Correios são símbolo da nacionalidade brasileira

Brasil


Osvaldo Bertolino – Quinta , 3 de setembro de 2020

A ameaça de Bolsonaro de privatizar a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ETC) afronta um dos pilares da história do Brasil. 

O novo presidente dos Correios, Floriano Peixoto Neto, afirmou, na posse, que sua missão à frente da estatal será de resgatar a “credibilidade” da empresa. Ele não falou nada sobre a privatização, mas sabe-se que esse é o objetivo do presidente Jair Bolsonaro. Floriano Peixoto Neto assumiu o posto no lugar de Juarez Cunha, que teve a demissão anunciada pelo presidente sob a “acusação” de ter comportamento de “sindicalista” ao se manifestar contrário à privatização.

Os Correios antes eram, até 1969, apenas o Departamento de Correios e Telégrafos (DCT), vinculado ao Ministério da Viação e Obras Públicas. Em pouco tempo transformou-se em uma das mais importantes empresas estatais brasileiras. Estima-se que do total de seis milhões de pessoas que trabalham na atividade de correios no mundo — a maior força de trabalho dentre todos os setores da economia mundial —, aproximadamente 110 mil trabalham na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ETC). 

Com seu papel estratégico para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país, a empresa é uma instituição que conquistou respeito e admiração, e universalizou os serviços — a inauguração da agência de Rio do Fogo (RN), em Janeiro de 2001, concretizou o cobertura de 100% dos 5.561 municípios brasileiros. Nenhuma outra instituição jamais registrou algo parecido em termos de capilaridade. 

A empresa possui uma estrutura complexa. As lojas da ECT são a célula básica de todo o sistema postal brasileiro — por intermédio delas são atendidos os diversos segmentos da sociedade em suas variadas necessidades e demandas. A rede de lojas está configurada de duas formas: lojas próprias e lojas de terceiros (franqueada ou contratada para prestação de serviços). O contrato pode ser feito com entidades públicas ou privadas — dependendo do interesse da ECT.

Transformação profunda

A sede da empresa fica em Brasília, onde está o centro administrativo nacional, denominado de Administração Central (AC), congregando todo o sistema. A ECT conta ainda com 24 Diretorias Regionais (DRs), com sede nas capitais dos principais Estados brasileiros, que têm a finalidade de coordenar as ações e diretrizes da AC. 

Embora as DRs apresentem estruturas diferenciadas nacionalmente — pelo tamanho ou grau de complexidade das operações em cada região —, elas executam atividades ou funções semelhantes. E estão divididas em regiões operacionais (Reops), com base em fatores geográficos, número de lojas coordenadas, grau de complexidade das operações ou definição estratégica. Às Reops cabe a tarefa de coordenar as atividades das lojas.

A ECT foi criada — exatamente no dia 20 de março de 1969 — como empresa pública vinculada ao Ministério das Comunicações e promoveu uma transformação profunda no modelo de gestão do setor postal brasileiro, tornando-o uma marca reconhecida como um verdadeiro patrimônio nacional. Dentre as medidas adotadas com o surgimento da ECT, destacam-se o Código de Endereçamento Postal (CEP), a criação de centros de triagem eletrônica e a instalação de uma rede postal noturna. 

A partir da adoção de novos modelos de gestão, centrados basicamente no controle rígido da força de trabalho, a ECT conquistou sua autossuficiência financeira em 1977, transformando os correios em atividade superavitária no Brasil. Nos anos que se seguiram à criação da empresa, vários serviços foram incorporados ao seu portfólio. Hoje, a ECT trabalha com mais de cem produtos e serviços — muitos deles pela internet. E já figurou entre as 50 empresas mais respeitadas do mundo e entre as cinco mais confiável do Brasil, segundo ranking elaborado pelo Reputation Institute, organização com sede em New York. 

