Crise no Amazonas e a urgência da agenda ambiental

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El Niño traz seca ao Norte e fumaça das queimadas encobre Manaus. Quais os impactos imediatos e a longo prazo para a saúde da população local e para o Brasil? Por que é preciso que o governo encare o problema imediatamente

No Amazonas, a estiagem associada à brutal poluição atmosférica causada pelo encontro de fenômenos climáticos como o El Niño e a ação humana destrutiva na floresta têm criado perigos à vida cotidiana. A seca dos rios impede a navegação e, assim, essa parte do Brasil perde contato com o mundo – de modo que suas atividades produtivas paralisam, ao passo que o sistema de saúde é sobrecarregado por doenças respiratórias e contaminações causadas pela precariedade sanitária.

A limitada repercussão deste quadro gravíssimo pelo resto do país parece reforçar a noção de que a sociedade, e mesmo as autoridades, tratam esse tipo de colapso como algo secundário. Há pouca mobilização institucional e a política ambiental segue marginal na condução do país.

“Ainda há uma desinformação muito grande da população em geral sobre as consequências reais da crise climática. Não é só o aumento da temperatura, mas tudo que isso irá acarretar. Doenças vetoriais, por exemplo, aquelas transmitidas por mosquitos: a tendência é que em lugares onde antes não havia esse tipo de doença, agora apareçam”, explicou a médica veterinária Alessandra Nava, pesquisadora do Instituto Leônidas e Maria Deane (ILMD) – Fiocruz Amazonas.

O estado amazônico padece uma crise de múltiplas dimensões: na saúde coletiva, no saneamento, no meio ambiente, na economia. Como descreve Alessandra, o dia a dia tem sido caótico. E o sistema de saúde volta a ser pressionado por conta do aumento de enfermidades e internações. “A distância da fonte de água aumenta o risco de doenças de veiculação hídrica. O nosso estado já apresentava problemas de acesso à água potável e ao básico, e a estiagem agravou ainda mais esse quadro”, alerta a pesquisadora.

E as consequências diretas da seca também são abundantes, conta: “Em uma localidade, uma agente de saúde quebrou a perna tentando chegar em uma comunidade caminhando em lamaçal de rio seco. As Unidades Básicas de Saúde fluviais estão com dificuldade de acesso. Fora a estiagem, as queimadas ininterruptas criminosas acontecendo no estado estão intoxicando a população de Manaus e das cidades do interior. Os hospitais estão recebendo muitas pessoas com intoxicação e falta de ar. A estiagem, o baixo nível da água do Rio Negro e a temperatura altíssima podem ter sido fatores responsáveis pela alta mortalidade de botos e outros animais que ocorreu em Tefé e Coari”.

Em entrevista ao Outra Saúde, a pesquisadora em saúde pública não deixa dúvidas sobre a responsabilidade do governo de Bolsonaro na construção do quadro de calamidade. Atividades criminosas ainda estão espalhadas por toda a floresta e os incêndios não a deixam mentir. Dessa forma, é necessário ampliar esforços para não deixar comunidades locais jogadas à própria sorte, o que vai além de ações emergenciais. A adaptação da política pública às mudanças climáticas é mais que necessária e a crise gerada pela seca e queimadas precisa ser um ponto de virada para o início de uma nova agenda a ser assumida pelo Estado.

“A crise climática tem de ter uma abordagem em saúde única e ser um programa de estado, porque temos que estar preparados para as múltiplas consequências do agravamento da crise climática. É urgente a proteção das nossas florestas e coibir os incêndios criminosos que estão ocorrendo no bioma amazônico e Pantanal”, defende Alessandra.

A questão vai além das boas intenções e, no fundo, trata-se de enfrentar toda a lógica produtiva capitalista, o que talvez explique a timidez nas respostas do poder público e a baixa repercussão social, uma vez que os grandes meios de comunicação seguem a pisar em ovos na hora de explicar à população as causas reais desse tipo de crise cada dia mais frequente. E mesmo governos tidos como progressistas ainda têm fortes limitações no enfrentamento aos dilemas aqui expostos.

Mas há uma realidade que bate na porta e, como resume Alessandra, “não dá mais para aceitar a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos”.

Leia a entrevista completa a seguir.

O que comenta da estiagem que ocorre no Amazonas há várias semanas e deve se estender até janeiro? Quais seus efeitos sobre a saúde coletiva?

