O presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), leu na quarta-feira (26/04) o requerimento de abertura da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que vai apurar os atos de 8 de janeiro deste ano.
A leitura é o primeiro passo para a instalação da comissão que vai apurar responsabilidades pela invasão das sedes dos Três Poderes, em Brasília.
A CPMI foi demandada pela oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sob o argumento de que seria preciso investigar a suposta presença de pessoas infiltradas no grupo que invadiu os prédios e se houve omissões do governo ao não se preparar devidamente para impedir a invasão das instalações, em Brasília.
A mobilização para a instalação da comissão ganhou tração na semana passada, apesar da resistência inicial do governo.
Isso ocorreu após a emissora CNN Brasil divulgar parte das imagens do circuito interno de TV do Palácio do Planalto mostrando o então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Gonçalves Dias, circulando pelo prédio em meio a manifestantes e, aparentemente, não agindo para deter os invasores.
As imagens reforçaram o coro da oposição pela CPMI sob a alegação de que as imagens poderiam indicar alguma conivência do governo com os invasores.
Dias pediu demissão. De acordo com o site do canal de TV a cabo CNN Brasil, em seu depoimento, Dias negou qualquer tipo de conivência com os invasores e disse que não tinha “condições materiais” de, sozinho, efetuar as prisões das pessoas que haviam invadido o Palácio do Planalto.
Agora, parlamentares da oposição e da bancada governista se movimentam para traçar estratégias sobre como irão atuar na CPMI.
Políticos e analistas entrevistados pela BBC News Brasil afirmam que as principais estratégias dos dois pólos serão: tentar garantir o controle da composição e de postos-chave da comissão; buscar a propagação de suas narrativas; e usar convocações e quebras de sigilo para dar combustível às suas atuações na CPMI.
Controle e composição
A CPMI dos atos de 8 de janeiro será composta por 15 senadores e 15 deputados. Eles serão indicados pelas lideranças dos blocos partidários na Câmara dos Deputados e no Senado.
O maior bloco da Câmara, composto pelos partidos União Brasil, PP, PSDB, Cidadania, PDT, PSB, Avante, Solidariedade e Patriota, deve indicar cinco deputados. Este bloco é comandado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
O segundo maior bloco, formado por MDB, PSD, Republicanos, Podemos e PSC tem direito a quatro vagas.
A federação composta pelo PT, PCdoB e o PV terá dois deputados. A federação do PSOL com a Rede Sustentabilidade terá uma vaga. O PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, terá três vagas.
No Senado, o bloco formado pelo MDB, União Brasil, PDT, PSDB e Podemos indicará seis senadores.
Até ontem, o bloco também era composto pela Rede, mas o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), retirou o partido do grupo para se aliar a outro bloco, composto por PT, PSB e PSD.
Assim, o bloco passou a poder indicar seis senadores e não apenas cinco, como estava previsto na configuração anterior.
A manobra visou ampliar a quantidade de senadores que a bancada governista poderá ter na CPMI, saindo de 11 para 12.
Assim, os outros dois blocos do Senado, formado por PP e Republicanos e pelo PL e Novo ficaram com duas vagas cada um.
Cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a primeira e principal estratégia a ser adotada pela oposição e pela bancada governista é a tentativa de obter maioria ou o controle de postos-chave do comando da comissão como a presidência ou a relatoria.
Isso é considerado fundamental porque a presidência tem o poder de pautar a ordem e a votação de requerimentos como os que pedem quebras de sigilos, convocações, depoimentos e acesso a documentos.
A relatoria é a responsável por conduzir, em boa parte, os depoimentos e por elaborar o relatório final da comissão.
Obter a maioria dos integrantes também é importante porque a aprovação de requerimentos e até mesmo do relatório final da comissão são feitas a partir de votação.
O problema para o governo (e oportunidade para oposição) é que a base de apoio do terceiro mandato de Lula ainda não está consolidada.
Um dos exemplos disso é o fato de que o União Brasil, contemplado em janeiro com três ministérios, não vem votando em peso com o governo.