Trabalho duro

As quatro brasileiras que aparecem antes da ECT são: Petrobras (20ª posição), Gerdau (24ª), Usiminas (40ª) e Vale do Rio Doce (43ª). A pesquisa sobre reputação corporativa, realizada pelo terceiro ano consecutivo, foi elaborada entre fevereiro e março de 2008 em seis continentes, abrangendo 27 países, mais de mil empresas e 60 mil usuários — totalizando 175 mil avaliações. A ECT obteve 76,64 pontos na pesquisa, constando, assim, na lista das 200 empresas de melhor reputação no mundo, divulgada pela revista norte-americana Forbes.

Foram avaliadas as 600 maiores empresas do mundo, com base na receita anual e no Produto Interno Bruto (PIB) dos países. No total, elas representam 24 ramos diferentes de negócios. A ECT foi a única empresa de correios a constar na lista Top 50, superando a FedEx norte-americana, que ficou em 52º lugar no ranking de respeitabilidade. Entre as empresas de logística, a ECT alcançou a segunda posição.

Os trabalhadores da empresa, conhecidos como “ecetistas”, distribuem diariamente cartas, jornais, revistas, livros didáticos e encomendas variadas para pessoas físicas e jurídicas em todo o território nacional. A empresa passou por um radical processo de inovação tecnológica, com a implantação do “Programa de Recuperação e Ampliação do Sistema de Telecomunicações e do Sistema Postal (Paste)” no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), mas as condições de trabalho pioraram.

Antes, o trabalho dos ecetistas já era duro. A categoria enfrentava os efeitos de uma “organização racional do trabalho” que reforçou o controle autoritário da direção da empresa sobre os trabalhadores e impôs um brutal arrocho salarial. A partir de 1985, com o país já respirando os ares da “Nova República”, houve a eclosão de várias greves. Era um processo estancado pelo autoritarismo da ditadura militar.

Empresa francesa

Na década de 1970, a ECT recebeu quatro missões de técnicos franceses com a determinação de fazer mudanças radicais — o processo de “modernização” elevou o controle do trabalho pela gerência e implantou uma hierarquia taylorista-fordista rígida, imposta pelos militares que ocuparam os postos-chaves da empresa. A escolha pelos técnicos franceses deveu-se ao fato de a França possuir um dos melhores correios do mundo, com forte tradição no domínio das técnicas postais.

A primeira missão trabalhou na ECT entre novembro de 1971 e março de 1972, fazendo um diagnóstico da situação — segundo o relatório anual da ECT de 1972. Entre março de 1973 e outubro de 1974, a segunda missão implantou a hierarquia taylorista-fordista, em São Paulo e no Rio de Janeiro, que ficou conhecido como “Projeto Eco” — denominação para classificar a ressonância, ou eco, que a filosofia implantada deveria provocar.

A terceira missão, que trabalhou na ECT entre junho de 1975 e julho de 1976, ampliou o “Projeto Eco” para a região Sul. E a quarta missão, que trabalhou até 1977, aplicou as normas de um contrato assinado com a empresa francesa “Sociedade de Estudos e Realizações Postais (Sofrepost)” com o objetivo de consolidar a organização implantada — principalmente na área de atendimento, as agências —, fortalecer os sistemas de diretorias regionais em São Paulo e no Rio de Janeiro e estender geograficamente o novo sistema de administração baseado no “Projeto Eco”.

Operação tartaruga

O resultado deste processo e a política de arrocho salarial que castigou duramente a categoria na virada da década de 1970 para a década de 1980 levaram à eclosão das greves de 1985. Nas paralisações de março e maio daquele ano, mais de três mil ecetistas foram demitidos pelo então poderoso ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães (ACM). A categoria ainda não tinha permissão para se organizar em sindicatos e era representada por associações — a criação de sindicatos só foi possível em 1989, após a promulgação da Constituição de 1988.

