Nathalia PassarinhoDa BBC News Brasil em Londres
Comprada pelo governo brasileiro em tempo recorde de negociação e valor alto, a vacina indiana Covaxin é alvo de polêmica na própria Índia, onde foi desenvolvida, por estar sendo aplicada na população antes de ter eficácia e segurança testadas e confirmadas.
A agência reguladora indiana aprovou o uso emergencial do imunizante fabricado pela Bharat Biotech no início de janeiro de 2021 e doses começaram a ser injetadas no dia 16 daquele mesmo mês – sem que a fase 3 de testes clínicos tivesse sido concluída. É nesse estágio que a vacina é aplicada em larga escala em voluntários, para verificar os efeitos colaterais e o percentual de proteção.
Até hoje, não foram publicados na Índia os detalhes da fase final de testes. Um relatório foi divulgado em abril pela Bharat Biotech com “resultados preliminares”.
Um dos argumentos do governo Jair Bolsonaro para recusar ofertas da Pfizer em 2020 foi o fato de a vacina, naquele momento, ainda não ter a aprovação da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Mas o governo federal fechou acordo com a Bharat Biotech por preço bem mais elevado por dose, sem essa aprovação prévia da Anvisa e visando a compra de uma vacina ainda em fase de testes.
Nesta semana, a empresa indiana disse ter entregue dados da fase 3 de testes aos órgãos reguladores da Índia, com resultados que apontam eficácia geral de 77,8%. Mas os detalhes do estudo, que teria envolvido 25.800 pessoas, não foram apresentados ao público nem publicados oficialmente.
“Essa estimativa foi jogada ao público, mas não sabemos nada do estudo, nem mesmo os intervalos de confiança, os números precisos de casos analisados, nem informações sobre segurança e efeitos colaterais”, criticou em entrevista à BBC News Brasil a pesquisadora em saúde pública Mailini Aisola, de Nova Déli, capital da Índia.
Segundo ela, a desconfiança em torno da Covaxin fez com que muitas pessoas, principalmente profissionais de saúde, rejeitassem o imunizante na primeira etapa de vacinação, no início do ano.
“Muita gente preferia a Covishield (como é chamada na Índia a vacina desenvolvida pela Universidade Oxford)”, disse Aisola à BBC News Brasil.
“Depois, por causa da escassez de vacinas e o grande pico de casos e mortes por covid no país, essa resistência diminuiu por falta de opção. Só temos esses dois imunizantes e a demanda é muito maior que a oferta. Além disso, depois de uns meses de vacinação, não surgiram notícias de efeitos colaterais graves, o que ajudou a diminuir a hesitação.”
Aisola é uma das coordenadoras da All India Drug Action Network, uma das principais redes de profissionais de saúde da Índia, que advoga por políticas de acesso popular a medicamentos e tratamentos.
No Brasil, por causa da ausência de dados sobre a fase 3 de testes, a Anvisa aprovou com restrições, em 5 de junho, a importação de Covaxin. Apenas 4 milhões das 20 milhões de doses contratadas poderão ser importadas, e deverão ser utilizadas em condições controladas, sob responsabilidade do Ministério da Saúde.
Em entrevistas e pronunciamentos, o presidente da Bharat Biotech, Krishna Ella, defendeu repetidas vezes a segurança e eficácia da vacina. “Nossa vacina é 200% segura”, disse em janeiro.
Polêmica do preço também existe na Índia
A compra pelo Brasil das 20 milhões de doses da Covaxin foi anunciada em fevereiro, quando o general Eduardo Pazuello ainda era ministro da Saúde. No total, o Brasil planejou desembolsar R$ 1,6 bilhão com a vacina indiana, pagando US$ 15 por cada dose (cerca de R$ 80).
Suspeitas de irregularidades nessa aquisição estão sendo investigadas pelo Ministério Público Federal e a CPI da Covid, no Senado.
O valor final aceito pelo governo chama atenção porque Pazuello afirmou à CPI que um dos motivos para sua gestão recusar a oferta de 70 milhões de doses da americana Pfizer no ano passado seria o preço alto do imunizante.
Mas a vacina foi oferecida ao Brasil por US$ 10 dólares, metade do valor cobrado pela farmacêutica dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido.
Em nota enviada à BBC News Brasil, a Bharat Biotech disse que vende doses de Covaxin ao exterior por valores que variam de US$ 15 a US$ 20.
“A Bharat Biotech tem sido consistente e transparente com a estipulação de preços da Covaxin para venda a governos internacionais, com doses entre US$ 15 e 20. Entregas foram feitas a vários países nessa base de preço”, disse a farmacêutica.
Mas o preço da Covaxin também tem gerado controvérsia na Índia. O imunizante foi vendido ao governo indiano por 150 rupias (cerca de US$ 2 ou R$ 10), enquanto o preço para os governos estaduais foi bem mais alto- variou entre 400 rupias e 600 rupias (R$ 27 a R$ 40).
