Crônica em torno do racismo na Saúde

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Por Douglas Barros

Ou: de como minha fala sobre o tema, num seminário da Fiocruz em Recife, tornou-se pouco, diante de um episódio vivido às margens do evento. E o que Frantz Fanon tem a ver com as duas experiências

Na última semana, estive em Recife para oferecer, pela Fiocruz, o curso Racismo como determinação social da saúde. A relevância do tema aumenta por ser comum ignorar as próprias estatísticas da exclusão do acesso à saúde por parte dos racializados — mesmo diante de um sistema universal como é o SUS. Esse era um possível caminho a ser seguido: pensar a relação estatística e a diferença entre acesso da população branca e não branca. Entretanto, com esses dados em mãos, preferi não me atentar aos números, mas buscar suas causas. A sala estava repleta de pessoas da área da saúde que sabiam muito bem de seus dilemas e do racismo impregnado na prática cotidiana do acesso.

Nesse caso, eu poderia sair da posição de um mestre e passar à posição do ignorante. Então, propus uma torção: pensar o racismo como uma patologia social. Em seu livro, Silvio de Almeida afirma que o racismo não é uma patologia, mas a normalidade de uma sociedade legatária do colonialismo. Propus uma volta nesse parafuso: a normalidade de uma sociedade herdeira do colonialismo é em si uma patologia. O que isso significa? Que a normalidade, excludente pela ordem normativa, é doente e adoecedora.

Para chegar nessa conclusão, no entanto, me baseio principalmente nas grandes contribuições do psiquiatra e filósofo antilhano Frantz Fanon para o campo da saúde. Quando lembramos que Fanon era um médico/psiquiatra – que fez sua residência com ninguém menos que Tosquelles – também lembramos que as questões levantadas por ele sempre se mediavam pelo fetichismo mistificador da noção racial principalmente no discurso médico. Fanon foi um homem que viu, nos hospitais que esteve, médicos medindo crânios de argelinos e negros para comprovar a suposta “inferioridade” destes. Não esquecer isso é fundamental para o entendimento de sua obra.

Com efeito, uma das grandes questões fanonianas, por exemplo, está na demonstração de como essa singularidade, esse indivíduo racializado e produto da superexploração, constrói sua subjetividade no interior da realidade demarcada por espaços e lugares cabíveis à experiência vivida e traduzida pela noção de raça.

Assim, sendo a noção de raça uma operação de controle e produção de sociabilidade marcada pela exclusão do outro (o não branco), sua força estrutural iria moldar a forma de construção da subjetividade do indivíduo racializado. Isso organiza não só a maneira como o adoecimento é pensado, mas também como a tênue linha divisória entre o normal e o patológico não foge à essa determinação. E é aqui que reside a investigação de construção da subjetividade do negro realizada por Fanon.

Tateando o labirinto da formação da subjetividade a partir da relação entre psiquiatria, psicanálise e filosofia, Fanon tem um grave problema em vista: o que significa a raça? Se o negro é um produto como torná-lo um sujeito? Para responder tais questões seria necessária uma sessão que possibilitasse ao indivíduo negro reconhecer-se no confinamento de seu próprio corpo como uma construção histórica demarcada por uma ultraexploração e por uma exclusão radical.

E é por isso que um dos aspectos centrais sobre os quais o martinicano se debruça em Pele negra, máscaras brancas é justamente a linguagem. É nela — na construção de um registro simbólico que me permite identificar o que sou e o mundo à minha volta — que está o lugar em que é possível assumir minha identidade. Se a linguagem é devedora da relação sociocultural, logo o racismo, impregnado numa sociedade fundada na escravização, organiza a forma pela qual o indivíduo pensa a si mesmo e se reconhece.

A identidade, apesar de sua relação com a fantasia de si – uma ilusão necessária, como afirmo sempre –, é aquilo que permite uma estruturação simbólica responsável pela capacidade de organização egóica do indivíduo. Ela é essa possibilidade de um conhecimento de si através da imersão num idioma que garante a entrada no mundo social. O problema observado por Fanon é que o modo próprio pelo qual a linguagem circula é imerso na vida social da qual ela faz parte.

Então, no interior de um mundo colonizado, para indivíduos que são marcados pelo processo de racialização, essa construção do próprio eu fica vedada: o processo de identificação de si por meio da linguagem está interrompido, porque a hegemonia da racialização configura uma estrutura simbólica (através da linguagem) que responde por um imaginário branco.

Esse imaginário impede, portanto, o reconhecimento. Sendo assim, o mundo que não superou as estruturas formais e imaginárias do mundo colonial é um mundo no qual os processos de circulação da linguagem, entendida aqui em suas diversas dimensões, responderão por essa herança.