Além disso, há parlamentares na legenda que são abertamente contrários ao governo Lula, como o senador e ex-juiz da Operação Lava Jato Sergio Moro (PR).
É nesse contexto que as lideranças da bancada governista vêm mantendo conversas com líderes de outras bancadas para tentar impedir que o perfil dos seus indicados à CPMI seja de oposição ferrenha ao governo Lula.
“Com maioria, você pode convocar, obstruir convocação e mudar a agenda da comissão. Se o governo não tiver maioria, ele vai deixar o controle da CPMI para a oposição”, diz Marco Antônio Teixeira, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Não há outra estratégia para o governo. E, ao que parece, o governo já está fazendo isso, ao buscar aliados para impedir que a oposição avance de tal forma que ela controle a agenda da CPMI.”
Denilde Holzhacker, professora de Ciência Política da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), afirma que, apesar de sua base ainda frágil, o governo deverá ser o protagonista na tentativa de formar maioria e controlar os principais postos da CPMI.
“Se o governo controlar a presidência e a relatoria, ele vai conseguir ter o controle das principais ferramentas de investigação da comissão”, diz a professora.
‘Barulho’
Holzhacker e Teixeira concordam que uma das características mais importantes da CPMI dos atos de 8 de janeiro será a disputa de narrativas a respeito do que aconteceu em Brasília.
De um lado, a bancada governista defende que as invasões ocorridas em Brasília foram realizadas por bolsonaristas instigados por sua principal liderança, o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Desde a invasão, Bolsonaro tem negado seu envolvimento no episódio. Na quarta-feira, ele prestou depoimento à Polícia Federal como parte de um inquérito que apura as responsabilidades pelos atos de 8 de janeiro. Sua inclusão no inquérito foi pedida pelo Ministério Público Federal (MPF) após ele ter publicado, no dia 10 de janeiro, um vídeo questionando o resultado das eleições.
Segundo o portal UOL, os advogados de Bolsonaro afirmaram que o ex-presidente postou o vídeo de forma equivocada em sua página no Facebook em um momento em que ele estaria sob o efeito de morfina por conta de um tratamento contra obstrução intestinal, em Orlando, nos Estados Unidos.
Do outro lado, a oposição diz que haveria elementos infiltrados no movimento bolsonarista que conduziram as depredações. Também afirma-se que o governo teria sido negligente ao não tomar medidas de proteção em relação aos prédios, apesar de alertas de órgãos de segurança e de inteligência de que manifestações como as que ocorreram poderiam acontecer.
O governo Lula vem negando as suspeitas de interesse na invasão. O atual ministro do GSI, Ricardo Cappelli, rebateu as acusações de que o governo teria sido conivente com a invasão.
“É claro que pode ter havido alguma falha de segurança pelo GSI no dia 8, mas não é possível tentar transformar vítimas em culpados. Vamos lembrar que eles não depredaram só o Palácio do Planalto. Eles invadiram o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal”, disse Cappelli ao canal de TV a cabo BandNews.
Em meio a essa disputa, governistas e oposicionistas deverão se empenhar para amplificar suas teses sobre os atos de 8 de janeiro, diz Holzhacker.
“A oposição vai fazer barulho e levar as discussões para as redes sociais para tentar ter o controle da narrativa, de impor, dentro da CPMI, a ideia de criar mais desconfiança sobre o que de fato aconteceu no dia 8 de janeiro. A ideia é atribuir culpa ou leniência ao governo”, disse.
Ela diz que o governo, para responder a essa estratégia, precisará escolher parlamentares hábeis no embate político.
“O que fará diferença é quem estará do lado do governo e se eles terão capacidade de contrapor (a narrativa da oposição). Será preciso que o governo escolha deputados e senadores que vão pro embate e que possam ser capazes de defender a posição do governo e fazer o governo sair da defensiva”, disse.