Já o valor fixado para venda a clínicas privadas se assemelha ao cobrado do governo brasileiro: 1.200 rupias (cerca de US$ 16 ou R$ 80).
A Bharat Biotech argumenta que precisa cobrar esse preço para pagar os custos do investimento feito no desenvolvimento da vacina. Mas pesquisadores indianos dizem que a empresa recebeu alto financiamento do governo, que participou da criação do imunizante por meio do Conselho Indiano de Pesquisa Médica (ICMR).
Por causa dessa parceria, o ICMR, que é o braço de pesquisa do governo, recebe 5% de royalties pelas vendas de Covaxin.
“O preço da Covaxin para venda nas clínicas particulares da Índia e para exportação é fora do padrão e não se justifica pelo custo de produção. A tecnologia utilizada pela vacina é a de vírus inativado, uma técnica tradicional, amplamente conhecida e que não envolve custo particularmente alto”, argumenta Mailini Aisola, da All India Drug Action Network.
Empresa intermediária
Outro aspecto investigado pela CPI da Covid em relação à compra de Covaxin é a intermediação das negociações pela empresa brasileira Precisa Medicamentos. Diferentemente do que ocorreu na aquisição de outras vacinas, o contato não se deu diretamente entre a fabricante, no caso a Bharat Biotech, e o governo brasileiro.
Um funcionário do Ministério da Saúde denunciou ao Ministério Público Federal que se sentiu pressionado por superiores para assinar acordo de compra suspeito com a Precisa Medicamentos.
Em depoimento sigiloso obtido pela Folha de S.Paulo, servidor Luís Ricardo Miranda afirmou aos procuradores ter sofrido uma “pressão incomum” por parte do tenente-coronel Alex Lial Marinho, ex-coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, para assinar uma licença de importação que previa o pagamento antecipado de US$ 45 milhões por 300 mil doses da Covaxin.
Depois, o irmão de Luís Ricardo, o deputado federal Luís Claudio Miranda disse à Folha de S.Paulo que informou Jair Bolsonaro do problema e que o presidente disse que levaria o caso à Polícia Federal.
Mas nesta quarta (23), em vez de anunciar investigação sobre a “pressão indevida”, o governo federal disse que Bolsonaro determinou à PF e à Procuradoria-Geral da República que investigasse os dois irmãos por “denunciação caluniosa” (atribuir falsamente a alguém o cometimento de crime).
O anúncio foi feito em coletiva de imprensa pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, e o assessor especial da Casa Civil Elcio Franco — um dos investigados na CPI da Covid no Senado.
Tanto Onyx quanto Franco negaram repetidas vezes que tenham ocorrido quaisquer irregularidades nas negociações da Covaxin.
Em nota enviada à BBC News Brasil, a Bharat Biotech disse que a sua “parceria” com Precisa Medicamentos envolve apoio para entrada de documentos regulatórios, “aprovações e licenças para a Covaxin”. Além disso, a Precisa Medicamentos ficou responsável, segundo a empresa indiana, pela condução de uma fase 3 de testes no Brasil neste ano.
Nenhuma dose foi entregue
Outro aspecto investigado pelo Ministério Público Federal é uma possível quebra contratual, já que o contrato firmado pelo governo, em 25 de fevereiro, previa entrega de 20 milhões de doses até 70 dias após da assinatura, o que deveria ocorrer em maio. No entanto, por causa da demora da Bharat Biotech em apresentar detalhes da fase 3 de testes à Anvisa, a importação de parte das doses só foi autorizada pela agência regulatória no início do mês.
Em nota, a Bharat Biotech confirmou que nenhum carregamento foi enviado ainda, embora, segundo a empresa, o orçamento para garantir as doses ao Brasil tenha sido alocado.
“A Bharat Biotech tem capacidade de fabricar as quantidades solicitadas pelo Brasil, pendendo aprovações e recebimento do recibo de pagamento por parte das agências intermediárias”, disse a empresa em nota à BBC News Brasil.
Mas a pesquisadora indiana Mailini Aisola, especialista em saúde pública, questiona a capacidade da fabricante de garantir a entrega das doses.
Segundo ela, o governo da Índia determinou recentemente que 75% das doses produzidas por empresas indianas sejam entregues para distribuição gratuita no sistema de saúde do país. As outras 25%, diz a pesquisadora, devem ser vendidas para clínicas particulares da Índia, conforme determinação do governo.
“Não houve um impedimento formal de exportações. Mas 75% mais 25% dá 100%. Isso significa que não restam doses para exportação”, disse.
“Não está claro para mim como a Bharat Biotech pretende garantir os envios ao Brasil.” Informações da BBC Brasil.