O não-outro do branco para ser, numa sociedade como essa, tem que negar-se. E aqui reside o processo de uma normalização da patologia colonial: a naturalização de um discurso, legitimado pela ciência, de uma desigualdade racial fetichista (envolta de várias mitificações sobre a diferença), que serve para a produção e reprodução da vida social e baliza de maneira sobredeterminada o discurso médico.

Não é difícil rapidamente perceber que as formas culturais de construção do imaginário colonial são dominadas pela figura branca que responde pelos espaços de organização da vida social como um todo. O complexo de autoridade, pensado por Fanon, anima a relação do discurso médico ante à diferença que o não-branco lhe dá. E, portanto, não há espaço para a circulação das subjetividades que não se identifiquem com esse imaginário. Quando vemos as estatísticas do acesso à saúde, essas conclusões reverberam.

Então, para além de subordinação material desse indivíduo, demarcado pela raça e pela epiderme, a colonização fornece ainda os mecanismos pelos quais as pessoas são capazes de se compreender a si e organizar sua subjetividade. Ou seja, o colonialismo é também uma ideologia que condiciona a realidade material marcando o processo de exclusão através de uma ordem simbólica que coloca os racializados como subalternos e cidadãos de segunda classe.

Isso implica ainda um sofrimento (o do não-branco) invisibilizado pela lógica do diagnóstico clínico e medido pelo universal: o branco. O racismo, como sofrimento subjetivo e organizador de traumas, é simplesmente ignorado, jogado para debaixo do tapete e afirmado na súmula médica como frescura.

Assim, esquece-se do processo de despersonalização dos racializados e do sofrimento que ele organiza por meio do trauma de ser posto no lugar da exclusão. Enfim, tudo isso dá enorme pano para manga – coisa que não poderei estender por aqui. A linha do debate no curso da Fiocruz em Pernambuco seguiu durante mais de uma semana nessa toada, utilizando vários arsenais dispostos por Lélia Gonzalez, Neusa Santos, Isildinha Baptista, Achille Mbembe, Denise Ferreira, etc., etc.

De repente, quase finalizando a semana, um acontecimento muito interessante se deu. Eu passo a narrá-lo, tal como narrei no último encontro do curso.

Do debate à rua
Passei esses cinco dias repetindo a desgraça que é o racismo, suas armadilhas, suas limitações, suas fronteiras. Ontem, aconteceu algo fundamental. Depois de ouvir a apresentação dos trabalhos, todas pesquisas interessantes que retratam a impregnação do racismo na nossa experiência social, eram mais ou menos umas cinco e meia da tarde quando Diego e eu nos sentamos no bar, que eu vou chamar de bar da sopa. Um bar com paredes amarelas e espaço agradável pra tomar uma cervejinha.

De repente, chegou um senhor acompanhado por um rapaz. Notei que o rapaz, negro, tinha um caderninho onde fazia algumas anotações. O senhor ficou olhando para nossa cara, carregava uma correntinha no pescoço com um grande crucifixo, três anéis nos dedos, camisa regata, bermuda, chinelo e boné. Puxou conversa com a gente, primeiro através de um enigma:

– Qual o céu que não tem estrelas? – perguntou, ao que, feliz por saber a resposta, imediatamente respondi:

– O céu da boca. – Remoendo a resposta que dei, o velho então mandou outro:

– O que tem em tudo? – perguntou em tom de enigma. Cocei a cabeça, essa eu não sabia. “O que tem em tudo?”, refleti. Até que de repente ele disse:

– O nome!

Não me fiz de rogado, porém, e devolvi com outro enigma, pedante como só alguém formado em filosofia pode ser. Meu enigma era o da esfinge:

– O que de manhã tem quatro patas, a tarde duas e a noite três?

O velho coçou a cabeça. Parou um instante, com reflexões profundas, mas foi interrompido pelo rapaz que o acompanhava e disse:

– Você! Sim, de manhã é a criança, de tarde é o adulto e de noite é o velho com a bengala. Um velho como tu, visse!

Enquanto os enigmas iam e vinham, a cachaça descia e o velho ficava mais solto. Falou de seu filho; um campeão brasileiro de kickboxing. Fez Diego encontrá-lo no Instagram. Falou onde morava, e que detestava morar em apartamento. Dali a pouco perguntou se Diego e eu gostávamos de mulher. Ante a surpresa da pergunta, levamos um tempo para dizer que sim. Os olhos do velho brilharam e ele disse:

– Então, vocês precisam ir no bar das calcinhas. Vamos lá? – Pergunta. Não entendemos de início, ao que ele insiste: – O bar das calcinhas é igual aqui! A cerveja é o mesmo preço! Com o detalhe que se as moças gostarem de tu, tiram a calcinha, esfregam o dedo na xana e passam na tua cara! Querem ir lá? – pergunta novamente – Eu tenho até um apartamento, vocês podem dormir lá. Podem ficar de boa!