Nos últimos dias, surgiram rumores de que o governo recomendaria a indicação de parlamentares com perfil ativo em redes sociais e experientes, como o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que foi relator da CPMI da Covid-19, e do deputado federal André Janones (Avante-MG), conhecido por sua popularidade na internet e perfil combativo.
Do lado da oposição, a expectativa é de que o PL possa indicar os filhos de Bolsonaro no Congresso, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), além do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), o mais votado no país nas eleições de 2022.
Sigilos, depoimentos, documentos
Holzhacker e Teixeira também apontam que tanto a oposição quanto a ala governista deverão usar dos dispositivos de investigação previstos em CPMI como ferramentas para avançar suas agendas na comissão.
Por lei, uma CPMI tem poderes semelhantes aos de uma investigação policial. Os parlamentares podem aprovar quebras de sigilo bancários, fiscal, telefônico e telemático (emails).
Além disso, podem determinar o depoimento de autoridades e ex-agentes públicos, inclusive de Jair Bolsonaro, que na quarta-feira (26/4) prestou depoimento à Polícia Federal justamente em um inquérito que apura as responsabilidades sobre os atos de 8 de janeiro.
Na avaliação de Teixeira, a oposição pode conseguir aprovar convocações de integrantes do governo Lula que podem constranger a atual gestão.
“Basta a gente lembrar a CPMI da Covid. Quantas pessoas foram convocadas à revelia do governo e quantas vezes o governo não conseguiu barrar? Um exemplo seria convocar o general Gonçalves Dias, porque isso significa expor uma pessoa da confiança de Lula”, disse o professor.
À BBC News Brasil, o líder do PL na Câmara, Altineu Cortes (RJ), confirmou que um dos primeiros atos que a bancada de seu partido na comissão será tentar aprovar a convocação de Dias.
“Vamos apresentar os requerimentos convocando as pessoas que consideramos importante para fazer as oitivas e trazer informações para gente colher a verdade. O (ex) ministro-chefe do GSI, General G. Dias, conhecido como a sombra do presidente Lula, trabalhou no Palácio do Planalto de 2002 a 2010, e ele era responsável pela segurança do Palácio do Planalto (no dia 8 de janeiro)”, diz o deputado.
Do lado governista, o deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ), também aposta em convocações, mas de pessoas ligadas ao bolsonarismo, inclusive Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal no dia dos ataques.
“Vamos mapear cada pessoa que participou e vamos atrás dos financiadores. Estou convencido de que haverá deputados cassados porque ajudaram a financiar os atos. Vamos atrás de empresários e fazer quebras de sigilo. Vamos atrás, também, dos autores intelectuais. Tem uma figura que é chave, que é o ex-ministro Anderson Torres”, disse o parlamentar à BBC News Brasil.
Torres está preso em Brasília e é alvo de investigações da Polícia Federal sobre sua participação no 8 de janeiro.
Ele é investigado por sua suposta leniência no planejamento da operação de segurança da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes, em Brasília, durante o dia 8 de janeiro. Além disso, ele também é investigado por suspeitas relacionadas ao uso da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para realizar blitz em rodovias do Nordeste e impedir eleitores do então candidato Lula de chegar às urnas de votação durante o segundo turno das eleições.
Ele também é investigado no caso que apura a existência de uma “minuta” que previa a instalação de um estado de sítio para reverter o resultado das eleições. A minuta foi encontrada em sua casa, em Brasília, pela Polícia Federal.
A defesa de Torres nega qualquer irregularidade na sua conduta nos três casos. Sobre a minuta, a defesa afirma que o ex-ministro não se lembra quem lhe entregou o documento e que o documento não seria utilizado.
Denilde Holzhacker aponta que o uso destes mecanismos da CPMI vão depender de quem controlará a comissão.
“Pode haver convocação de ministros por parte da oposição, mas tudo vai depender da composição da comissão. Se o governo tiver maioria, haverá mais controle sobre isso. Por outro lado, a bancada governista pode pedir acesso a dados de investigações que já estão em curso e que podem expor, ainda mais, integrantes da oposição”, afirma.
Fonte: BBC