cibernética poderiam ser hackeados para outro fim que não a acumulação privada de riqueza; poderiam ser hackeados para deixarem de ser operados por capitais do Norte Global com pouca ou nenhuma experiência com a saúde da nossa população; poderiam ser um contraponto à vigilância intrusiva e espoliadora das Big Techs e seus compromissos patriarcais; poderiam substituir os serviços digitais de assistência à saúde sem responsabilidade efetiva com nosso povo, nossas vidas e territórios…
E, sobretudo, poderiam estar sob a gestão das próprias mulheres brasileiras, profissionais da saúde e usuárias, que em suas cooperativas de plataforma dariam voz para suas históricas experiências e lutas, com suas demandas, necessidades, desejos, saberes e tecnologias próprias. Meenstruapps cooperativados poderiam ser uma alternativa não apenas econômica, ligada à cadeia de inovação e desenvolvimento de novas tecnologias do “complexo econômico-industrial da saúde 4.0”, e como contraponto às femtechs na fonte de renda e criação de novos postos de trabalho – incidindo diretamente no cenário que muitas ainda convivem com a pobreza menstrual. E funcionando como espaços de formação, tanto para o letramento e literacia digital quanto para qualificação de mão-de-obra. Mas, também, na linha do design participativo, as cooperativadas poderiam criar e gerir tecnologias a partir de e com a cara de seus territórios; funcionando como mecanismos descentralizados de controle social capazes de auditar e resguardar os seus direitos no contexto da “transformação digital da saúde” – o direito, por exemplo, de elas mesmas decidirem sobre o que e como querem que os seus corpos, saberes e experiências participem ou não da saúde digital. Fortalecendo os serviços públicos de saúde digital com justiça, equidade, participação, transparência, explicabilidade e soberania.
Afinal, as novas tecnologias são feitos para extrair valor e fazer enriquecer alguns pouquíssimos, mantendo intactos os gestores da ordem; ou para circular os valores de uso entre as pessoas, enriquecer o bem comum e fortalecer a participação social? A “transformação digital da saúde” é para atualizar a ordem dominante, ou para fortalecer, definitivamente, o SUS público, gratuito, laico e universal?
As cooperativas de plataforma, o socialismo digital, não são sugestões para que pareça fácil a resolução dos nossos problemas. Mas para que, além de alguns políticos e militantes, também cientistas, acadêmicos, médicas, sanitaristas… voltem a ousar futuros radicalmente diferentes para o nosso país.
Fonte: Outra Saúde / Créditos: Platform Cooperativism Consortium