Bem, naquele momento, comecei a ter a impressão que eu tinha acabado de entrar num filme de Kleber Mendonça. Senti que me deparava com um outro Recife, o da ficção, sabendo o quanto de real há na ficção, o quanto a ficção organiza a realidade. Saía de uma universidade e a poucos passos me deparava com um outro Recife.

– Vocês precisam ir no bar das calcinhas! Tem todo tipo de mulher: mulheres muito gostosas de treze, quatorze, quinze anos! – encerrou tomando um gole de sua cachaça. Muito embora eu estivesse constrangido com a informação, o velho não notou, já que insistiu: – Querem ir lá? Tem um quarto pra vocês dormirem, fiquem tranquilos.

– Não! – insistimos mais enfaticamente.

Por não ser o peixe que ele arrastaria, o velho já bêbado mudou de assunto. Passou a falar que o dono do bar devia a ele três mil reais e que ele nem cobrava mais, porque tinha perdoado a dívida. De repente, tudo me fez algum sentido: o rapaz com o caderninho de anotações; o velho insistindo pra que bebêssemos ou comêssemos alguma coisa de graça; a quentinha que ele levou, e, por fim; os enigmas. O velho era um agiota e, ao mesmo tempo, um cafetão…

Tudo isso poderia ter parado aí. Essa seria só uma história do que eu tinha ido fazer em Recife: promover um debate sobre o racismo como determinação social de saúde. Mas algo aconteceu — uma mulher negra entrou no recinto. Vestia um short curto jeans, uma camisa preta, estava perfumada e bem maquiada. Assim que entrou, brincou com um cachorro à porta do estabelecimento. O incômodo do velho foi visível e constrangedor.

Primeiro, ele tentou constrangê-la dizendo que quando o cachorro estava morrendo ninguém se preocupou em ajudar. A mulher talvez nem tenha ouvido, e se ouviu fingiu que não. Quando ela retornou de dentro do bar, sentou-se numa cadeira e cruzou as pernas, o velho disse como querendo que ela ouvisse:

– Tem uns tipos de mulher que é cilada! São vagabundas e a gente tem que ficar de olho! – falava alto se dirigindo à mulher negra: – Olha o tipo de roupa! Tá na cara que é pistoleira! – de repente, o homem que nos oferecia meninas impúberes, que sacaneava pessoas em aflição econômica, tinha se tornado o defensor da moral e dos bons costumes; o homem de bem da família brasileira. Um retrato do racismo de denegação apresentava-se ali. E falava alto para que ela escutasse, constrangia-a, esperando que nós concordássemos com ele.

Olhei para cara de Diego, visivelmente constrangido, simplesmente nem mexia mais a cabeça. Agora vou fazer o balanço com o hipotético-leitor desse texto: esse acontecimento se deu no quarto dia de debate sobre o racismo. A poucos passos dali, víamos o corpo da mulher negra sendo constrangido pelo olhar de um racista que lhe dirigia um misto de lascívia e ódio ao mesmo tempo.

Aliás, é esse misto de lascívia e ódio que sempre recai sobre esse corpo fenomenológico marcado por uma herança colonial. Era o quarto dia de debate e na nossa frente ocorriam muitas coisas bastante representativas do que horas e dias antes havíamos debatido. O ódio no olhar e a impotência do velho, ambos demonstravam o quão derrotada era aquela figura. O medo da mulher negra que cruza as pernas e da qual ele não é dono – como diz ser de meninas de treze, quatorze e quinze anos –, uma fobia diante da impotência e diante da completa ignorância que a mulher negra lhe dedicava.

Ela ficou impassível. Se ouviu os impropérios, fingiu de maneira muito convincente que não. Mas aquela cena marcaria minha noite. A quantos constrangimentos somos afinal submetidos? O quanto essa mulher teve que aguentar durante sua vida? Esse racismo, que organiza uma violência atmosférica, fere e marca, estabelece uma lição fundamental dada por Fanon: a saída não pode ser individual. Não dá para resolver esse problema no divã – ainda que ele não seja descartável.

Por mais que alcancemos os algumas mudanças, muita coisa ainda resta a ser feita e só podemos nos contentar quando esses corpos puderem entrar como quiseren em qualquer lugar sem serem vilipendiados. Angela Davis insiste na ideia de que a liberdade é uma luta constante. Agora, veja: e quando bate o cansaço? E quando não se quer mais o combate? E quando a luta se torna insuportavelmente dolorosa? E quando somos, por defesa, obrigados a fingir que não ouvimos ou vemos essas palavras e esses olhares?

Enfim, não se trata de um problema estrutural que possa ser remediado. É preciso acabar com o mundo onde isso se tornou algo normal.

Fonte: Outra Saúde / Foto: Reprodução

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