Os jornais da época mostram que a prática do governo ao lidar com as greves dos ecetistas era a da ameaça antecipada — ACM dizia que sua única resposta em caso de paralisação era a demissão em massa. Na operação tartaruga que antecedeu a greve de outubro de 1985, ele mandou demitir 275 trabalhadores. A ECT entrou em decadência. Além da queda dos investimentos, uma tendência iniciada no começo da década de 1980, as demissões em massa tiraram da empresa muitos profissionais capacitados e levaram a ECT a criar um sistema de substituição rápida e praticamente sem treinamentos.

A ECT — e principalmente os ecstistas — sofreu um intenso assédio quando as privatizações eram o norte do governo na “era FHC” e está longe de cumprir aquele papel designado aos correios quando o Brasil iniciou a sua fase de integração nacional mais efetiva após a revolução de 1930 liderada por Getúlio Vargas. Antes, o assunto já ocupava lugar de destaque na estrutura de poder.

Primeira página

A história postal brasileira confunde-se com a própria história do país. No dia 2 de maio de 1500, quando a esquadra cabralina se preparava para deixar a então “Ilha de Vera Cruz” rumo às Índias, seguia para Portugal o que seria o primeiro navio-correio do Brasil com as missivas e as amostras do que havia sido recolhido na nova terra. Na gaveta de Gaspar de Lemos, iam, entre outras, as mensagens do escrivão Pero Vaz de Caminha e do médico e cosmógrafo da corte lusitana, João Faras (Mestre João), ao rei D. Manuel I.

A primeira, de 27 páginas, narrando a viagem de 42 dias, descreveu a nova terra e seus habitantes, observando as suas potencialidades e recomendando a sua exploração; a segunda, de duas páginas, relatou as medições náuticas da viagem, a descrição do céu austral e a localização da descoberta — ambas as cartas reencontradas, nos séculos XVIII e XIX, nos arquivos da Torre do Tombo em Lisboa, uma prova cabal de que daqui foram expedidas e de que lá chegaram.

Assim inaugurava-se, simbolicamente, a primeira página na história dos correios no Brasil. Muitos anos iriam se passar, entretanto, até que o país tivesse um serviço postal regular e eficiente. Isso porque, durante o período colonial, os próprios portugueses não dispunham de um sistema postal organizado, recorrendo frequentemente aos vizinhos europeus para o transporte de correspondências.

A Coroa portuguesa chegou a estabelecer no Brasil o posto de Correio-Mor do Reino, mas foi preciso a chegada da família real, em 1808, para que a atividade pudesse se desenvolver. Em novembro daquele mesmo ano foi instituída a primeira legislação postal do Brasil — o Regulamento Provisional da Administração Geral dos Correios da Coroa e Província do Rio de Janeiro. Com os anos, os serviços começaram a avançar para o interior do país e linhas regulares foram criadas para as demais províncias, começando por São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Mato Grosso.

Legião de carteiros

A Declaração de Independência é outro marco simbólico na história dos correios: foi das mãos do mensageiro Paulo Bregaro, patrono dos carteiros, que chegou às mãos de Dom Pedro I, em 7 de setembro de 1822, a correspondência da Imperatriz Leopoldina informando sobre as novas exigências de Portugal em relação ao Brasil, e incitando o Imperador a proclamar a Independência.

Dom Pedro II, ao iniciar seu reinado em 1841, deu novo impulso e dinamismo à atividade. Foi assim que, em 1843, o Brasil se tornou o segundo país a adotar um selo como taxa de serviço postal — uma invenção inglesa de 1840 e tida como um marco na história dos correios no mundo. Nesse período, grandes transformações tecnológicas determinaram o progresso nas comunicações em todo o país — o ápice foi a implantação do telégrafo elétrico em 1852.

Data dessa época o estabelecimento da primeira legião de carteiros e de condutores de malas e do sistema de entrega de correspondências em domicílio. Ainda no reinado de Dom Pedro II, foram promulgados acordos internacionais para troca de correspondências e em 1877 o Brasil aderiu ao tratado de criação da União Postal Universal, selado em Berna, na Suíça, três anos antes.