Os efeitos dessa estiagem são muito diversos e não abrangem só questões sanitárias. O estado do Amazonas, é movido pelos territórios líquidos. Toda acessibilidade tem na sua base a movimentação pelos rios e é regida pelos rios, nas suas cheias, baixas e nos banzeiros que impedem ou deixam a navegação perigosa. Desses territórios líquidos vêm a mobilidade da população e seus serviços, a água de beber, de se lavar, o alimento através da pesca…

A estiagem afeta as plantações, pequenos produtores estão perdendo toda sua plantação, teve produtor de banana que já perdeu 50% da sua produção. Os impactos são sistêmicos.

A seca sem precedentes que estamos enfrentando desafia todo o sistema, e exige que criemos soluções imediatas para assistir à população.

Quais efeitos podem ser vistos sobre o sistema de saúde e seus profissionais? Já há uma sobrecarga?

Com certeza. A distância da fonte de água aumenta o risco de doenças de veiculação hídrica. O nosso estado já apresentava problemas de acesso à água potável e ao básico, e a estiagem agravou ainda mais esse quadro. Em uma localidade, uma agente de saúde quebrou a perna tentando chegar em uma comunidade caminhando em lamaçal de rio seco. As unidades básicas de saúde fluviais estão com dificuldade de acesso.

Fora a estiagem, as queimadas ininterruptas criminosas acontecendo no estado estão intoxicando a população de Manaus e das cidades do interior. Os hospitais estão recebendo muitas pessoas com intoxicação e falta de ar. A estiagem e o baixo nível da água do Rio Negro e a temperatura altíssima pode ter sido um dos fatores responsáveis pela alta mortalidade de botos e outros animais que ocorreu em Tefé e Coari. 

Como esta crise se conecta com outros eventos climáticos extremos que se manifestam em outras regiões do Brasil?

Faz muito tempo que os cientistas alertam para a crise climática. A conta chegou, porém ainda há uma negação de diversos setores que insistem em tentar passar a boiada, em não diminuir nossa sede por combustíveis fosseis. A era geológica do planeta foi renomeada Antropoceno devido às grandes mudanças que a espécie humana causou no planeta, desde desvios de cursos de água até extinção de espécies e intensificação da agricultura. A floresta amazônica não é o pulmão do mundo, e sim a bomba hidráulica. Sua diminuição vai acarretar na perda da floresta em criar os rios voadores. Ou seja, seca no Sudeste, centro Oeste e Sul do Brasil.

Quais medidas de saúde são mais urgentes para os governos locais?

O acolhimento das comunidades mais vulneráveis para não passarem fome e proporcionar água potável. Temos de reinventar sistemas, reestruturar acessos, sabendo que devido à crise climática tais processos irão se agravar. Os territórios indígenas estão altamente visados e sendo atacados sistematicamente. Mídias como De Olho nos ruralistas já divulgaram que  no estado do Amazonas o fogo no município Autazes realizados por fazendeiros comprometeu o modo de vida dos indígenas da etnia Mura que não encontram áreas para plantar mandioca. Também, a invasão dos búfalos nas áreas de TI, obrigam os indígenas a dividir a água com os animais, o que as deixa ainda mais insalubre.

Mais amplamente, ainda estamos carentes de compreender a urgência de tais acontecimentos? Que tipo de resposta a sociedade e suas instituições deveriam dar?

Ainda há uma desinformação muito grande da população em geral sobre as consequências reais da crise climática. Não é só o aumento da temperatura, mas tudo que isso irá acarretar. Doenças vetoriais, por exemplo, aquelas transmitidas por mosquitos: a tendência é que em lugares onde antes não havia esse tipo de doença agora apareçam, pois o limitante para algumas espécies de vetores era a temperatura das localidades. Doenças como dengue e malária irão surgir em locais onde antes não havia ocorrência.

No âmbito federal, o que pode ser feito?

O governo atual ainda está pagando a conta deixada pelo governo anterior, que envolveu desmontes na proteção ambiental e do Sistema Único de Saúde. A crise climática tem de ter uma abordagem em saúde única e ser um programa de estado, porque temos que estar preparados para as múltiplas consequências do agravamento da crise climática. É urgente a proteção das nossas florestas e coibir os incêndios criminosos que estão ocorrendo no bioma amazônico e Pantanal. Não dá mais para aceitar a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos. Todos nós vamos padecer com o agravamento da crise climática e, infelizmente, devido às desigualdades existentes no nosso país e no mundo, as populações já em vulnerabilidade irão sofrer muito mais as consequências.

Fonte: Saúde em dia

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