O início do período republicano, principalmente nas primeiras décadas do século XX, não foi dos mais frutíferos para o desenvolvimento dos correios e a qualidade dos serviços começou a decair. Numa tentativa de reverter esse quadro, em 1931 o governo promoveu a fusão dos serviços de correios e de telégrafos, que funcionavam de forma independente. O Departamento dos Correios e Telégrafos (DCT) investiu em novos serviços e aparelhagem.

Chegada de FHC

Outra prova da importância estratégica dos correios é sua condição de monopólio estatal. Já na Constituição de 1891, a menção feita a meio de comunicação é voltada para o telégrafo e os correios. Era de competência exclusiva da União a decretação de taxas e contribuições concernentes aos telégrafos e correios. Competia ao Congresso Nacional legislar sobre este serviço.

A Constituição de 1934 ampliou este conceito ao registrar que era de responsabilidade da União explorar ou dar em concessão os serviços de telégrafos e radiocomunicação. A Constituição de 1946 manteve o controle da União sobre o setor — condição que sobreviveu ao golpe militar de 1964 e consagrou-se na Constituição de 1988. Quando a ECT foi criada ela ganhou caráter de empresa pública operando em regime de monopólio.

Com a chegada de FHC à Presidência da República, o monopólio estatal dos correios começou a ser ameaçado. A agenda neoliberal do seu primeiro mandato, iniciado em 1995, já previa a redefinição do conceito de empresa nacional e a quebra dos monopólios estatais de energia elétrica, de recursos minerais, de telecomunicações e de petróleo — a finalidade era abrir as portas do país ao capital estrangeiro.

FHC foi ideologicamente pragmático e utilizou a instituição presidencial como motor para a realização de um programa de governo liberalizante e privatista. As “reformas constitucionais”, como ficou conhecido o conjunto de propostas encaminhadas ao Congresso Nacional no início do seu mandato e que englobava questões previdenciárias e administrativas, transmitiu a ideia de políticas programáticas, coletivamente construídas, com vistas à retomada do desenvolvimento econômico e social.

Chegada de Lula

Na prática, o que estava em jogo era uma política entreguista e antinacional, que logo atingira a ECT. Tratava-se da “reforma postal” — a Lei Geral do Sistema Nacional de Correios —, que pretendia promover a abertura do setor e transformar a ECT em sociedade anônima (Correios do Brasil S.A.), regulada pela Agência Nacional de Serviços de Correios (ANSC). O projeto de “reforma”, iniciado em 1997, pretendia criar também o “Sistema Nacional de Correios (SNC)”, que passaria a abranger a ECT, os operadores privados e a ANSC.

O projeto previa ainda a extinção do monopólio estatal nos correios num prazo de dez anos. O governo alegava que pretendia apenas regulamentar a presença de operadores privados, que já atuavam no setor desde o início dos anos 1990 — incentivados pelo governo do então presidente da República, Fernando Collor de Mello. “A agência vai ser o grande ‘ouvidor’ da sociedade, uma espécie de xerife do sistema postal”, disse, na época, o então presidente da ECT, Egydio Bianchi, ao jornal da empresa, Correios do Brasil, do dia 1º de dezembro de 1999.

O então presidente da ECT também anunciou a criação do Banco Postal, que mais tarde, já no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seria implantado. Segundo Arnaldo Salvo, à época integrante da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresa de Correios e Telégrafos e Similares (Fentect), era evidente que, além de destruir a ECT, a Lei Geral do Sistema Nacional de Correios provocaria demissões em massa. Com a chegada de Lula à Presidência da República, a “reforma postal” caiu no esquecimento — em outubro de 2003, quando o presidente solicitou ao Congresso Nacional que suspendesse a tramitação do projeto, ele foi engavetado.

Fonte: Outro lado da notícia

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